Adrenalina



Engraçado como a gente muda. Deitado nessa cama do hospital sem conseguir dormir, penso que virei o maior bundão. Só de pensar descendo aquela ladeira no Morumbi, á noite e no meio de uma tempestade, me dá um frio na barriga... Lembro nítidamente de cada curva, do asfalto molhado que refletia as poucas lâmpadas da rua, da cara assustada dos motoristas com aqueles três malucos correndo na contramão. Também está viva na minha memória a sensação de plenitude que experimentei ao chegar ao fim da ladeira. O coração parecendo sair do peito, bati na mão do Harry e do Dino e gritei:
_ Uau, sinistro, brother
_ Só - disse o Dino.
Sentamos na calçada e ficamos alí rindo a toa. Uma hora passei a mão na barriga e disse:
_ Pô, tô com uma fome...
Era verdade, nunca tinha sentido tanta fome. O Harry olhou pra mim, sorriu e disse:
_ É a larica, brother.
 A cara sorridente do Harry se apaga dentro de mim, e sinto uma tristeza enorme. Viro na cama pro lado da parede e procuro sufocar minha dor. Naquele dia o Harry ainda estava vivo, e eu era um garoto que não tinha medo de nada, de nada mesmo. A adrenalina correndo no sangue, eu descia a ladeira a não sei quantos por hora, e a rua parecia um túnel do tempo, onde eu mergulhava meu corpo energizado. E aquele isntante durou uma eternidade. Juro que nunca mais senti uma euforia, uma sensação de triunfo tão grande. Acho que foi por isso que guardei esses acontecimentos com tanta nítidez.
Viro de novo na cama e penso: será que hoje eu teria coragem de fazer isso novamente? Arriscar a vida, descendo uma ladeira na contramão, numa noite de tempestade, só pra derrotar o medo e experimentar um prazer que me deixava próximo da loucura? Não, não teria coragem. Como disse, virei um bundão. Mas a certeza disso não me preocupa. Tenho coisas mais importante com o que me preocupar. Por exemplo: meu filho que vai nascer.
Ao pensar nisso começo a rir, rir porque mme pareceu ouvir a voz do Harry me zoando:
_ Tá ficando careta hein, brother...
Começo então a chorar, e choro até me arderem os olhos. Mesmo assim não consigo dormir. A noite me envolve outra vez, e seus fantasmas voltam a me atormentar.
 

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