Prólogo - Morte.



Prólogo -
Morte.




Por alguma razão, respirar era doloroso demais. Sentia minha língua áspera em minha boca, o meu nariz dormente por causa do frio. Eu já não conseguia ouvir, ou ver cores. O silêncio era amedrontador, e o mundo estava cinza.

Desde o minuto em que coloquei o vestido preto, até o minuto que o cocheiro me ajudou a subir na carruagem, eu me senti como em um sonho. Cheguei a sorrir, pensando em como toda aquela situação parecia absurda, e me belisquei. Só realmente me dei conta de que não estava dormindo quando Ann, a criada, me arrastou pelo braço para dentro do cemitério.

E então, a realidade me atingiu como um balde de água fria sobre meu corpo morno, e eu senti as pernas fraquejarem, a cabeça rodar. Minha visão ficou embaçada e eu me apoiei em Ann para não desabar no chão em frente a todas aquelas pessoas que eu nunca havia visto na vida.

- Calma, Jane – Ann sussurrou, a pena transbordando de seus olhos escuros. – Vai ficar tudo bem.

Mentirosa, pensei. Nada vai ficar bem. Nada nunca vai ser como antes. Queria ver se fossem os seus pais ali, deitados naqueles malditos caixões de mogno.

Forcei meu rosto a ficar impassível, indiferente. Prometi a mim mesma que não iria chorar. Engoli a bola que se formava em minha garganta e soltei o braço de Ann, andando decidida até o padre.

- Com licença – falei, minha voz demonstrando uma confiança que eu com certeza não sentia. – Meus pais eram ateus, não acreditavam em Deus ou na bíblia. Portanto, seus serviços não serão necessários aqui.

Já era ruim demais ter que ver minha mãe e meu pai sendo enterrados. Eu não queria piorar minha situação tendo que assistir um padre qualquer balbuciar palavras sobre como os dois iriam para o paraíso e como suas almas ficariam perto do criador. Meus pais não iriam querer isso, e eu também não queria.

O padre – um homem mirrado e careca – olhou para os lados, provavelmente procurando algum adulto que pudesse confirmar o meu pedido. Pelo canto do olho, vi meu irmão Peter assentir levemente com a cabeça.

- Claro, senhorita Moore. Desculpe-me.

Ele retirou-se, tomando o caminho da igreja ali perto. Notei alguns olhares sobre mim. Aquele não era o comportamento adequado para uma menina de família, e normalmente eu nunca teria me dirigido à um homem daquela maneira, mas, bem... Agora eu não tinha mais família nenhuma para envergonhar, de qualquer forma.

- Jane, o que está fazendo? – Peter perguntou por entre os dentes, aproximando-se de mim.

- Pete, você sabe que mamãe e papai não iriam gostar disso. E nem eu gosto. – falei. – Não é porque você é cristão que deve ignorar os desejos deles.

- Não irei discutir sobre religião com você, Janie – Ele suspirou, passando uma mão pelos cabelos loiros. – Mas você conhece essas pessoas... Irão falar de você pelas suas costas.

- Deixe que falem. Não me importo com a opinião alheia, e você sabe disso muito bem.

- Até admiro sua coragem. Porém, você não irá arrumar um bom marido se continuar agindo assim. Você não tem mais cinco anos, Jane. Agora você já é uma moça, e deve aprender a ceder e aceitar as coisas, mesmo se essas tais coisas forem contra o que você acredita.

Peter abaixou-se e beijou minha testa, virando-se em seguida e caminhando até um grupo de homens velhos de cartola que eu reconheci como sendo antigos colegas de papai.

- Jane... – Ann tocou meu braço. – Por favor, não arrume problemas.

- Eu não estava fazendo nada de mais, Ann. Pare de querer controlar minha vida, eu já tenho quinze anos! Será que ninguém entende que eu não sou mais uma criança?

Esquivei-me dela e andei com passos rápidos até os caixões de meus pais, que se encontravam no centro de todas as pessoas. No caminho, ouvi uma mulher comentar com o marido que só faltavam dez minutos até que o coveiro chegasse e enterrasse aquele “pobre casal”. Apressei o passo.

Toquei o rosto de minha mãe com as pontas dos dedos. Sua pele estava gelada e translúcida. O vestido vermelho e branco – o melhor que ela tinha – não parecia mais tão bonito assim ao adornar seu corpo sem vida. Os cachos castanhos – da exata cor de seus olhos – estavam soltos, mas não se encontravam mais tão brilhantes. Um leve cheiro de lavanda exalava dela. Mas o que mais fazia falta era o constante sorriso de mamãe, aquele que mostrava dentes demais, que fazia seus lábios grossos afinarem-se de tanto que ela os esticava para poder dar o melhor sorriso que pudesse, que alcançava seus olhos ao se tornar verdadeiro. Eu sempre desejei secretamente ter herdado aquele lindo sorriso, e confesso que às vezes ele podia se tornar inconveniente e me dar nos nervos... Mas, ali, encarando seus lábios crispados e sérios, eu percebi que nunca havia desejado vê-la sorrir com tamanha vontade antes.

Tornei meu olhar para o outro caixão, o de papai. Sua pele geralmente bronzeada estava cinzenta, quase azulada. Seus lábios finos tão pálidos, seu cabelo loiro – que já começava a cair – penteado para trás. Ele não me lembrava em nada o homem forte e imponente que costumava ser. Meu pai parecia tão fraco e melancólico ali que eu subitamente senti uma vontade imensa de chacoalhá-lo para que ele acordasse, se levantasse, limpasse a poeira da roupa e me segurasse em seus braços fortes. Ele estava vestindo seu uniforme do excército americano, aquele casaco azul com botões dourados, a calça justa branca e as botas pretas. Meu pai sempre fora um homem com uma beleza bastante tradicional, com o maxilar largo, o nariz levemente adunco e olhos azuis expressivos. Seus olhos eram a melhor parte sobre ele, pois eles eram de um azul profundo, tão escuro que chegava quase a ser preto se visto de longe. “Como a noite”, mamãe costumava dizer. Era uma pena que suas pálpebras estivessem fechadas, pois eu daria tudo para poder me perder naqueles olhos novamente.

- Srta. Moore – chamou Paul Greene, melhor amigo de meu pai, acordando-me de meus devaneios. – Sinto muito, mas você deve se juntar aos outros agora. Está na hora de baixar os caixões.

Crispei os lábios, assentindo de leve. Segurando a saia de meu vestido preto, fui em direção de Peter e Ann. Meu irmão me abraçou pelos ombros, abrindo um meio sorriso solidário que não chegava aos seus olhos.

- O Sr. Greene irá falar algumas palavras, Jane. – ele murmurou, me puxando mais para perto.

- Queridos amigos e amigas, hoje é um dia muito triste para todos nós – Sr. Greene começou. – Estamos reunidos para o enterro de duas pessoas muito importantes e amadas por nossa sociedade, Michael e Pauline Moore, ele, um general do excército que sempre lutou bravamente pelos Estados Unidos, e ela, famosa pelas festas que organizava e pelas poesias que escrevia. Michael, meu bom amigo, conheceu a doce Pauline vinte anos atrás, em um dia ensolarado de primavera...

E então a voz do Sr. Greene foi indo embora aos poucos, até sumir por completo. Levantando meus olhos, observei a paisagem. Era outono, e folhas alaranjadas com um toque de vermelho cobriam o chão. A maioria das árvores estavam com os galhos a mostra, porém algumas exceções ainda se encontravam com uma escassa folhagem. O sol brilhava e o céu estava completamente azul, sem nenhuma nuvem. Era de certa forma meio irônico que um dia tão triste pudesse ser tão bonito.

Passei a encarar as lápides. Eram simples, parecendo mais blocos qualquer de pedra do que sepulturas. Não conseguia visualizar o nome de meus pais em uma pedra cinzenta. Eles eram tão importantes quando vivos, praticamente reis em seu vasto círculo social, porém seriam enterrados como qualquer outra pessoa sem importância. Senti uma súbita vontade de protestar em voz alta, de pedir que um mausoléu fosse construído especialmente para eles, mas eu sabia que isso só me traria problemas e desgosto para Peter. Mordi a língua e controlei meus impulsos.

- ... E hoje nos despedimos dessas duas pessoas tão importantes para cada um de nós. Que Michael e Pauline descansem em paz, onde quer que estejam.

Algumas pessoas ecoaram as últimas palavras do Sr. Greene, cada uma depositando um lírio branco em cima dos caixões. Soltei Peter e pedi a Ann que me entregasse as flores. Quando ela o fez, fui até meu pai e minha mãe e coloquei nas mãos de cada um uma tulipa negra.

Vi algumas pessoas franzindo o cenho, mas não me importei. Não era respeitoso dar flores de cor escura em enterros, porém eu não conseguia pensar em nada que mais representasse o que eu estava sentindo como aquela tulipa preta.

Alguém aproximou-se dos caixões e abaixou a tampa deles. Outros homens vieram ajudar o primeiro, e em poucos minutos meus pais estavam debaixo da terra. Lágrimas vieram aos meus olhos e escorreram por minha bochechas. Naquele momento eu finalmente me dei conta de que nunca mais os veria, de que suas almas estariam para sempre vagando perdidas em algum lugar do éter. Sem nem dizer adeus, ele se foram. Sem um único beijo de despedida, sem um aviso prévio, sem uma preparação psicológica.

Abracei Peter, enterrando meu rosto em suas vestes. Solucei alto, berrando por meus pais. Esqueci totalmente minha promessa de não chorar. Aos poucos fui me acalmando, minha respiração tornando-se mais estável. Ann me entregou um lenço e limpei minhas lágrimas delicadamente. Soltei meu irmão, desamassei meu vestido o máximo que pude com as mãos e aprumei-me. Apesar de estar envergonhada por meu comportamento, estiquei os ombros, empinei o nariz e caminhei a passos largos em direção à carruagem.

Naquele momento, eu só queria ir para casa, enfiar-me debaixo das cobertas, e perder a mim mesma na escuridão.


 


→ N/A: pra começar, eu quero agradecer MUITO todo mundo que comentou. *-* nunca achei que eu ru fosse ter tantos comentários assim sem nem ter postado. obrigada, gente! :DD hm, eu escrevi esse prólogo anteontem, e ontem terminei o primeiro capítulo. acho que até ficou legalzinho, meio sombrio perto do que eu normalmente escrevo. me inspirei nos filmes 'Orgulho e Preconceito' e 'Becoming Jane' (acho que se chama 'Amor e Inocência' em português, uma coisa assim) pra imaginar o "estilo de vida". eu quero dizer que não faço a menor idéia de como eles falavam e conversavam naquela época, então os diálogos podem ficar meio esquisitos. :\ deee qualquer forma, espero que gostem. Beeijo !

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