Capítulo 1



Era pouco mais de seis da manhã de uma quarta-feira quente de julho, mas o barulho na cozinha já havia acordado Harry. A alguns minutos ele variava entre consciência e sonho, a mente desperta mas o corpo se recusando a sair da cama. Enquanto lutava para espantar o sono, ele tentava identificar os sons que vinham do andar de baixo. É claro que seus tios jamais tinham se preocupado em fazer silêncio para não acorda-lo, mas o que o incomodava era a estranheza dos ruídos desta manhã, em particular.
Era estranho ouvir os pratos sendo colocados na mesa, já que sempre era ele quem arrumava a mesa do café da família. Tão estranho quanto ouvir o chiado da chaleira e sentir o cheiro dos ovos fritos sem ter, ele mesmo, acendido o fogo para fazê-los. Mas mais estranho do que qualquer outro som era o assobio alegre do Tio Válter enquanto, Harry supôs, lia o Daily Mail que seu filho Duda devia ter acabado de buscar na soleira da porta.
Desde que tinha sido aceito em Hogwarts, suas permanências na casa dos Dursley vinham se tornando cada vez mais tensas, tanto para ele quanto para a família. Ele pouco saía do quarto, eles pouco falavam na sua presença. Aliás, depois da visita de Dumbledore à casa da Rua dos Alfeneiros, era praticamente impossível que conversassem qualquer coisa na sua frente. Uma demonstração nítida de felicidade como essa era não só estranha: era suspeita.
Mas, agora que o sono aos poucos deixava de embaraçar seus pensamentos, tudo ia ficando claro, e um grande alívio tomava conta de seu corpo, com uma ponta de nostalgia pela qual ele não estava esperando. Era quarta-feira. Era o dia em que Harry deixaria a casa dos Dursley para sempre. Era a última vez em que estaria naquele lugar que ele tanto odiava e que, sem saber, o tinha protegido pelos últimos dezesseis anos. Era por isso que a família estava tão feliz.
Algumas noites atrás seu sono tinha sido interrompido pela entrada repentina de Pig, a coruja de Ron, que, desesperada como sempre, bateu na porta do guarda-roupas e derrubou a luminária da mesa de cabeceira antes de, finalmente, conseguir pousar em seu travesseiro.
Harry estranhou receber uma correspondência do amigo tão cedo, já que haviam se separado a pouco mais de uma semana. Ansioso, apressou-se em soltar o pedaço de pergaminho amarrado à perna da pequena bolinha cinza, que se sacudia aflita, enchendo sua cama de penugem.

Harry,

Espero que esteja tudo bem com você. Por aqui as coisas estão meio confusas, com mamãe e Fleur correndo atrás dos últimos preparativos para o casamento. Aliás, é por isso que eu estou escrevendo: a data do casamento mudou! Daqui a duas semanas a lua vai estar cheia, e já que não sabemos como o Bill vai se comportar, Fleur achou melhor adiantar tudo para o próximo sábado. Ela está apavorada com a possibilidade de ele resolver abandoná-la no altar. Toda aquela história de que os lobisomens respondem apenas ao chamado das fêmeas de sua espécie... eu posso até jurar que já a escutei ensaiando alguns uivos no banheiro, quando pensa que ninguém está ouvindo.
De qualquer forma, os ensaios vão começar na próxima quarta-feira, e seria legal se você viesse. A Hermione também está vindo, acho que ela chega no começo da semana, provavelmente quando você chegar ela já vai estar aqui.
Por favor, me mande uma coruja falando quando podemos te buscar.
Nos vemos em breve!

Ron

Embora pretendesse ficar na casa dos Dursley até seu décimo sétimo aniversário, como Dumbledore havia pedido, Harry respondeu imediatamente aceitando o convite e combinando sua partida. Não podia perder o casamento, e definitivamente não se sentia mais seguro na casa dos Dursley do que se sentiria na casa dos Weasley, cercado pelos membros da Ordem.
Ao descer as escadas com seu malão e a gaiola de Hedwig, Harry tentou se fazer de invisível. Nunca tinha sido notado pelos tios, não havia por que ser diferente naquele dia. Ao passar em frente à porta da cozinha, viu a mesa cuidadosamente colocada pela tia Petúnia, com apenas três lugares, já num ensaio para a vida que deveriam levar dali pra frente, uma vida calma, pacata, normal, sem se preocupar em esconder as esquisitices de Harry de seus vizinhos.
Já alcançava a maçaneta da porta da frente quando a voz empapuçada de seu tio o fez parar.
- Dezesseis anos. Quase dezessete. A gente cria uma pessoa como se fosse um filho durante todo este tempo, e é assim que ele agradece. Saindo à francesa, sem nem um “obrigado”, nem mesmo um “tchau”.
- Tchau, e obrigado por tudo – Harry murmurou entre os dentes, de má-vontade. Se essas eram as palavras que iam livrá-lo de mais um sermão, não importava que não fossem verdadeiras.
- Tome – e o tio lhe estendeu um saquinho engordurado – não quero que aquele velho louco apareça aqui de novo nos acusando de deixá-lo viajar com fome.
Harry estendeu a mão e pegou o saquinho, mantendo-o o mais longe possível de seu corpo, pois o cheiro de ovo (ou será que foi o insulto gratuito de tio Válter a Dumbledore?) embrulhava seu estômago. Tia Petúnia e Duda continuavam na encenação da vida sem Harry, como se não percebessem nenhum movimento na cozinha a não ser seus garfos sendo levados mecanicamente em direção à boca.
Ele não havia contado aos tios sobre a morte de Dumbledore. Não porque se sentisse mais protegido enquanto sabia que eles temiam uma nova visita do diretor de Hogwarts, nem por achar que sem a ameaça de um outro berrador para tia Petúnia eles não fossem recebê-lo. A idéia de ver um brilho de felicidade, um relance qualquer, nos olhos do tio Válter ao receber essa notícia é que tirou sua coragem de falar. Não sabia se conseguiria controlar sua raiva se isso acontecesse.
- Posso ir agora?
Tomando o grunhido do tio como um sim, Harry retomou seu caminho em direção à porta da rua. Mas antes de alcançar a maçaneta parou novamente, desta vez detido pela voz da tia.
- Harry – começou ela, olhando de lado para o marido, como se quisesse mantê-lo sob controle enquanto ela falava – se você precisar de... hum... sabe... aquele tipo de proteção... enfim... se a nossa casa puder te ajudar... você pode voltar... se precisar...
- Mãe! – gritou Duda, indignado, olhando para a mãe como não a reconhecesse. Ele estava ainda mais forte do que Harry jamais tinha visto antes, maior do que ele se lembrava, e o soco que deu na mesa fez algumas gotas do suco de laranja saltarem do copo do tio Válter para sua calça bege.
Tentando limpar a calça com o guardanapo mas acrescentando às gotas de suco alguns farelos de pão e umas pintas de gema de ovo, tio Valter se juntou ao filho:
- Petúnia! Que coisa mais idiota de se dizer! Humpf... Proteção... Voltar... Como se já não fosse suficiente termos agüentado todos estes anos de aberrações acontecendo em nossa casa. Não, não! Aquele velho disse que só precisávamos recebê-lo mais uma vez, nós recebemos e pronto! Fizemos nossa parte, pagamos nossos pecados e agora vamos acabar de vez com essa história!
- Mas Válter, você ouviu ele dizer... Essa casa, o laço de família... Bem ou mal, ele é filho da minha irmã, eu não posso simplesmente...
- Pode sim! – Harry entrou na conversa, com uma agressividade que não tentava controlar – É claro que pode. Você não pôde, por dez anos, mentir pra mim, dizendo que meus pais morreram em um acidente de carro? Não pôde, durante todo este tempo, fingir que não tinha nada de errado... de diferente... comigo? Durante os últimos quinze anos vocês me trataram como um intruso, como um problema, como um incômodo na vida de vocês! Por que agora essa mudança?
Petúnia olhava para o sobrinho assustada, seus lábios tremendo na cara de cavalo. Harry não conseguia desvendar se era raiva ou medo o que ela sentia. Também não entendia por que estava agindo desse jeito, quando pela primeira vez na vida alguém naquela casa expressava algum tipo de sentimento por ele. Mesmo que fosse só pena.
Ainda assim, toda a raiva reprimida em sua infância, toda a mágoa, todo o medo, toda a humilhação, tudo voltava agora com uma força descontrolada em sua mente, e antes que ele se desse conta já estava cuspindo desaforos sobre a tia novamente:
- Se você pôde, durante os últimos dezesseis anos, fingir que minha mãe nunca existiu, tenho certeza que não vai ser nenhum sacrifício passar o resto da vida fingindo que não se lembra de mim também. E quanto a voltar para esta casa, tio Válter, o senhor não tem com o que se preocupar. A proteção que eu tinha aqui já acabou. Mesmo que vocês quisessem me dar o tipo de proteção que me prendia aqui, vocês jamais seriam capazes. E não me importa que eu tenha o mesmo sangue que você, tia Petúnia, você nunca foi minha família. Aliás, você nunca foi família de ninguém. Vocês não sabem o que é ser uma família. Vocês...
Mas antes que pudesse completar a frase ele foi interrompido por Duda, que, com um pulo, atravessou a sala e o pegou pela gola da blusa, e já alcançava a porta que o Tio Valter a essa altura tinha corrido para abrir. Antes de ser arremessado na calçada, Harry ainda ouviu tia Petúnia desabando em soluços em uma cadeira na cozinha.
A discussão e o choro dentro da casa foram abafados pela freada brusca de um Ford Taunus branco que por pouco não passou por cima da gaiola de Hedwig que rolava pelo meio da rua.
- Eu também sempre odiei despedidas – Harry ouviu uma voz familiar dizer, e sentiu seu estômago gelar ao reconhecê-la. Ali, na Rua dos Alfeneiros, sem o uniforme em que ele estava acostumado a vê-la, Ginny parecia mais bonita do que nunca.

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