Prólogo



Prólogo

As pessoas falam. As pessoas adoram falar: não que a nossa história, de acordo com eles a nossa versão - que parece ser a única sem fundamento - tenha algo de extraordinário. Na verdade foram muitos os que passaram por pior naquela época, em que as coisas estavam divididas entre luz e escuridão. Nós representamos apenas a diferença, a mudança e o impossível. São muitas as pessoas que escreveram a nossa história, que a espalharam pelo mundo. Falam de como nos conhecemos, as situações por que passamos, as desilusões e problemas que sofremos. Criam mesmo as suas próprias versões, acrescentando alguns pormenores e detalhes para que os seus livros se tornassem mais entusiasmantes. Com estes livros batizaram-me com vários nomes, Sally, Carmen, Lena, Annie, Lara, Amy. O meu verdadeiro nome nunca foi referido. Será que algum destes livros conta a história real? Algum destes escritores esteve presente? Escutou as nossas conversas e discussões mais íntimas?

Hoje somos conhecidos em todo o mundo, somos encarados como uma lenda, somos modelos a seguir. Nas livrarias, mesmo após tanto tempo, os livros que escreveram sobre nós continuam entre os mais vendidos. Nas escolas, tanto de trouxas como de feiticeiros, os professores deliciam os estudantes contando a história de como a pequena menina do vestido azul encontrou o rapaz sombra no “palheiro” da sua vizinha e da garota dos olhos de mel e do sorriso doce que quase destruiu os sonhos de duas vidas.

A razão pela qual estou sentada hoje escrevendo isto é simples: as pessoas começam a encarar o que nós passamos como um conto de fadas e não uma história real, repleta de sangue, morte e sofrimento, bem como amor, amizade e coragem.

Ontem resolvi quebrar a minha rotina. Enquanto todos me esperavam no instituto para trabalhar, dei a mão à minha filha e, a pé, levei-a à escola. Isto poderia ter custado o meu emprego mas dou graças a Merlin por ter sido mais uma vez inconsequente e precipitada. Quando chegamos, a euforia e o entusiasmo infantis arrancaram a criança de perto de mim, fazendo-a correr para junto dos amigos. Fiquei vendo-os de longe, concentrando o meu olhar na minha pequena, tão parecida comigo quando era mais nova, tão inocente, livre. Sentei-me num banco que encontrei perto de mim, debruçando-me sobre uma das mais recentes versões da história da Princesa e do Dragão. Não sei quanto tempo fiquei ali, refugiada da realidade, mas quando voltei a desviar os olhos do livro reparei na multidão que me rodeava. Olhavam-me de lado, sussurrando entre si e apontando-me os dedos.

- Por Merlin, Beth! Espera nos realmente convencer que a sua mãe é realmente a Coruja das histórias? - disse Peter, um rapaz do 3º ano conhecido pelas suas ameaças aos mais novos.

- Mas ela é! Juro!

Beth, como os amigos da minha filha lhe chamam (o diminutivo para Elizabeth, nome que ela arranjara para si mesma), olhou-me na expectativa, esperando que eu confessasse aos seus pequenos colegas que o meu nome era na verdade Sally, ou Carmen, ou Lena. À minha volta o número de pessoas que se juntava àquela multidão era cada vez maior, olhando-me todos com sorrisos irônicos e desdenhosos.

- Você não pode ser a Angélica! - Sorri, acrescentando mais um nome à minha lista - A minha mãe andou em Hogwarts ao mesmo tempo que a Angélica e diz que ela morreu logo depois de abandonar a escola.

Ergui a minha sobrancelha, divertida com a situação. Oras, eu estava morta e não sabia? Isso sim é um problema.

- Bem querido, devo admitir que tens razão. Eu não sou a Angélica das histórias. O meu nome é Virgínia. Apenas Virgínia.

Os adultos que se tinham juntado aos mais novos sorriram, encarando aquilo como uma pequena mentira, contada pela menina de cabelos ruivos que agora baixava a cabeça, escondendo a cara, talvez envergonhada por ter sido apanhada. As crianças começaram afastar-se, frustradas por não terem conhecido Angel. Beth ficou para trás.

- Não é justo. Eles pensam que está morta! Devia ter contado pra eles! Mostrado pra eles como era!

- Beth... Eles não pensam que eu estou morta porque eles não me conhecem. Segundo eles Angélica morreu. Não eu. - Puxei a menina de sete anos para o meu colo e afaguei-lhe os cabelos - Já tínhamos falado sobre isto. Não vale a pena. De que me serviria a mim ser perseguida por um bando de enfurecidos, querendo tirar satisfações ou procurando os relatos originais disto e daquilo... De que serviria, pequena?

Beth olhou para as suas mãos durante uns momentos e depois encarou-me directamente, olhos nos olhos.

- Você ganharia a sua vida de volta, mãe.

As pessoas gostam de falar. As pessoas falam. Mas será que alguma delas pensou no que está por detrás duma história que pensam ser tão antiga como o tempo? E alguém se preocupou em saber se existiam sentimentos para além das frias palavras dos contadores de histórias? E acima de tudo, algum deles quis saber se queríamos espalhar a nossa história? Nunca quisemos isto. Nunca quisemos a fama e o anonimato simultâneo. Se ao menos pudéssemos voltar a ser apenas a pequena menina de cabelos ruivos e vestido azul, o rapaz sombra e a menina de sorriso doce e olhos de mel que quase pôs tudo a perder. Numa época em que éramos jovens, inocentes, livres.

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