Capítulo Um - Abandono.



Capítulo Um -
Abandono.




- Jane... Levante, Jane.

Abri meus olhos lentamente, acostumando-os com a luz forte que entrava pela janela. Ann me cutucava com delicadeza.

- Que horas são? – perguntei, bocejando.

- Nove da manhã. Em meia hora o advogado estará aqui para falar sobre a divisão de bens e a sua guarda.

A minha guarda. Ótimo, pensei, rolando os olhos. Peter estava no penúltimo ano da universidade, portanto não poderia ficar comigo. Eu só alcançaria a maioridade quando fizesse dezoito anos. Não sabia o que seria da minha vida agora que meus pais estavam mortos. Fazia apenas uma semana desde o enterro, porém eu sentia como se tivesse sido ontem.

- Estou levantando, Ann – falei. – Traga a minha roupa, por favor.

Ela andou até meu armário e trouxe em seus braços vestes pretas compridas. Eu teria que usar somente preto durante seis meses, como respeito à meus falecidos pais. Ann tirou minha camisola e me ajudou a amarrar o espartilho, e depois o vestido.

- O café já está servido – Ann anunciou. Assenti, a seguindo escada abaixo até a sala de jantar.

A sala de jantar era o segundo maior cômodo da casa, apenas perdendo para o salão de baile. Uma comprida mesa de mármore cor-de-pérola encontrava-se no centro do lugar, com cadeiras combinando. Um grande lustre, uma mistura de cristais, safiras e platina, estava pendurado. O teto fora pintado para parecer o céu de dia, com algumas nuvens aqui e acolá e anjos gordinhos tocando harpa e voando com suas pequenas asas de plumas brancas. Era realmente bonito.

- Bom dia – Peter disse. Ele já estava sentado em uma das pontas da mesa bebendo uma xícara de café e lendo o jornal. – Como está se sentindo hoje, Jane?

- Bom dia, Peter. Estou melhor, obrigada. – Me sentei, servindo-me de torradas com geléia e uma xícara de chá. – E você?

- Bem, bem – ele falou, vagamente. Parecia bastante concentrado na notícia que estava lendo. – Você acredita que outro banco foi roubado ontem à noite? Essa cidade está ficando cada vez mais perigosa.

- É... – falei. – Pete, que dia... Que dia você tem que voltar para a sua universidade em Nova York?

Peter largou o jornal e me olhou preocupado.

- Depois de amanhã. Eu sei que é cedo, mas eu não posso mais perder aulas. Desculpe, Janie.

- Eu entendo – Mordi meu lábio inferior, apreensiva. – Ann me disse que o advogado vem hoje.

- Sim – ele confirmou. – O Sr. Wright já deve estar chegando, por falar nisso.

Continuei a comer meu café-da-manhã em silêncio. Coloquei três colheres de açúcar em meu chá. Bem doce, como eu sempre gostei.

Alguns minutos depois, pude ouvir alguém bater na porta principal. Um dos criados começou a se dirigir a ela, mas meu irmão o parou com um gesto das mãos e foi ele mesmo atender a visita. O segui.

- Sr. Wright – Peter acenou com a cabeça, abrindo caminho para que o homem passasse. Ele era alto e tão magro como uma vassoura, com uma barba grisalha encaracolada e cartola alta, e carregava uma pequena maleta marrom.

- Sr. Moore – disse Sr. Wright, imitando meu irmão. Sua voz era grossa e um pouco rouca. – Srta. Moore.

- Bom dia, Sr. Wright – falei, fazendo uma pequena reverência. – Entre, por favor.

- Obrigado – Ele deu um pequeno sorriso e adentrou minha casa.

Sr. Wright seguiu Peter até nossa sala de estar. Ele sentou-se confortavelmente em uma poltrona, e eu e meu irmão dividimos o sofá.

- Gostaria de beber alguma coisa, Sr. Wright? – perguntei. Pelo canto do olho, vi Peter erguer uma sobrancelha em descrença das minhas boas maneiras.

- Café, por favor.

Assenti com a cabeça para um criado que esperava na porta, que se retirou. Segundos depois, uma das ajudantes de cozinheira voltou com uma xícara de café.

- Então, vamos aos negócios? – Sr. Wright disse, bebericando sua bebida.

- Sim, por favor – disse Peter.

- Michael Moore deixou uma grande quantia de dinheiro para trás – afirmou Sr. Wright, pigarreando em seguida. – E praticamente toda a sua herança vai para você dois, seus filhos. Ele deixou bem claro que gostaria que cada um ficasse com quarenta porcento, sendo que os vinte porcento que sobrarem serão doados a instituições de caridade.

Quarenta porcento?, pensei em silêncio, arregalando os olhos. Eu nunca saberia o que fazer com tanto dinheiro assim.

- Isso quer dizer que cabe a vocês dois manter esta casa e os empregados – Ele gesticulou, apontando para tudo ao seu redor. – Ou não. De qualquer forma, devemos falar agora sobre um assunto que com certeza os interessa, principalmente a jovem senhorita aqui.

Percebi que ele iria começar a falar sobre a minha guarda. Sentei-me mais reta e apurei os ouvidos.

- O senhor está com vinte e dois anos, não está?

- Estou – disse Peter. Ele entrelaçou seus dedos nos meus.

- Não terminou a universidade, estou certo?

- Me formarei em um ano e meio.

- Portanto não pode ficar com sua irmã, já que não tem condições de cuidar dela e estudar ao mesmo tempo – Sr. Wright suspirou. – Sinto muito.

- Eu posso cuidar de mim mesma – falei. – Não tem problema. Peter pode vir para casa nos fins de semana. Os criados cuidarão de mim.

- Sinto muito – ele repetiu, balançando negativamente a cabeça. – Não podemos deixar um menor sem um responsável. E consta no testamento de seus pais que sua guarda deverá ser entregue a alguém com laços familiares primários, ou seja, nenhum criado poderá cuidar de você legalmente.

Abaixei a cabeça. A tão conhecida bola já estava se formando em minha garganta.

- Entendo. – murmurei.

- Como seu irmão apenas poderá cuidar de você quando ele terminar a universidade – continuou Sr. Wright, dirigindo-se a mim. –, vou propor algumas alternativas. Como seus avós paternos já faleceram e seu pai era filho único, não há ninguém na família dele que possa obter sua guarda. Já na família de sua mãe há duas alternativas.

- Sim... ? – perguntei, sentindo o coração retumbar em meu peito.

- Pauline Moore possuía uma irmã chamada Georgia. Ela mora no Alasca, junto aos esquimós.

Fiz uma careta e pensei em palavras impróprias para uma dama, imaginando como eu iria morrer de frio morando em um iglu. Sr. Wright riu baixinho.

- Também não acho essa opção atrativa. Porém, há uma outra. Sua avó materna, Mary, mora em Lancaster County, no estado da Pensilvânia. Acho que o mais viável seria ir morar com ela, mas essa é apenas a minha opinião.

- Com certeza! – exclamei, sem pensar duas vezes. Qualquer coisa seria melhor do que ir para o Alasca.

- Ótimo. E quando seu irmão terminar os estudos, vocês dois poderão morar juntos, se assim desejarem.

Olhei para Peter e sorri. Ele retribuiu apertando mais a minha mão.

- Só há... Bem, só há um problema – começou Sr. Wright, parecendo subitamente envergonhado. – Sua avó casou-se há tempos com Abraham Haliwell, um Amish. E hoje eles vivem, como já mencionei, em Lancaster County, uma comunidade exclusivamente Amish.

Vasculhei em minha mente por alguma menção de mamãe em relação à minha avó. Nada. Era estranho o fato de que eu realmente tinha uma avó, para começar. E Amish? Não sabia muito sobre eles, mas todos comentavam sobre como eles eram seres repudiados pela sociedade. Franzi o cenho.

- Uma comunidade Amish? – Peter quase gritou, levantando-se em um salto e derrubando a mesinha de centro. – Er, desculpe se me exaltei, mas Amish? Não vou mandar minha irmã para um lugar como aquele!

- Entendo sua preocupação, Sr. Moore – Sr. Wright disse. – Mas acho que sua irmã não tem escolha. Ou os Amish, ou os esquimós.

Em minha mente, duas imagens surgiram. A primeira, eu vestida com um casaco de peles enquanto deslizava pelo gelo, e a segunda, eu com um vestido fechado até o pescoço enquanto tirava leite de uma vaca.

A segunda opção parecia infinitamente mais chamativa.

- Não há nenhuma possibilidade de ficar com Peter, há, Sr. Wright? – perguntei, apenas para ter certeza.

- Não, Srta. Moore. Desculpe.

- Então eu vou ficar com a minha avó. – afirmei, decidida. Ao meu lado, ouvi Peter abafar um palavrão ao levar a mão a boca.

- Jane, não! – ele exclamou. – Você vai ficar falada, sua reputação se arruinará... Ah, Jane!

- Pete, você prefere que eu congele no Alasca?

- Não é isso, mas... Você sabe que os Amish não são bem vistos e... Assim você nunca encontrará um bom marido, Janie.

Sr. Wright alternou olhares entre nós, parecendo achar nossa discussão de certa forma divertida.

- Então está decidido – ele disse, sua voz grossa nos calando. – A guarda da Srta. Moore será, pelo menos temporariamente, de sua avó materna, Mary Haliwell. Quando você se formar, a guarda dela passará a ser sua, Sr. Moore. Uma carruagem virá em três dias para levá-la até sua nova casa.

Peter suspirou, correndo as mãos pelos cabelos. Seus olhos demonstravam derrota. Até achei que fosse discutir mais, argumentar a seu favor, porém ele apenas murmurou um fraco “Sim” e calou-se.

- Agora, quanto ao dinheiro, o Sr. Moore terá acesso à ele em duas semanas, e a Srta. Moore terá que alcançar a maioridade até que possa finalmente gastá-lo. Por enquanto seu irmão tomará conta da sua parte – Sr. Wright sorriu solidário para mim.

- Obrigado pelo seu tempo, Sr. Wright – Peter disse, o guiando até a porta. – Foi de grande ajuda.

- Claro, claro. Desejo-lhes toda a sorte do mundo – Inclinando um pouco a aba da cartola, ele virou-se e sumiu dentro da carruagem que o esperava.

Peter fechou a porta com um estrondo.

- Mas onde você está com a cabeça, Jane Constantine Moore? – ele vociferou.

Fiquei quieta apenas o assistindo andar em círculos pela sala, estapeando o próprio rosto enquanto fazia. Parecia um homem louco, devo admitir.

- Pete... Pete... – chamei, mas ele não parou. – Peter!

- Hã? – ele fez, finalmente prestando alguma atenção em mim.

- Escuta – Suspirei. – Você não precisa enlouquecer. Eu só vou morar com a vovó por um ano e meio, e então voltarei para casa. As pessoas entenderão que eu não tinha escolha, portanto minha “reputação”, como você gosta de chamar, não ficará manchada. Certo?

Meu irmão me olhou por um longo tempo, e em seguida desabou na poltrona antes ocupada por Sr.Wright.

- Certo. Mas em um ano e meio eu te tiro de lá, nem que seja a força. E então nós poderemos viver juntos novamente.

- Combinado – Sorri. – Você vai manter a casa e os criados?

- Você quer que eu os mantenha?

- Bem... Sim.

- Então eu realizarei seu desejo, ó mais bela das damas, e assim será – Ele se levantou e fez uma reverência, seu nariz quase encostando em suas botas. Ri.

- Vou sentir sua falta, Pete – murmurei, o abraçando com força.

- Eu também, Janie – ele respondeu, apoiando o queixo no topo de minha cabeça. – Eu também.



Dois dias depois, às cinco da manhã, assisti meu irmão ir embora para Nova York. Meu desespero foi tanto ao vê-lo partir que acho que teria me jogado na frente dos cavalos se Ann não estivesse segurando meu braço com força. Gritei que o amava com toda a força de meus pulmões, e ele respondeu com um “Eu também” no mesmo tom. Sentia lágrimas escorrendo, encharcando a frente de meu vestido escuro e me fazendo tremer de frio.

Quanto tempo passei observando a rua deserta eu não sei, porém, quando finalmente dei-me conta da minha posição, o sol já começava a nascer, aquecendo meu rosto e jogando raios de luz para todos os cantos.

Provavelmente ainda estaria ali até hoje, se Ann não tivesse me chamado para dentro.

- É melhor começarmos a arrumar suas malas, Jane – ela disse.

Com um último suspiro, virei-me e entrei em casa, tropeçando na soleira da porta devido a minha distração. Sentia a cabeça leve e o corpo extremamente pesado e fatigado. Levei minha duas mãos às bochechas, em um medo ilógico de minha cabeça despencar e sair rolando rua afora.

Estava na hora de voltar para a vida real.



N/A: eu quero esclarecer que, na verdade, os Amish não são excluídos pela sociedade normal. eu não sei como eram as coisas antigamente, em 1846, mas hoje em dia eles são bem aceitos no mundo, apesar de seus costumes diferentes. só isso. (: eu coloquei assim na fic pra criar drama, só isso. (?)' hm, eu queria agradecer muito todo mundo que comentou e passou aqui na fic. significa muito pra mim. espero que gostem desse capítulo. no próximo, a Jane vai pra Lancaster County. :DD Beeijo !

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