O Princípio



A subida de volta parecia ter sido tornado tão mais longa que a descida, não pelo desgaste, ou que dessa vez ele estava subindo e não descendo, na verdade, era como se houvesse ali mais degrau do que houvera antes.
E o próprio Amuleto nas mãos de Arthur parecia se tornar mais pesado a cada degrau vencido. No fundo, a pedra Azk, o coração do Amuleto dos Pesadelos, parecia saber (o que não era de todo improvável) que o garoto não lhe reservava cobiça, que ele não estava a desejando pelo mal – pelo seu grande mal.
Não haveria uma segunda era de trevas sobre a Terra nas mãos de Arthur, pensava a pedra. Ele ainda é jovem demais para ao menos pensar em tamanho mal. Em tamanho ódio. Somente Leto poderia unir-se a sua aura maligna.
“Somente Leto deseja tanto o mal como eu desejo”
Azk, a pedra negra, havia sido criada pelo antigo senhor do mundo inferior com apenas um propósito: re-construir toda a maldade que um dia ele havia posto sobre a face da terra.
“Se ele fosse um pouco mais velho...”, lamento o amuleto.
Só mais um pouco...
O coração das crianças é mais forte que uma grande fortaleza. Mas Arthur já estava deixando de ser uma criança, estava quase na idade certa. Na adolescência. Onde o mal, o verdadeiro mal, poderia penetrar em seu peito.
O mal que se derramaria pelo mundo.
Mas agora, nesse momento, isso seria impossível.
Arthur agradeceu aos céus quando saiu pelo alçapão da caverna, cruzo-a e viu a lua azulada lá fora. Mas toda sua alegria se esvaiu um pilar imenso, de uma luz também azulada, que se projetava da caverna onde estivera até o firmamento.
O castelo de Palas, do lado oposto, parecia insignificante perante aquilo.
Um pequenino coração do amuleto começou a bater mais rápido ao ser iluminado pelo pilar de luz negra. Era como se um grande imã o tivesse atraindo. Arthur podia sentir o objeto querendo fugir das suas mãos.
Firmou suas mãos sobre ele, e conteve. No mesmo instante visões, visões de muitas coisas vieram na sua jovem e ainda tão inocente mente. Visões de dor, de sofrimento. Visões de todas as coisas que Arthur abominava.
Visões de seus amigos e familiares, inimigos e desconhecidos, inundados num mundo de trevas.
Quando a força empregada pelo Amuleto dos Pesadelos provocou-lhe um corte doloroso e profundo nas mãos, a única coisa que conteve seu impulso de atira-lo para longe, para muito longe – Longe até mesmo da existência – foi seus amigos, e todas as pessoas que um dia lhe importaram.
Que lhe importaram num mundo e num tempo tão distantes daquele que parecia outra vida.
Não podia deixar que isso acontecesse a eles.
Nunca!
Tinha de salvá-los. Salvá-los contra todo o mal que Leto trazia em seu peito. Tinha que destruir o amuleto. Ainda que não soubesse como.
Contudo, ele tinha medo. Arthur se envergonhava de ter medo, mas tinha. Tinha mais medo do que se pode medir em palavras. Tinha medo de enfrentar aquele mal, tinha medo de Leto, tinha medo do que todos diriam quando soubesse que ele entrou na Sala do Infinito, tinha medo de Ana e do que lhe fizera, tinha medo de re-encontrar seus amigos, sua mãe, seus irmãos e tinha medo do que podia está acontecendo.
Ainda que não tivesse uma idéia clara, Arthur Mortense no fundo sabia que muita gente estava se machucando. Que muita gente estava sofrendo por sua imprudência... O que diriam?
“Que você é culpado!”, disse a velha Voz Invasora. “Por que é isso que você é: CULPADO. Um grande criminoso.”
- Eu só queria acabar com isso. – replicou Arthur consigo mesmo, enquanto se embrenhava, quase se arrastando, pela floresta em direção ao castelo. – Eu não agüentava mais ter os sonhos... As Visões... O medo...
“E matou seus amigos com isso”, desferiu a voz. “Porque muitos deles morreram, muitos deles morreram porque você não fez o que Belforth lhe mandara fazer. E sabe do que mais? Palas está acabada!”
- Você não sabe o que está dizendo.
Terminando sua fala, Arthur caiu no chão tremendo. Sentia-se febril e doente. O amuleto ainda estava firme em suas mãos. Ele não o deixaria cair por nada, não o deixaria cair por seus amigos e por todo sofrimento que ele pode os trazer.
Levantou-se novamente.
Pensar em seus amigos o dava forças. Podia ser mais forte que o amuleto ao pensar nos bons momentos que teve em Palas, e mesmo os que tivera fora dela.
- Vou trazer-lhes um amanhã. – disse Arthur, se pondo a caminho do castelo mais uma vez. – Vou dar-lhes um amanha ainda que não haja um amanha para mim!
E então Arthur teve mais uma visão. Uma visão dele mesmo, como estava agora. Fraco, cansado, sem esperança, com o objeto de sua desolação nas mãos – o amuleto. Ele caia, caia do céu em direção ao mar, sua vida passava toda diante de seus olhos nos poucos segundos da queda. Mas seu único e real pensamento era em destruir a coisa em sua mão, destruir pelos outros. Ele apertava e apertava e então sentia o baque forte no mar...
... e tudo escurecia.
A visão não durou mais que um segundo.
Arthur seguiu seu caminho.


Felipe continuou a rir sem emitir som. Só mostrando seus dentes brancos, com um sorriso no canto dos lábios.
Poderia ter dado certo, pensou.
- FELÍCIA! – gritou Liana histérica. – FELÍCIA!
- O que aconteceu? – oscilava Thiago sacudindo Felipe. – Diz alguma coisa.
Os outros só conseguiam olhar para o quarto desabado catatônicos. Alguns poucos tinham sensibilidade suficiente no corpo para conseguir chorar.
- Ela morreu! – choramingou Liana se jogando no chão sujo. – Ela... não... Felícia não...
Blackheart continuava calmamente a se recuperar do susto.
- Como pode ficar tão calmo seu imbecil? – disse Thiago sacudindo Felipe e vendo, por um fugaz segundo, a sobra do que fora um sorriso. – Você não está...? Você não pode ser tão frio.
Thiago Brandevil nunca se encheram de tanto ódio como se enchia agora. Um ódio tão intenso que preenchia todo seu peito. Como ele podia estar rindo?
Thiago acertou um soco do lado da cabeça de Felipe, que se sentiu tonto antes de perceber o que ocorrera.
- O que você pensa que está fazendo seu retardado. – gritou Felipe.
- Você é um canalha. Como pode rir... – exasperou Thiago.
Os outros se viraram inexpressivos para cena.
- Eu... O QUE VOCÊ SABE BRANDEVIL, SEU PASMO!
Felipe pulou sobre Thiago e lhe desferiu três socos que fizeram o nariz do garoto sangrar.
- Pára! – gritou Liana. – Parem com isso... parem por favor.
E por pouco a garota não desmaiou.
- E para sua informação, Brandevil... – disse Felipe irritado. – Eu salvei sua amiga!
Felícia está viva...


Arthur ouviu um estalo no joelho logo no começo da subida que levava ao castelo. Sentou-se ofegante, olhando para a floresta escura atrás de si e para o imenso pilar de luz negra que se erguia da ilha.
A cada segundo o garoto pensava que Leto ia emergir daquela escuridão repugnante. Que o homem, se é que aquilo ainda era um homem, o mataria e tomaria o amuleto para si novamente.
Está fácil demais, pensou Arthur. Fácil demais...
Foi quando uma mão adulta pousou sobre seu ombro.
No impulso de seu temor, Arthur deu um salto seguido de um grito, firmando o amuleto sobre a mão sangrante. A subida enlameada e escorregadia o fez despencar no chão, o sujando de terra e barro.
Já estava erguendo sua varinha quando percebeu que quem estava ali era Jorge Virgilius. O homem, com seus cabelos intensamente negros caídos sobre o rosto, olhava Arthur de modo avaliador, não parecia irritado, mas tão pouco parecia contente.
- Me dê o amuleto, Arthur. – disse ele com uma estranha calma.
- Não! – replicou o garoto sem ao menos pensar na proposta. – Ele é meu!
- Leto o está deixando com você, Arthur. Você sempre fez parte dos planos dele, desde antes de você nascer. Por favor, me dê o amuleto, eu posso destruí-lo...
- Não, você vai... – Arthur não tinha nem idéia do que Virgilius podia fazer com amuleto. – Vai usá-lo.
- NÃO SEJA TOLO, MENINO. – rugiu Virgilius, fazendo Arthur estremecer. – Eu jamais usaria essa coisa!
Isso pareceu transpor Arthur de volta a realidade. Coma mão sangrando e tremendo estendeu o Amuleto para Virgilius, fixando os seus olhos castanhos nos olhos negros dele. Queria desesperadamente confiar no homem.
Tinha de confiar nele, ou em qualquer outro, se não enlouqueceria.
Virgilius já havia posto sua mão sobre o amuleto quando uma fênix negra, cujas penas salpicavam como chamas de trevas, desceu num rasante em direção a eles e tomou o amuleto de Arthur e Virgilius.
A fênix deu uma volta pelos dois, exibindo o amuleto firme em suas garras e subiu em direção ao castelo de Palas, pousando sobre a torre mais alta, fitando com seus olhos amarelos à noite.
Num minuto o terrível pássaro negro estava lá, com seu corpo envolvido por penas que pareciam ser feitas de fogo negro, e no outro Leto estava em seu lugar com o amuleto em mãos.
- Bem-Vindos ao futuro! – vociferou Leto da alta torre, e sua voz ecoou brandamente, como emitida por um holofote.


Foi um trabalho duro, mas após quase um hora de pedras e mais pedras, Felícia surgiu em meio aos escombros, sangrando, desmaiada, mas viva. Viva como Blackheart dissera tê-la mantido. De toda forma, o estado de Felícia era grave.
- Ela vai ficar bem, não vai? – perguntou Liana assustada. Olhava assombrada para Felipe. – Como você fez isso? – perguntou a ele. – Como salvou Felícia? Porque não a tirou de lá como me tirou?
- Uma pedra a escorou contra a parede dos fundos e faltava pouco pro... teto, cair. Se eu ficasse mais um segundo teria morrido, então fechei ela, fazendo uma... cabana com o próprio escombro. – Felipe engoliu em seco. – Calculei que ela fosse ficar bem ali, ainda que se ferisse.
- Desculpa, Felipe. Eu pensei que... – Thiago nunca chegou a terminar o que ele havia pensado. – Desculpa!
Felipe fez um aceno de que não tinha importância.
- Estou preocupado com Ana. – disse ele logo em seguida. – Não quero nem pensar no que pode ter acontecido... Ana?
Ana Rivers com seus cabelos louros balançando, ainda sensuais, veio às pressas pelo corredor destruído do dormitório feminino. Seu rosto sempre tão perfeito estava inchado de um dos lados, e havia uma tira de sangue nos seus lábios.
- Foi o Arthur... – ofegou ela. – Ele é o culpado de tudo! Ele foi naquela sala... Ele pegou o amuleto... Ele está louco!
Todos se entreolharam incrédulos.


Quando Arthur e Virgilius amarrados pelos pulsos, e com as pernas agindo contra própria vontade, entraram no Salão Principal, onde se faziam as refeições, seguidos pela fênix negra Leto Mortense, Albino Belforth seguido de Ludovico Gybrael, o Profº de Ocultismo, se postaram a frente deles vindo da porta dos fundos, que dava a um corredor que coincidia por fim na sala dos professores.
A fênix emitiu um rosnado, um assobio próximo do malévolo, que se assemelhava a um riso. Posou entre Arthur e Belforth, e então, num cortina de chamas negras, se dissolveu na figura humana de Leto – se é que se podia associar Leto com humano.
O jovem Arthur vinha pensando nisso nos últimos minutos. Perguntou-se se Leto ainda era uma pessoa, após quase três séculos de... bem, Arthur não sabia de quê... afinal o que se era sem corpo e alma? Uma sombra? Um sopro de alguma coisa viva? Um...
Pesadelo!
Não foi Arthur que respondeu essa incógnita. Foi outra coisa. Seu outro eu, o outro Arthur. Aquele ser monstruoso que ficava escondido na menor parte de seu cérebro, de sua vida, o Arthur mal, a sua parte escura. À parte que ele mesmo atribuía ao Amuleto dos Pesadelos.
- Finalmente aqui, Leto. – disse Belforth com estranha calma e frieza.
- Vivo, e igualmente forte, ao que vê. – respondeu o bruxo das trevas Leto, com seu antigo e temível sarcasmo.
- Ao que vejo não a nada de vivo em você. – retrucou o diretor com veemência. – Você está aqui, e é o que é. Não é um humano Leto, é uma víbora. Um verme que rasteja na sombra do que fora um dia.
Leto riu.
- É uma pena que pense assim! – disse sem se importar.
Os dois homens, ou melhor, os dois bruxos, ficaram se entreolhando. Um parecia tentar penetrar os pensamentos do outro. Ou mesmo, pareciam esperar pelo próximo passo do outro. E foi nesse momento que Arthur teve mais uma visão.
A última visão desse dia, e a última por um certo tempo.
Vi ele próprio. Ele segurava o amuleto contra o corpo. Pensava nos amigos, e na sua família, e em Belforth também e Virgilius. E ele caía. Oh, e como caía, caía no infinito. O infinito e suas garras da morte, a morte de um individo que não era mais do que a página de um livro: o grande livro da eternidade.
Porque, o que era Arthur Douglas Mortense, e todas as pessoas do mundo, perante a eternidade? Uma página. Uma página que logo estaria virada, e depois de dias, meses, anos, séculos, milênios, estaria esquecida.
Pois no fim todos serão esquecidos.
Quando morrermos já não haverá (talvez haja por um certo tempo) quem se lembre de nós, que lamente o ria por nós... que nos torne vivos mesmo em velhas lembranças.
Isso era a morte.
E Arthur via a morte, a morte cobria a ilha de Palas com seu tenebroso manto negro. E sorria para ele.
Arthur tremeu ao tomar consciência disso.
A morte estava sorrindo para ele.
A coisa – a Dona Morte – tinha veste negras longas e sujas. Carregava uma foice, uma grande foice com cheiro de sangue e vida (ainda que Arthur não soubesse qual era o cheiro da vida) em sua lâmina lascada. Tinha grandes olhos vermelhos, e um rosto de caveira escondido pelas sombras de seu manto.
“Eu sou a morte, Arthur”, disse ela. “Eu sou o esquecimento. Logo as páginas vão mudar, e tudo que tem de ficar esquecido ficará esquecido...”
E então a visão se dissipou.


Só pegue-o e corra!
Foi tudo que Arthur sabia que tinha de fazer. Pegar o Amuleto e correr. Fora a voz idosa e forte, até mesmo doentia, de Belforth que lhe dissera isso.
Havia estrondo por toda escola. Havia coisas (que Arthur não se atrevia a tentar imaginar o que eram) se movimentando por toda escola. Coisas tenebrosas, pensou. Pesadelos. E eles estavam por todo o castelo.
Leto conjurou um feitiço com as mãos, e uma varinha negra, muito maior que uma varinha comum, com a base feita de uma metal reluzente como a prata emergiu a sua frente. Ele a usou para lançar um feitiço letal em Belforth, que o repeliu com uma espécie de campo de forças avermelhado.
O feitiço chicoteou contra uma das vigas do Salão que ficou resumida a poeira.
Gybrael lançou uma espécie de garras azuladas, que vinham da ponta de sua varinha, contra Leto. Por um ou dois segundos, as estranhas mãos pareciam terem dominado Leto, mas logo elas se desfizeram numa nuvem esverdeada e Leto lançou Gybrael por cima da mesa que Arthur costumava fazer as refeições.
E foi ai que o Amuleto veio ao chão, que Arthur ouviu a voz, que Virgilius se libertou e o tempo parou. Desse momento em diante tudo se tornou tão confuso, tão nórdico, tão incompreensivo, que Arthur perdeu a noção de tudo e todos.
A noção até da lucidez.
Como em câmera lenta ele avançou para o amuleto caído entre disparos de Virgilius, Belforth e Leto. As explosões soavam por todos os lados e até o estrondo parecia vir vagarosamente, muito vagarosamente...
Arthur se jogou ao chão, para o amuleto, e se viu caindo tão devagar, que pensou que talvez estivesse voando. A voz de Leto e de alguém mais chegou-lhe aos ouvidos devagar, fraca, e sem nitidez. Viu se cego momentaneamente por um rojo de luz vermelha, vermelha como sangue, e então sentiu uma dor entorpecente na altura dos rins e...
...caiu!
Rolou sobre o chão. A velocidade do mundo agora normal. Ergueu a mão para o amuleto e se viu cheio de felicidade ao fechar os dedos seguramente sobre ele. E seu lado maléfico, que já não era mais tão pequeno como costumava ser, se alegrou com o tum-tum-tum do coração do objeto – a pedra Azk, a pedra negra.
Antes que Leto ou qualquer outro compreendesse o que o garoto acabara de fazer, Arthur compreendera suas visões. Entendera o seu propósito, e de alguma forma, o modo de tornar toda a dor que causara em algo mais ameno.
Tinha descoberto como destruir o amuleto para sempre...
...como deixa-lo esquecido nas paginas da vida!
E nesse momento se pergunto se teria coragem para faze-lo. Pensou primeiramente que não. Mas ao pensar nas pessoas que haviam sido mortas (uma delas talvez até um de seus amigos) e em tudo que o “despertar” de Leto houvera causado, se encheu daquilo que pensara ter perdido, sem é que algum dia tivera.
Coragem e amor.
Coragem para enfrentar o que teria de enfrentar pelas pessoas que amava.
Se levantou, sem prestar atenção no que ocorria ao seu redor e correu. Sim, Arthur Mortense nunca havia corrido, e nem correria de novo, como corria agora. Ele correu, correu e correu. O mundo parecia não parar mais naquela que ele concluíra ser sua última jornada.
Irei morrer, pensou ele. É por vocês caras. Por você mãe, por vocês irmãos, por vocês amigos... Por todos vocês.
Assim, antes que Leto e os demais tomassem consciência do que viam, Arthur Douglas Mortense se atirou pela grande vidraça nos fundos do salão. Era uma vidraça imensa, com o grande leopardo que simbolizava Palas, era um vidro forte, rígido e bonito. Era como uma parede.
Mas não detivera Arthur.
Virgilius, que mais se alarmou e horrorizou com a cena, pensara, desejara na verdade, que detivesse ele. Pensou (desejou) isso até segundos, milésimos de segundos, antes de ouvir aquele trinchar pavoroso, e a vidraça de vários e vários metros, e várias e várias vezes, maior que Arthur, explodisse. Sim, explodisse. O som do impacto era como o de uma bomba, uma imensa bomba.
Pois naquela hora Jorge Virgilius caiu no chão, ajoelhado, desamparado, vazio. O chão embaixo dele parecia mera alucinação. Na verdade não o sentia. Se sentia num lugar vago e infinito. Pois ele sabia o que havia depois daquela vidraça. Havia um abismo, um desfiladeiro, que terminava numa queda de 25 metros que por fim terminava numa pequena praia e no mar... e nas pedras.
E de onde Arthur não escaparia.
Virgilius sentiu seu peito se apertar.
Havia perdido Arthur para sempre...
“Para a eternidade... que para nós é apenas uma página”


Denise Mortense, a mãe de Arthur, acordara exatamente no momento em que Jorge Virgilius sentiu o mundo afundar na escuridão da dor. O coração dela estava acelerado. E sem qualquer lógica, ou explicação ela sabia que...
- Eu o perdi. – sussurrou ela para o Cafofo que jazia no escuro. Sua voz bambeava incrédula. – Eu perdi o meu... o meu pobre Arthur...
E então ela gritou.
Denise Mortense gritou como nunca, assim como o filho correra como nunca para aquele tenebroso desfiladeiro da morte.
Carlos, Diego e Pedro, os irmãos de Arthur, acordaram assustados.
Ou melhor, apavorados!


Enquanto Virgilius e Denise vinham o mundo perdido e terrivelmente escuro, Arthur sentia tudo finalmente claro e puro, alegre e bonito. Sentia o vento cada vez mais forte e a queda cada vez mais rápida.
Tudo tinha tão mais clareza agora.
Viu o Amuleto de Jagaha, o Amuleto dos Pesadelos, em sua mão, e viu que sobre ele, Arthur D. Mortense, o objeto já não tinha mais efeito. Não tinha porque Arthur já não tinha mais medos, nem mesmo a dor do impacto contra aquela monstruosa vidraça lhe assolava.
Estava, pela primeira vez desde quando se lembra, vivo de verdade.
Durante a grande queda teve uma visão da coisa. Uma boa visão dela.
Uma visão de verdade meu caro. E assim também viu a morte de novo.
“Eu sou a morte, Arthur”, disse ela. “Eu sou o esquecimento. Logo as páginas vão mudar, e tudo que tem de ficar esquecido ficará esquecido...”
Porque?, perguntou Arthur. Porque tudo tem que ficar esquecido com a morte, não com o fim, mas com a morte?
“E a vontade Dele!”, respondeu Dona Morte.
Dele quem?
“Do Criador”
Então Arthur sentiu uma imensa e avassaladora dor. Suas pernas pareceram rachar, sua cabeça pareceu afundar, sentiu o frio do mar gélido e tudo voltou a sumir. Até sua consciência.
E ele sentiu-se afundando no aconchego do esquecimento.
Porque tudo que tem de ficar esquecido ficará esquecido!


Em meio toda a confusão gerada pelo ato desesperado de ato, Leto conseguiu escapar. O bruxo se sentiu fraco, ao sentir a destruição do Amuleto. De alguma forma que ele não sabia qual, Arthur, exatamente Arthur, justo a quem já temia, destruíra seu Amuleto.
Seu precioso Amuleto.
Leto Mortense se contorceu nas chamas azuladas das trevas e em seguida saía pelos destroços da vidraça (que Arthur destruíra) como uma fênix negra. Contorcia-se em ódio. Ainda teve tempo de fazer uma busca superficial ao redor da ilha antes de ir embora, perdido e amedrontado. Era fraco sem o amuleto.
O amuleto que estava definitivamente perdido para sempre.
No infinito!
Algum tempo depois, algo entorno de cinco minutos, no Salão Principal, Gybrael perguntou a Belforth:
- Acha que ele vai voltar?
- Creio... – Belforth parecia duas vezes mais velho que o de costume. – Creio que ele vai voltar, não tem outra escolha a não ser continuar, mesmo que ele não tenha idéia de como vai prosseguir agora... – Belforth sentiu uma lágrima escorrer-lhe pelo rosto – Agora que Arthur destruiu o Amuleto.
Gybrael olhou o diretor espantado.
- Então ele foi destruído mesmo?
- Sim.
- Como tem certeza?
- Assim como Leto – o velho explicou – sei que somente aquele cujo sangue escorria sobre o amuleto, ou seja, um Mortense... Somente um Mortense poderia destruir o amuleto se desse a vida em favor disso...
- Então Arthur está mesmo morto... – Gybrael afirmou ao invés de perguntar. Não deixou lágrimas caírem, mas se sentia igualmente infeliz.
Afinal, era apenas uma criança.
Virgilius permanecia inconsolável.
E Belforth respeitou sua dor. Compreendia-o. Mas sabia que era só o principio...


O corpo morto de Arthur afundava vagamente pelas águas. O Amuleto ainda firme em suas mãos parecia tão sólido quanto antes, até que, de um segundo para o outro, desapareceu
(tudo que tem de ficar esquecido ficará esquecido)
e as mãos quase infantis do garoto se agitaram como o balanço do mar, vazias. Solitárias.
Dentro daquela consciência recentemente morta só havia uma mágoa, que ironicamente era também sua maior alegria: o amor que sentia por seus amigos, e o amor ainda maior que sentia por sua família.
Era a única chama que ardia dentro daquele corpo já frio, cujo coração já estava morto. Uma chama que ia se extinguindo, mas que ainda provocava o sorriso do corpo jovem e falecido.
E quando o corpo, já vazio de vida, começou a retornar para superfície, pouco depois, a pequena chama de calor, de amor e de felicidade que nela havia, se apagou. Apagou para sempre. E um corpo inerte e vazio foi lentamente sendo arrastado para a praia da ilha. Logo ele estava repousado na areia, sendo chocalhado pelas ondas.
Os olhos do garoto permaneciam abertos, e agora demonstravam horror, olhos mortos e horrorizados.
Sua mão morta fechou o punho sobre um bolo de areia.
E ali o cadáver de Arthur Douglas Mortense pereceu.

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