Final - Voltando pra Casa



Não havia morrido, para seu próprio espanto, Arthur notou ao despertar na areia. Sabia que tinha morrido, mas, no entanto, não tinha morrido. Tentou pensar em como isso era possível, mas sua cabeça começou a doer, assim como cada músculo de seu corpo, e decidiu que iria pensar sobre isso mais tarde – muito mais tarde.
De fato, ele não poderia dizer quanto tempo esperou, só que esperou por muito tempo.
A eternidade, ele diria.
E em toda sua espera só teve uma certeza: havia morrido.
Não de todo, é claro, mas uma parte, alguma coisa dentro dele, alguma coisa importante, se fora para sempre, morrera com o Amuleto.
E no vazio que se encontrava agora, Arthur temeu que fosse a melhor parte de si. A parte que realmente importava.
O que morreu em você ao invés de você, Arthur?, ele se viu se perguntando. Seus sentimentos? Seu amor? Seu mal, talvez...?
Era difícil dizer agora, estava tão dolorido que não poderia sentir nenhuma dessas coisas ainda que elas estivessem ali.
Antes de desmaiar, e ficar ali jogado até ser encontrado no dia seguinte, Arthur ouviu a voz da morte sussurrar em seus ouvidos cheios de areia e água salgada:
“Já houve dois de vocês... mas somente um vive agora...”
Só um...
Arthur compreendeu.


Já tinha se passado quase duas semanas do dia em que Leto retornara, e escapara, quando Arthur despertou na enfermaria, sentido os ossos moídos, e vendo pelo reflexo do espelho adiante que tinha feridas por todo o corpo. Feridas que conseguira na queda, naquele angustiante impacto.
Arthur Mortense permaneceu na enfermaria até dois dias antes da volta para casa, e fez seus exames sozinho (já que todos já os tinha feito) sobre a supervisão de Jorge Virgilius, que demonstrava sua habitual frieza e irritação.
O que em nada estranhou Arthur.
No entanto, ele estava deprimido. Muito deprimido.
Não esperava de Virgilius muito mais do que ele demonstrava, mas não esperava de seus amigos essa ausência. Os amigos pelos quais quase morrera
(Que morrera, na verdade. Ao menos em parte)
e amigos esse que não apareceram para visitá-lo nem um dia que fosse durante sua longa estada na enfermaria com a Sra. Johnson por companhia. Nem sua mãe apareceu dessa vez, embora tenha enviado-lhe uma carta por uma pomba amarela de olhos dourados que vibravam de modo muito estranho – a caligrafia estava manchada em várias partes, o que demonstrava que sua mãe estivera chorando enquanto a redigia.
A única visita que o pobre Arthur recebeu foi a de Belforth, que estava acompanhado de Virgilius (esse estava tenso), Gybrael e uma mulher baixa e de rosto rabugento que ele nunca vira na vida. Todos permaneceram calados enquanto Belforth pedia detalhes Arthur sobre o paradeiro do Amuleto.
- Eu destruí! – dissera a Belforth. – Sei que destruí e... sei que eu... eu tinha de ter morrido não tinha?
Belforth e Virgilius trocaram olhares preocupados.
- Não, não tinha Arthur. – afirmou Belforth confiante. – Sua força, a força de seu coração eu diria, venceu o mal do Amuleto dos Pesadelos. O mal não se vence com ira, Arthur, se vence com amizade e amor!
Era bem verdade que Arthur pensara em amizade e amor quando se atirara naquela queda suicida, entretanto tinha certeza de que o diretor mentia. Assim como sabia que o diretor sabia que ele sabia que ele mentira.
Havia morrido. Um dos dois Arthur que houvera um dia, até aquele dia, tinha-se ido... para sempre. Belforth, bem como os que o acompanhavam sabiam o “porque’ desse estranho fato, embora verdadeiramente não fossem o revelar agora.
Arthur por sua vez não se importava em saber como houvera dois dele e como um tinha morrido sem que necessariamente o outro morresse.
O importante era que ele sabia!
Sabia que algo de si tinha-se ido naquela noite (para sempre, nas garras do esquecimento, meu garoto) e que isso o amedrontava. Tinha medo do que tinha perdido, e tinha medo do que lhe sobrara.
Porque agora não havia equilíbrio...
Quando saiu da sala de Virgilius, ao terminar seus exames, passou diante das escadas que levavam ao sétimo andar. Ficou ali pensando na Sala do Infinito, e nos poucos minutos que se seguiram lá dentro. Fora tantas sensações e informações de uma só vez, pensou. Que agora já não tinha lembrança de nada, a não ser da Grande Lição.
A vida é a penas um livro. O grande livro. E que sua vida era uma mera página, ou que sabe apenas um parágrafo.
E pela primeira vez teve uma idéia mais ampla do que era a Sala do Infinito: era a sala da compreensão universal. O segredo de Deus.
O cofre do Criador.
Se ele ao menos pudesse entrar lá mais uma vez...
- Pensando na Sala do Infinito, Arthur? – indagou a voz de Belforth atrás dele, fazendo pular de espanto.
Virou-se para o diretor e respondeu com sinceridade.
- É... um pouco. – murmurou triste. – Penso mais no que vi lá dentro...
- Hum, sei bem o que sente! – Belforth parecia mesmo entender. – Senti algo parecido quando entrei na compreensão pela primeira vez. Porque é isso que aquela sala é, Arthur: compreensão!
Arthur se sentiu um pouco mais contente ao concluir que já sabia disso.
- Venha, Arthur. – chamou Belforth, conduzindo-o pela escada acima, em direção a sala.
Os dois fizeram o caminho que Arthur já conhecia bem. E as vozes que Arthur pensara ter ouvido no corredor do sétimo andar, o corredor onde a sala de Belforth estava, pareciam mais longínquas agora. Arthur e Belforth só voltaram a falar quando se postaram diante da porta de metal vermelha, contornada por uma forte claridade, onde marcado a fogo lia-se: Imortais Não Findam Incoerente Não Indaga Teus Olhos.
A Sala do Infinito.
- Já presto a atenção na frase da porta do conhecimento, Arthur? – perguntou Belforth.
Arthur não havia prestado, afinal ela não fazia qualquer sentido. Meneou a cabeça negativamente.
- Tem certeza de que ela não significa Nada a você? – Belforth tentou de novo.
O garoto leu a frase atentamente dessa vez (“Imortais Não Findam Incoerente Não Indaga Teus Olhos”). Sua boca já se abria para dizer que era tão vazia como da primeira vez que a viu quando a compreensão surgiu. Tão simples e bela.
Imortais Não Findam Incoerente Não Indaga Teus Olhos, pensou Arthur. Se eu pegar a primeira letra (primeira inscrição, se viu obrigado a corrigir) de cada palavra desta frase eu teria... INFINITO!
De toda forma não fazia sentido, Arthur (e Belforth) tinha consciência disso, mas aquilo acendeu alguma coisa em seu coração tão frio e triste. Frio como um cadáver, disse Arthur a si mesmo.
Sentia-se mais confortado agora. Sentiu uma grande amizade por Albino Belforth por tão simplesmente ter lhe dado o entendimento (compreensão) disso.
Obrigado, dizia o olhar de Arthur.
E Belforth compreendeu com um sorriso.


No último dia em Palas, Arthur se sentia melhor. Havia visitado a Sala do Infinito, embora não tenha entrado nela de novo. Talvez até pudesse ter entrado, se insistisse com o diretor, no entanto ele ainda não se sentia preparado.
Mas como todas as alegrias de Arthur Mortense, essa também durou pouco. Acabou exatamente na sua última conversa com seus amigos nesse ano. A última que teria com eles por meses de solidão.
Estavam todos lá.
Liana conversava com Felícia (que estava melhor, somente seu braço ainda possuía alguma ferida não cicatrizada). Thiago ouvia a conversa das duas de soslaio enquanto falava alguma coisa com Silvano sobre Vítor (que fora transferido para um hospital), os dois cogitavam se ele sobreviveria, e Silvano, como uma falsa cara de tristeza, disse que seria uma pena se isso ocorresse. Felipe estava abraçado com Ana.
Os dois não estavam abraçados até me verem, pensou Arthur com amargura.
Quando todos viram Arthur vindo na direção deles (mancando já que sua perna ainda não estava boa) ficaram estáticos. Pararam de conversar e de se mexer. Pareciam, pensou Arthur, um tanto assustados.
Arthur sorriu para eles e lhes cumprimentou.
- V-Você está bem... Arthur? – perguntou Liana, incerta. Ela olhava para os outros esperando reprovação por se dirigir a Arthur.
Os outros apenas olhavam Arthur.
- Finalmente livre do Amuleto. – disse Arthur, com os olhos fixos em seus costumeiros amigos. Perguntou-se se ainda podia chamá-los de amigos. – Me sinto melhor sem aquelas visões e... vozes.
Thiago deixou sua varinha cair, e a recolheu rapidamente murmurando algo.
- Que bom... – respondeu a garota incerta.
Felícia tentou sorrir mas só conseguiu uma estranha careta.
Eles ficaram ali se olhando, sem saber o que viria depois, por exatos um minuto. Arthur tinha certeza do que eles esperavam. Esperavam que ele enlouquecesse, que sacasse uma varinha e os matasse, porque era isso que seus “amigos” pensavam que ele era: um assassino.
Arthur quis sentir raiva, ódio deles, mas desde que destruíra o Amuleto parecia está desprovido de sentimentos fortes, como raiva e amor, por exemplo.
Que parte dele havia restado?, se viu perguntando antes de retornar a realidade.
- Vou indo... – disse ele ao grupinho. – Ainda não fiz todos os exames! – era mentira.
Arthur se retirou às pressas pelo corredor, mancando. Thiago fez menção de falar com ele quando o garoto passou por ele, mas ao ver o olhar acusador dos outros, desistiu.
Arthur sentiu seus olhos arderem.
E sabia que não estava com nenhuma irritação ou cisco...


A porta do Varinha Solta – Uma varinha realmente mágica, se abriu e o velho sino soou roucamente, quase doentio. Um homem, envolvido em trapos negros, cruzou pela loja e se aproximou do balcão.
Não se via rosto por debaixo dos panos úmidos e fedorentos.
Diogo Proshinik, que estava arrumando uma pilha de caixas que alguns de seus “serezinhos” haviam derrubando, veio dos fundos da loja resmungando. Nem estava na época das voltas as aulas, e pelo que ouvira, provavelmente nem haveria, Palas talvez fosse fechada para sempre, pensou com humor. Então porque diabos alguém estaria em sua loja naquela época do ano? E justo no dia em que ele pôs a placa de fechado na frente?
- Quemrr estarr aquirr? – sua boca exalava saliva ao falar.
Proshinik parecia mais velho e cansado que o de costume.
Quando chegou ao balcão e viu aquela estranha figura, teve de se segurar para não gritar. Viu o homem retirar os terríveis panos negros que o cobriam e revelar uma face ainda jovem, de olhos negros (negros como uma pedra azk) e cabelos castanhos e lisos até a altura do ombro.
- Você? – disse Proshinik surpreso. E com certa alegria, e medo. – Você está de voltarr?
O homem deu um sorriso irônico.
- Temos negócios a tratar velho amigo. – disse. – Não acha?
Proshinik sorriu.
- Sim, velho amo! Meu caro senhor, Leto Mortenserr!


A viagem de volta no Báltico fora triste e melancólica, por sorte, o Ancoradouro 3 era a primeira parada. Thiago e Ana desceram junto com Arthur (e alguns mais) mas não deram nem sequer um olhar ao garoto.
Arthur desejou que eles o olhassem, nem que fosse com raiva nos olhos, mas que pelo menos olhassem!
Mas não olharam.
Caminhando lentamente e muito deprimido, Arthur esbarrou nas formas volumosas de Cléber Freidel. O homem lhe sorria, e parecia apático a toda desgraça que lhe ocorrera esse ano. Foi então que Arthur se lembrou que Freidel lhe dissera que Palas seria maravilhosa...
E como fora, sussurrou Arthur triste.
- Não fique assim, Arthur! – disse Freidel. – Não conseguiram fechar Palas, e você não teve culpa de nada!
- Não é isso. – retrucou o garoto. – São eles. – e apontou com a cabeça para Thiago e Ana.
Freidel mirou os dois primos e então se voltou para Arthur.
- O que tem eles?
- Nada.
- Diga, sou seu amigo!
- É? Eles também diziam que eram meus amigos e... Ah, esquece!
- Eles o culparam, não é?
Freidel pôs suas mãos sobre o ombro de Arthur, com compaixão.
- É, idiotas. – rugiu Arthur. Pela primeira vez em dias, irritado. – Nem mesmo sabem todo sacrifício que eu fiz. Tudo pelo que passei. Deveria ter sido com eles!
E ao contrário do que Arthur esperava, Freidel riu.
- Isso logo vai passar, Arthur. – disse o secretário de Palas, Freidel. – Dê tempo ao tempo, estão assustados!
- Será? – indagou Arthur incrédulo.
Observou chateado até Thiago e Ana sumirem por entre a multidão.


Virgilius arrumava as coisas em sua sala. Tudo parecia ter sido tocado pelo diabo durante esse ano. Tudo estava uma infernal bagunça. Com a irritação diária arrumava suas coisas quando um homem de cabelos curtos e castanhos, grisalhos nas pontas das laterais, com uma vestimenta simples de trouxa entrou.
- Então se sente seguro em vir aqui agora? – disse Jorge Virgilius com veemência. – Agora que o perigo passou?
O homem se aproximou, ainda calado, parou diante de Virgilius, com uma expressão séria.
- Apenas não quis arriscar como você, Jorge. – disse ele. – Sua insistência de ficar na escola durante os últimos doze anos causou muitas perdas. Fortaleceu Leto!
Virgilius deixou o livro que segurava ir ao chão.
- Eu estive aqui tentando fazer o trabalho sujo que você não teve coragem de fazer. – rugiu Virgilius. – Estive aqui durante todo esse tempo tentando eliminar o Amuleto – Parou para tomar fôlego – Para destruí-lo antes que Arthur...
- Chegasse? – completou o homem. – Sei que era por isso. Mas também sei que foi uma atitude imprudente. E todas as “mortes acidentais” que ocorreram durante esse tempo por causa da sua presença, da presença de nosso sangue?
- Só eu sei o que passei! Não precisa me lembrar...
Virgilius gritava agora.
- E Belforth estava de acordo. – acrescentou.
- Mas eu não! – disse o homem. – Não se pode interferir no destino...
- Você e suas teses que se dane. Vou fazer tudo que puder... Sabe o que aguarda por Arthur, não sabe?
O homem ofegou.
- É sobre isso que vim falar, Jorge. – ajeitou os óculos de aro dourado que usava. – Vim falar sobre Arthur e o inevitável!
- Não acredito que algo venha a se cumprir. – disse Virgilius, tentando convencer mais a si do que ao homem com que falava.
- Não se muda o destino! – repetiu o homem e dessa vez foi definitiva.
Virgilius finalmente se dera por vencido.
Sentou-se e disse:
- Muito bem. Sente-se. – esperou o homem sentar. – O que pretende fazer então, Hermes Mortense?


– FIM –
Continua em ARTHUR MORTENSE E A SEMENTE DO MAL

Escrito entre 10 de Outubro de 2003 e 7 de fevereiro 2004

Dedico está Fic a todos que de alguma forma apoiaram ao projeto e a todos que leram até aqui.

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