Batem-me à porta

Que infernos fazem com que haja nessa bendita floresta um frio de rasgar a pele eu não sei, mas decididamente é graças a este frio que posso considerar-me num lugar seguro, e em tal segurança ter a certeza de que ninguém se sente confortável ao percorrer essa selva, de modo que qualquer interesse que exista em me caçar encontre um ponto contra. Realmente, posso agüentar esse maldito frio, sabendo que ele é um dos meus maiores defensores. É como segurar firmemente a rosa para a amada, pois considera-se que, acima dos ferimentos e da dor causados pelos espinhos, poder-se-á curar tudo isso presenciando o sorriso da donzela a cair-lhe nos braços. Em todo caso, frio.
Levantei-me da cama, tomando cuidado para não acordar minha doce Luna, cujos olhos sempre tão misteriosos agora pareciam esquecer-se de todos os mistérios, reservando-se assim o direito de descansar. O dia parecia ainda não ter sido anunciado pelo Sol, que, todas as manhãs, lutava sempre bravamente contra as densas nuvens de umidade congelada para poder atingir com seus raios a Floresta Proibida. Não obstante, sentia como se algo me fizesse acordar, como se algo me empurrasse para fora dos aconchegos da minha cama e me colocasse em posição de atenção. Som algum se manifestava, nem mesmo o canto dos Bicos-de-Neve, criaturinhas minúsculas, mas que se animavam espantosamente em cada ocasião na qual começasse a nevar. O vento parecia também não soprar, pois não eram percebidos seus assovios, e todo este cenário constituía-se numa situação extremamente inquietante para mim. Sentei-me na cadeira da sala e pus-me a apreciar meu cajado Crucificatti, do qual realmente sentia orgulho.
Esta havia sido minha primeira produção, constituída de um cajado simples de caminhada, adornado por seis correntes, pareadas duas a duas em suas cores e tipos. As correntes eram heranças minhas dos meus tempos no Exército Opaco, do qual, sem o mínimo remorso, pedira já há algum tempo meu afastamento, alegando cansaço. Sinceramente, não acredito que meus superiores possam haver crido em tal alegação, todavia não me restara alternativa, visto que minha criatividade, no momento da pergunta sobre minhas razões, fora pega infértil. Aliás, me espanta no momento presente que até agora ninguém tenha procurado-me para tirar satisfações sobre meu afastamento, visto que o Exército sempre fora conhecido como firme em pulsos e cuidadoso com seu círculo fechado de segredos, do qual em certa profundidade eu participara. Mas, realmente nada disso me importava agora, não queria preocupar-me com assuntos desse tipo. Continuava a observar os adornos do cajado, ensaiando em tom de brincadeira alguns posicionamentos para feitiços, como se eu retomasse aqueles velhos tempos de criança, sempre apta a divertir-se sozinha e com tão pouco! Realmente quando criança eu nem imaginava que outros sentimentos seriam instigados em mim para que pudesse alcançar minhas satisfações. Amor, ódio, vingança, orgulho, desejo; e este último, principalmente, se mostrava cada vez mais aflorado em mim, na medida em que eu percebia o quanto me causava prazer o doce ser que dormia em minha cama. De fato, tornei-me a observar, pela porta entreaberta, aquela forma tão harmoniosa que dormia tranquilamente em meus aposentos. Seus cabelos refletiam cada centelha de luz que pudesse atingi-los, e isso realçava o loiro brilhante que os constituía. Aquela face, tão provocante e culpada na sua inocente inocência, e ao mesmo tempo inocente em não saber o quanto era sedutora sem querê-lo ser; seu corpo, que, mesmo coberto pelos lençóis, mostrava-se imponente em suas formas, sempre exatas e perfeitas, fartas mas nunca exageradas; tudo isso merecia meus instantes de atenção naquele momento. Aqueles pensamentos me encheram de uma vontade descontrolada, e não mais sentia frio. Fui até a cama, deitei-me ao lado de Luna e observei-a, suplicando-lhe imóvel que acordasse, para que eu não cometesse o sacrilégio de despertar tão doce criatura em seu profundo sono. Sua respiração parecia mais densa, e de súbito, adivinhando todas as minhas ambições de todo eróticas naquele momento, abriu seus olhos cativantes, num sorriso angelical. Descobriu-se do lençol, chamando-me para as infindas carícias e abraços apaixonados, e então, durante algum tempo, nos ocupamos com o delicioso mel que todo o pecado do mundo podia-nos oferecer. Não sentia-se mais frio naquela casa.
Alguns minutos após termos atingido todo o nosso prazer, Luna já dormia novamente, e então ouvi baterem à porta. De fato, ouvi surrarem a porta, pois que mãos são essas tão pesadas para provocarem estrondos na madeira de minha portada? Sobrepus-me a casaca preta, artigo seleto para viajantes de longas distâncias e perigosos passos, empunhei minha varinha e cobri a mão que a segurava com a capa, para mantê-la oculta. Aproximei-me e perguntei por quem me dava a honra da visita. Nada. Desta vez, bradei a mesma pergunta, e após segundos, responde-me uma voz rouca:
- O que há, Quim, sabes que nunca aprovei sua paixão por estes lugarezinhos no meio de lugar nenhum!
Seria possível? Apenas uma pessoa nesse mundo sempre me chamou de Quim, mas sua presença aqui seria das menos esperadas! Entreabri a porta, com a varinha empunhada em tom de combate, e observei. Um vulto de estatura mediana, casaca, capa e capuz marrons, de pano pesado, e dedos entrelaçados sorria de maneira amarga, mas de fato simpática. Vejam se não era um sangue-ruim mulherengo de araque, cujos anos de amizade fiel já me salvaram das situações mais inacreditáveis possíveis! Leitores, meus caros, recordam-se da vez em que lhes contei sobre a discussão na mesa da Taverna das Mandrágoras? Ah, ainda me animo com aquele cheiro da carne de javali cozendo-se no caldeirão amassado da Madame Futherish... mas não prender-lhes-ei em tal recordação, que só a mim faz sentido completo e absoluto. Bem, o fato é que aquela figura metida a galanteador, a qual reservei-me a descrever assim na situação passada, constituía um dos meus mais próximos amigos, sendo ele de desde meus tempos no Exército Opaco. Na situação de nosso primeiro contato, eu estava prestes a matá-lo, em minha orientação pelo sangue puro no mundo, quando fomos atacados ambos por um golem de pedra, nas Montanhas Urrantes. Nesse momento, pelo bem maior de nossas vidas, lutamos juntos e conseguimos afastar a abominável criatura, constituindo assim um laço forte de amizade e dívida vitalícia entre nós. Inclusive, posso contar que foi a partir desse dia que minha orientação contra todo tipo de sangue-ruim e trouxa sofreu uma mudança, pois eu presenciava um alvo de meu extermínio lutando bravamente por um bem, naquele momento, coletivo. Conhecemo-nos melhor, conversamos bastante, e ele me contou de sua fuga constante do Exército Opaco, e como se empenhava em auxiliar trouxas a evitar os perigos por ele infligidos. Depois de tempos de convivência, fui solidariamente aderindo a esse novo ideal, e assim, antes de me desprender do Exército, tratei de aproveitar-me de minha estada lá. Neste momento foi que eu e Malkyor estruturamos o plano de desvio dos materiais e tecnologias do Exército para produzirmos equipamento acessível a sangues-ruins e bruxos adeptos da nova causa. Assim, durante todo esse processo e caminhadas longas trilhas, firmamos uma imponente amizade, cujos laços já se mostraram superar quaisquer obstáculos.
-Mas diz agora, Malkyor, que vem fazer nesse fim de mundo de inferno gelado?
A este momento já estávamos sentados e bem acomodados, e , em minha precária capacidade culinária, eu havia já botado qualquer coisa num caldeirão e acendido a lareira, para depois servirmo-nos.
-Quim meu caro, não daria sorrisos no momento presente, nem em pânico também entraria, mas acompanharia meus passos de perto, pois perigo nos espreita.
-Me assusta agora, amigo! Que pode nos ameaçar tanto assim?
Eu realmente acreditava em uma daquelas brincadeiras de mal-gosto, típicas da figura que se apresentava em minha frente, sentada na cadeira de madeira e fazendo um tom sério enquanto falava.
-Vê bem, contam-me que não gostaram de sua saída praticamente injustificada do Exército Opaco.
Sim, disso eu já sabia, até porque, como já expliquei, o Exército era sério demais para deixar fato tão peculiar passar despercebido. O que não entendia era qual a gravidade tamanha dentro dessa informação. Permaneci sóbrio e calado, esperando por esclarecimentos.
-Sim, sei que sabes disso, mas agora coisas estão começando a acontecer. Devemos ter cuidado, ou...
Minha impaciência já se demonstrava, à medida que tanto mistério era feito, quando eu e Malkyor ouvimos gritos. Vinham do quarto de Luna. Corremos e com um baque de ombros empurramos a porta e adentramos o quarto, onde Luna, com os lençóis até a cintura e colo desnudo, apresentava uma fronte pálida e suada. Malkyor, em demonstração de respeito, virou-se de costas, e eu me dirigi à cama, onde sentei e perguntei o que houvera.
-Foi horrível, eles me levaram, eu não podia agüentar, eles me...
Luna suspirou e desmaiou, deixando seu corpo sair do apoio do braço e cair à cama. Entreolhamo-nos eu e Malkyor, este agora já fitando a cena, um pouco perplexo. Corri e tomei Luna nos braços, envolta em todos os lençóis que pude encontrar em meus aposentos, e levei-a para perto do fogo, onde apoiei sua cabeça em minha perna, agora eu sentado no chão. Malkyor nos observava, e após este instante quebrou um silêncio que já se instaurava desde os gritos confusos de Luna.
-Olha, Quintino, todos nós corremos perigo. Luna não teve essas visões à toa, e a possibilidade é grande de que gente lá de dentro tenha invadido a mente dela. Cogito até a hipótese de saberem por onde te escondes.
Refleti. Realmente parecia-me que tinha um problema. Olhava para a face de Malkyor, que, pela primeira vez em todos os tempos nos quais conhecemo-nos, mostrava-se duvidosa e assustada. Tornava-me para Luna, e via aquele rosto tão belo, tão perfeito, ainda apresentando traços de real horror, como se suas visões fossem mais reais do que o calor que sentia agora, perto do fogo. Será que os bastardos sabiam de minha paixão por ela? Será, leitores, que tramam agora, neste momento, algo para de certa forma vingar meu debande? Não sabia o que pensar naquele momento. Ficamos, nós todos, durante tempos calados, quando Malkyor novamente postou-se a falar:
-Quim, não foram poucas as vezes que tive que te salvar, desde moscas até imensos Titãs de todos os infernos possíveis, e não será desta vez que deixar-te-ei perecer.
Falava com certa arrogância, como se já não tivesse eu também salvado Malkyor dos mais variados tipos de situações complicadas, mas era uma arrogância bem humorada e irônica, de certa forma. Sorrimos, para tentar enganar o temor que sentíamos naquele momento. Ele levantou-se e checou a porta, que estava já trancada.
-Ao clarear procuraremos Montímuno e seus centauros, tenho certeza de que se contentarão muitíssimo em prezar-te auxílio. Norrasque sai da França essa semana ao meu encontro, também não se incomodará a pagar-me um favor de vida que já lhe prestei. Por enquanto, pelo menos, não é seguro que fiques sozinho, até termos certeza da dimensão do que enfrentamos.
Fazia frio. Ficamos os dois ali, estagnados, sem saber no que pensar ou o que falar. Depois, Malkyor dirigiu-se ao caldeirão e pegou canecas para servir o caldo, que já cheirava bem. Deu-me duas, e ficou com uma, a qual tomava a pequenos goles, e percebia-se que seus olhos ficavam vermelhos pela temperatura ainda elevada do que ingeria. Eu, a princípio, acordaria Luna para tomar seu caldo, mas observava-a dormir e via que realmente precisava de sonos tranqüilos e seguros. Tomei o meu a goles largos, e deixei o dela esfriar um pouco. O ambiente daquela sala mudara profundamente. Se antes tínhamos o fogo de relações quentes e uma amizade reencontrada, agora o medo e a incerteza nos proibiam de estar confortáveis. Nossas mãos, por baixo das luvas inclusive, estavam geladas, e não tínhamos certeza se isso representava somente frio, ou se apresentava nossa apreensão por algo que, misteriosamente, oculto em algum lugar do futuro, próximo ou distante, estava por vir.

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