Delírio



O dia se passou lentamente sem que Lady Glamis ousasse sequer se mexer. Tiago dormia profundamente, a cabeça sobre o encosto do banco. A fantasma o observava com um sorriso tímido, sabendo que, pelo menos naquele instante, ele estava em paz.

Finalmente chegou o entardecer. Embora não houvesse janelas no salão, ela sentia o tempo passar e sabia que, lá fora, as últimas luzes do crepúsculo começavam a desaparecer. Foi quando as portas da capela voltaram a se abrir. Tiago levantou a cabeça, piscando os olhos com força, encontrando primeiro Lady Glamis e, em seguida, Lílian.

Ela estava, se é que isso era possível, ainda mais pálida, quase como se a competir com a fantasma. E os olhos verdes, embora tivessem um brilho decidido, mostravam uma dor que até aquele momento Lílian não deixara ele perceber. A ruiva parou diante de Lady Glamis, respirando fundo.

- Seja lá o que precisa ser feito, vá em frente. Eu estou pronta.

Tiago levantou-se, e embora uma parte dele dissesse para ele se alegrar, a outra abominava o que eles iriam fazer. Lady Glamis observou a jovem por alguns instantes antes de se virar para ele.

- Venha comigo, senhor Potter. E você, guardiã, espere aqui.

Lílian assentiu e Tiago seguiu a fantasma pelos corredores do castelo. Pelas frestas das cortinas que escondiam os janelões de vidro ele podia enxergar o céu escuro, sem lua e sem estrelas. Finalmente Lady Glamis parou diante de uma porta e deu passagem para que ele passasse. Tiago a abriu e voltou-se confuso para a fantasma.

- Uma cozinha?

- O que esperava? Uma masmorra? - ela sorriu - Você está fraco, não come nada desde ontem. Se alimente primeiro. Não será uma noite muito agradável. Nem para você, nem para ela.

Tiago assentiu e seguiu até a geladeira, logo se servindo de uma generosa fatia de torta de morango.

- Como é que tem comida aqui?

- Vão desisterditar o castelo amanhã. Os turistas sempre apreciam lanchar por aqui, então os atuais donos do castelo fizeram uma reforma na nossa antiga cozinha para os visitantes se sentarem lá enquanto conversam e gastam seu dinheiro, e construíram essa aqui para preparar os lanches.

Tiago assentiu, terminando de devorar a torta e seguindo para alguns salgados guardados numa prateleira de vidro. Quando ele finalmente terminou de fazer seu "lanche", Lady Glamis voltou a indicar o caminho, dessa vez por escadas que levavam às torres do castelo. Eles entraram num quarto cheio de poeira, onde, numa mesinha, vários vidros com substâncias coloridas que pareciam borbulhar estavam guardados. Lady Glamis aproximou-se da mesa, observando os líquidos antes de escolher um vermelho fogo.

- Beba isso. - ela disse, estendendo o frasco para ele.

- O que vai acontecer?

- Basta saber que isso vai ajudar. Quando tomá-lo, vai sentir muito cansaço e cairá num sono profundo. Amanhã, quando tudo tiver terminado, você acordará como se nada tivesse acontecido.

O moreno olhou desconfiado para ela mas acabou por obedecer. E, como Lady Glamis dissera, assim que o conteúdo do frasco tinha sido totalmente ingerido, os olhos dele fecharam-se devagar e, encostando-se na parede, seu corpo escorregou até o chão.

Enquanto isso, Lílian esperava, sentada no mesmo banco em que Tiago adormecera. Fechando os olhos para não encarar o altar, a ruiva tentava esvaziar a mente, pois sabia que estava a um passo de voltar atrás. Finalmente, depois do que lhe pareceram horas, as portas da capela voltaram a se abrir e Lady Glamis entrou, sozinha. Lílian se levantou.

- Onde está Tiago?

- Dormindo. E logo você também estará. É a única coisa que posso fazer para amenizar sua provação.

Lílian assentiu.

- E como vai fazer para...

A fantasma sorriu.

- Você não precisa conhecer todos os detalhes. Agora venha.

As duas seguiram pelo castelo até o quarto defronte ao que Tiago dormia. Lílian podia sentir a aura ansiosa dele. Suspirando, ela adentrou o quarto em que Lady Glamis já entrara.

Embora apenas uma vela iluminasse o local, ela podia perceber que estava num amplo aposento, dominado por uma grande cama de dossel, que fê-la lembrar por um segundo dos dormitórios de Hogwarts. Lady Glamis aproximou-se com um vidro que continha a mesma poção vermelha que Tiago tomara.

- Beba.

Lílian aceitou a poção que lhe era oferecida, bebendo-a de um só gole. O líquido adocicado desceu por suas entranhas queimando e ela ajoelhou-se como se tivesse levado um soco no estômago, segurando-se com esforço numa das colunas da cama. A fantasma aproximou-se, a face assustada.

- O que houve? - Lílian perguntou rouca, como se cada palavra lhe custasse para sair dos lábios.

- Eu não sei. Essa poção é muito forte, você deveria estar dormindo!

Lílian mordeu os lábios, segurando-se para não gritar. Em outra ocasião, ela poderia pensar que a fantasma estava tentando envenená-la, mas, de alguma maneira, a ruiva sabia que aquilo não fora culpa de Caterine. Ela voltou os olhos verdes enevoados para Lady Glamis.

- Faça logo o que tem de fazer e me deixe sozinha.

Lady Glamis ajoelhou-se ao lado dela e Lílian percebeu algo brilhando por entre as mãos translúcidas da fantasma. Caterine observou a face congestionada da ruiva por alguns instantes e mergulhou as mãos em concha no ventre dela.

Lílian reprimiu o grito, tendo a impressão de que uma lâmina fria lacerava sua carne. Mesmo quando a fantasma se afastou, era como se a sensação que tivera quando fora tocada pela Thanatus houvesse triplicado.

- Saia. - a ruiva disse entre dentes, a respiração entrecortada.

A fantasma obedeceu e Lílian sentou-se sozinha, apoiando a cabeça na quina da cama, ainda segurando firmemente a coluna. Sua cabeça parecia explodir de dor e havia um gosto amargo em sua boca, o que estava lhe provocando ânsias.

Dez minutos se passaram enquanto ela tentava regular a própria respiração nas penumbras do quarto. Foi nesses poucos momentos de calmaria que ela percebeu uma aura muito fraca surgir junto dela. Ela olhou para sua barriga e lágrimas começaram a cair de seus olhos. Fora muito rápido. Provavelmente a poção que bebera tabém servia para acelerar seu metabolismo.

Ela dobrou-se sobre o próprio corpo quando sentiu uma forte pontada no ventre, esquecendo qualquer são pensamento. Um grito finalmente lhe escapou dos lábios, mas Lílian não recebeu mais do que silêncio como resposta.

Ela levantou a cabeça mais uma vez, a vista embaçada pelas lágrimas. A chama da vela bruxuleava no papel de parede branco e dourado. A dor era absurda e Lílian mergulhou num estado de semi-inconsciência, só quebrado pelos espamos de seu corpo.

- O poder do sacrifício - uma voz de menina soou em algum ponto da escuridão em que sua mente estava mergulhada - Você possui a chave da morte.

- Cale-se, irmã! - impôs-se uma voz mais forte, masculina - Não devemos fazer isso. Nós somos ecos das trevas e nada mais. Não temos o direito de brincar com a vida deles, ordenar seus sonhos e desejos.

- Mas ela precisa conhecer a verdade, Chaos. - uma outra voz, mais gentil e feminina, soou. Lílian a conhecia. Thanatus...

- Ela deve ter o conhecimento, mas como pode me garantir que os outros não tentarão intervir?

- Eu posso cuidar disso. - a vozinha infantil respondeu - Afinal, ela está agora em meu reino.

- Pois muito bem. - a voz forte finalmente concordou - Ela terá direito de escolher o próprio destino.

Lílian sabia que seu corpo continuava no castelo de Glamis. Mas, diante de seus olhos, o que via agora era um imenso descampado, iluminado pelo cálido luar. Olhando para si, percebeu que vestia uma túnica branca que se arrastava no chão, amarrada na cintura por um cordão dourado. Um manto bordado caía em pregas pelas suas costas.

Um vento suave, mas frio, fê-la se arrepiar e, inconscientemente, ela abraçou os braços nus, olhando à sua volta. Havia sombras de uma construção mais à frente e foi para lá que ela se encaminhou.

Há muitos anos, quando seus pais ainda eram vivos, eles a tinham levado até Stonehenge. Lílian ainda se lembrava do misto de terror e fascinação que sentira ao chegar ao monumento. Mas Stonehenge era apenas uma pálida lembrança diante do que se descortinava agora a seus olhos.

Havia no chão um enorme círculo de pedra com uma estrela de oito pontas em seu centro. De cada vértice do desenho, partia uma fina linha em direção a um pórtico esculpido na rocha bruta. Eram oito pórticos, sete idênticos. O oitavo se destacava, como um gigante entre seus irmãos. Lílian aproximou-se dele, notando inscrições entalhadas na pedra, palavras de uma língua muito antiga, que ela tinha certeza não conhecer. Mas, mesmo assim, ela sabia seu significado.

- "Somente o último dos sacrifícios pode abrir o portão de Hades. Aquele que possuir a chave deve enfrentar a dor para provar ao conselho sua força e poder, recebendo assim o comando dos exércitos do Ragnarock."

Uma pontada mais forte fez Lílian voltar a consciência. Ela deitou-se no chão, o corpo encolhido, tremendo. Um filete de sangue escorria entre suas pernas. Ela jogou a cabeça para trás, batendo violentamente contra o chão e voltou a se contorcer de dor.

Com dificuldade, ela voltou a apoiar-se na cama, sentando-se novamente, abraçada ao pé do móvel. Mal podia respirar. E, embora a dor a mantivesse consciente, só via diante de si o círculo de pedras, tendo ela em pé em seu centro.

Sem saber porque, Lílian tirou do pescoço seu inseparável cordão, percebendo, pela primeira vez, que o pingente era afiado... exatamente como um punhal. Estendendo as mãos para a frente, ela rasgou um pequeno talho em seu pulso. O corte logo se encheu de sangue que ela deixou pingar lentamente, hipnotizada pelo brilho vermelho, sem perceber que o líquido sumia no chão de pedra assim que o tocava, como se a rocha o estivesse absorvendo. Ela abaixou as mãos, sentindo o corte se fechar.

De repente, como no sonho que tivera antes de encontrar Saint-Germain, todo o chão pareceu tomado pelo sangue, um lago vermelho sobre o qual ela permanecia em pé, a túnica ainda imaculadamente branca.

Os pórticos começaram a brilhar com a mesma luz prateada que a aura de Lílian emanava, exceto pelo maior, por onde ela podia ver a lua crescente recortada contra o céu escuro. Assim como surgiram, a luz e o sangue desapareceram e, diante de cada um dos sete pórticos menores, havia agora um vulto.

- O Conselho dos Perpétuos está reunido. - Lílian ouviu-se dizer - Eu, Perséfone, a rainha do mundo sombrio, exijo que os portais de meu reino se abram.

Uma a uma, as vozes das sombras começaram a encher o ar.

- Apenas o sacrifício pode abrir os portais do Inferno.

Os olhos de Lílian dilataram-se, ficando completamente brancos. Passos ecoaram no descampado e um vulto surgiu diante do maior dos pilares. Os cabelos rebeldes iam e vinham com o vento e a lente de seus óculos refletia o luar acima deles. Tiago.

- Apenas o sacrifício pode abrir os portais do Inferno. - voltaram a repitir os vultos.

Lílian aroximou-se do moreno, tendo o pingente de Hades ainda seguro em sua mão. O pingente de Hades, a chave da morte...

- Apenas o sacrifício pode abrir os portais do Inferno. - a ruiva murmurou, parando diante de Tiago.

O rapaz não se moveu nem mesmo quando ela selou seus lábios com um beijo. Estava em transe. Assim como Lílian, que agora erguia a jóia. Rápida, a lâmina fez seu serviço. O sangue respingou em Lílian, tingindo sua túnica de vermelho. O corpo de Tiago caiu, sem vida, aos pés dela.

Lady Glamis, recostada à janela do quarto em que o moreno dormia, ouviu-o murmurar o nome da ruiva. Do quarto ao lado, mais um grito terrível veio. A fantasma voltou os olhos para o céu. Estava, enfim, começando a clarear.

Suando, Lílian se forçou a manter os olhos abertos. Ela respirou fundo, observando a poça de sangue em que estava sentada, manchando toda a sua saia. Mordendo os lábios, ela levantou os braços, apoiando-os com tal força na coluna da cama que o atrito começava a cortar seus dedos. Então aquele era o poder do sacrifício... E o pingente em seu pescoço era a chave da morte. Tinha que protegê-lo, pois era aquela jóia, aliada ao seu poder, que abria o Inferno. Embora sua vontade fosse jogar o cordão fora, ele ainda era sua responsabilidade.

- Que bom que entendeu. - a voz masculina que ouvira mais cedo soou, muito fraca - Nunca se esqueça que a Antiga Magia é uma magia de sacrifícios. Sempre que usá-la, estará sacrificando algo para ela. Talvez não tenha percebido... Ou só agora tenha entendido... Depois do que viu e ouviu essa noite, só use sua magia quando for estritamente necessário. Ela pode se voltar contra você.

A voz sumiu e Lílian refletiu por alguns instantes. Por isso, quando tomara a poção, não caíra no sono. Aquelas vozes... Elas a tinham mantido acordada para que pudesse saber. Internamente, ela agradeceu por isso. Embora tivesse sido doloroso, ela agora finalmente entendia a real natureza de seu poder e de suas responsabilidades.

O assassinato do sentinela pelo guardião provocaria a loucura no mesmo que, abrindo o Caronte, traria ao mundo o Ragnarock, os exércitos de anjos e nefilins. Voldemort contava em conseguir controlar Lílian para ter o poder desses exércitos.

- Tolo imbecil... - ela praticamente cuspiu as palvras, exausta demais para se importar com a dor - Ele nunca conseguiria controlar um guardião em sua loucura...

Ela voltou a encolher o corpo, fechando os olhos, lutando contra as ânsias. A vela terminara de queimar, mas o quarto ainda estava claro. Lá fora, finalmente, começava a amanhecer.

Tiago acordou quando os primeiros raios de sol começaram a inundar o aposento. Tirando os óculos, ele esfregou os olhos com força. Quando sua visão voltou ao normal, ele divisou as formas translúcidas de Lady Glamis contra a luz. Todo o castelo estava mergulhado no silêncio.

- Onde está Lílian? - ele perguntou para a fantasma.

- No quarto em frente. - ela respondeu.

O rapaz levantou-se num pulo, indo para o quarto onde a ruiva passara a noite. De algum ponto de suas confusas memórias da noite anterior vieram gritos, que ele sabia pertencerem a Lílian. Ele levou a mão à maçaneta. E se tivesse acontecido alguma coisa enquanto ele dormia? E se Lílian estivesse morta? Balançando a cabeça com veemência, Tiago abriu a porta.

Sentada no chão em meio a uma poça de sangue, estava Lílian. Ela tinha arranhões por todo o corpo e respirava entrecortadamente, apoiando-se no pé da cama. Ao ouvir a porta se abrir, Lílian levantou a cabeça. Seus olhos estavam vermelhos, o cabelo pregava-se em seu rosto suado, ainda marcado de lágrimas.

Tiago aproximou-se lentamente, ajoelhando-se ao lado da garota, sem se importar com o sangue. Ele levantou a mão, deixando-a a milímetros da face dela, encarando-a. E se não tivesse dado certo? E se...

Mandando as precauções às favas, Tiago tocou o rosto dela. A ruiva fechou os olhos, deixando uma lágrima se misturar ao riso cansado. Ele acariciou a face dela por alguns instantes, sentindo-se explodir de felicidade, os lábios curvados num misto de riso e suspiro enquanto começava a chorar.

- Lily! - ele exclamou alegre, abraçando-a com força.

Ela retornou o abraço, escondendo o rosto no pescoço dele. Como ansiara por aquilo, como pedira aos céus para voltar a tê-lo tão perto de si...

Tiago finalmente a soltou, beijando todo o seu rosto, sentindo o gosto salgado das lágrimas de ambos até finalmente encontrar os lábios da ruiva. Lílian se deixou perder num mar de sensações que conhecia muito bem e que sabia que apenas Tiago era capaz de fazê-la sentir.

Quando finalmente se separaram, mais por falta de ar que por vontade, ela passou a mão sobre os olhos dele, limpando as lágrimas. Nunca tinha visto o rapaz chorar, e mesmo quando o magoara ou quando estavam separados, ele sempre fora forte. E agora, ali estava ele, como um bebê chorão...

- Eu nunca tinha te visto chorar...

- É de felicidade. - ele respondeu num sussurro, aproveitando a sensação de cada toque dela - Eu te amo demais, pimentinha.

- Eu também te amo, Tiago. - ela disse com um sorriso - Amo tanto que até me assusta.

Ele voltou a abraçá-la. Lílian levantou a cabeça levemente, encontrando Lady Glamis parada junto a porta.

- Estou muito feliz por vocês. - a fantasma disse, séria, embora um sorriso a traísse - Mas devem ir embora. Daqui a uma hora vai haver uma inspeção no castelo antes de ele ser reaberto a público e acho que não seria muito agradável se eles os encontrassem aqui.

Tiago assentiu, olhando para Lílian.

- Consegue se levantar?

Ela meneou a cabeça e ele a pegou no colo com delicadeza.

- O rei Duncan se comprometeu a deixar os vigias ocupados. O carro de vocês foi rebocado para trás do castelo. Sejam rápidos.

Lílian encostou a cabeça no peito de Tiago enquanto Lady Glamis os guiava até a saída do castelo. Finalmente eles acharam o carro e o rapaz ajudou a ruiva a entrar, indo em seguida para seu banco.

- Adeus, Lady Glamis. - ele acenou antes de fechar a porta do carro.

- Adeus. - ela respondeu num murmúrio.

Tiago deu partida no carro. Lílian voltou-se para trás uma última vez antes que o castelo sumisse ao longe. Finalmente terminara...

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