Considerações a serem feitas



Fazia frio. Aliás, muito frio, embora minha casaca preta, coberta pela capa, fizesse com que não me incomodasse com tal situação. Não se ouvia o ruído dos ventos, tão comuns no inverno castigante da Floresta Proibida, e essa situação de silêncio persistente tornava-se cada vez mais insuportável, provocando-me profunda irritação. Teria eu gritado, todavia era melhor que não percebessem minha presença, talvez pela possibilidade de ela ser por alguns indesejada. Não me refiro aos centauros, cujo líder atual Montímuno tem por mim grande apreço. Tampouco temo os entes, que, sossegadamente, sempre me ouviram contar minhas inúmeras aventuras quando das guerras ciclônicas na Floresta de Matusai, lar do grande mestre Hitumotu. Os semi-gigantes, menos ainda temo, pois com eles já esvaziei mil e uma canecas da melhor cerveja da Bavária, terra natal tão amada da maioria deles. Minhas razões para permanecer calado e imóvel eram outras.
Toda a explicação para minha discrição, e desculpem-me pela demora, vem de uma mesa de negociações. Ora, se pudermos, é claro, chamar assim uma mesa da Taberna das Mandrágoras carcomida por cupins e traças, cujo cheiro de mofo se confunde com o odor agradável dos cozidos de javali preparados na lareira. Ali, passava-se uma cena que, para terceiros, constituía-se curiosa: Sentavam-se ali um anão, daqueles de feições extremamente marrentas, um renomado sangue-ruim, conhecido por ser um grande galanteador e mulherengo, e um rapaz ainda novo, de feições suaves e sempre desconfiadas, procurando em qualquer e cada detalhe um sinal que lhe acusasse perigo ou, no mínimo, estranheza. Este terceiro, como alguns de vocês podem já desconfiar, consiste na minha pessoa. Realmente, não exagero quando digo que atentava para cada detalhe da situação, pois naquele momento eu não conseguia me sentir confortável. Ora meus caros leitores, mas o que se passava naquela mesa para que eu, com toda minha sobriedade de sempre, passasse por tão estranho desconforto?
O que tínhamos ali era de uma peculiaridade e importância maior do que qualquer um poderia imaginar em observando aquela cena. Os copos semi-entornados de cerveja, as mulheres extremamente sensuais, o jogral com suas talentosas tiradas, tudo isso era silenciado em nossas mentes, pois nós três, um anão, um sangue-ruim e eu, decidíamos assuntos de vida ou morte. Aliás, mais de morte do que de vida, porque, pela causa da qual cuidávamos, muitos já haviam morrido, inclusive renomáveis dos mais altos calões do mundo mágico e semi-mágico, a exemplo toda uma família Potter de grande tradição e força entre os bruxos de todo o mundo. O que falávamos naquela mesa, e peço que pelos caros leitores tal informação não escape, tratava do mal mais negro que se pode imaginar, tal mal que, durante tempos, acreditava-se estar na mão de um certo Inominável, mas que na verdade por muitas outras mãos espalhava-se. Ora, ingratos são os que se aborrecerem comigo quando, em minha total sinceridade, lhes contar que Aquele-que-massas-de-bruxos-de-todo-o-mundo-nunca-ousaram-nomear nunca foi o real detentor do poder que amedrontava tantos bruxos e bruxas de bem. Sim, caros, meus anos e anos como Comensal Superior me fizeram ter contato com a verdade por eras morta e oculta. O Senhor do Mal nunca foi Voldemort, e peço desculpas pela maneira que expresso tal fato, pois, para mim, nunca houvera outra verdade, sendo a crença nele como o grande comensal das trevas, no mínimo, ridícula. O real perigo consistia em uma situação muito mais complexa, e ei-la aqui.
A fonte de toda a magia está na intensidade do sentimento e convicção com os quais ela é lançada, sendo estes amor ou ódio, alegria ou revolta, coragem ou medo. Deste modo, o medo construído em torno do nome Voldemort era responsável por reforçar ainda mais as forças do Exército Opaco, centro de poder da magia negra. Esse exército consiste em uma intentona que divergiu do mundo legal da magia por ter aversão a todo o tipo de sangue ruim e trouxa, considerando sua obrigação o extermínio dessas raças impuras. Banidos da legalidade, os membros da intentona formaram o Exército mencionado, e buscam a todo o custo aplicar no mundo suas convicções e formas de pensamento e vida. Assim, Voldemort fora, durante sua existência, apenas uma imagem a ser temida, uma lembrança de que sangues impuros nunca estariam a salvo no mundo. Com esta figura, o Exército Opaco acumulou fontes de medo e terror, e fortaleceu seus núcleos de magia negra. Aliás, quando o garoto Potter mostrou-se um inimigo odiador de Voldemort, o Exército Opaco tratou de utilizar toda a essência do ódio do garoto para fortalecer a magia negra no mundo, e a cada passo de Harry em direção à destruição de Voldemort, mais ódio era exalado e acumulado pelo Exército Opaco, que, ainda mais depois da morte de Voldemort, e ao contrário do que muitos acreditam, está, em vez de destruído, fortalecido e preparado para uma investida final.
Ora caros leitores, perder-me-ia na narração de toda uma história sobre dor e mágoas do passado, onde a ingenuidade de toda uma sociedade contava com Potter para eliminar o mal do mundo, mas preciso cuidar do presente, onde ainda estou em uma floresta gelada e silenciosa, e continuarei a estar até acabar de narrar a bendita conversa na Taverna das Mandrágoras. Bem, o que cuidavam eu, o anão e o sangue-ruim não era propriamente relacionado ao caminhar do Exército Opaco, até porque, mesmo sendo eu um Comensal, meus interesses eram outros muito mais vantajosos, digamos, a mim próprio. Tratávamos de como ocultar da alta cúpula do Exército o comércio de tecnologia e artigos de magia negra efetuados por nós três, um anão marrento, um sangue-ruim galanteador e um Comensal insatisfeito com seu cargo atual. Insatisfeito porque, durante tanto tempo, vi bruxos muito menos capacitados assumirem cargos de comando extremamente cobiçados, e, devido à falta de honra a meus esforços como Comensal, haverá a falta de honra por minha parte no momento em que decido fazer um arsenal exclusivo do Exército Opaco tornar-se accessível a todos que se dispuserem a pagar meus preços. Caros senhores, se estranham minha posição diante de meu Exército, saibam que muitos a estranham, e por isso nomeiam-me o Comensal Dissidente, por estar correndo caminhos não propriamente juntos aos da oficialidade do Exército.
Enfim, parece-me que vocês agora conhecem o plano de fundo necessário para continuarem a percorrer essas simplórias linhas que escrevo. Volto ao frio, ao silêncio, à quietude soberana. O vento continua calado, e isso me possibilita ouvir os esperados passos seguindo até a clareira na minha frente. Eu, encostado em um velho e cansado salgueiro, espreitava a aproximação de um centauro impetuoso, de semblante por vezes arrogante, que logo começou a bradar:
-Ora, Quintino, saia logo de onde estiver!
-Considere-se extremamente míope ao não enxergar um vulto preto em uma imensidão de maldito branco que cobre essa floresta!
A irreverência com a qual nos tratávamos indicava e comprovava uma velha amizade entre nós dois. Realmente, aquele velho Montímuno, ao qual todos prestavam considerável respeito e obediência, brincara já comigo pelas pradarias mais altas dos montes que circundam a Velha Escola de Magia. Presente naquele sorriso havia um ar de orgulho, cria eu referente ao cumprimento de um favor que eu havia pedido. Montímuno, sim, vinha trazendo uma bolsa marrom, coberta de liquens e alguns flocos de neve, e isso me abria um sorriso na face. Ele, em sua posição imponente, sabia que o que me trazia render-me-ia bons frutos, e sua felicidade se tornou ainda maior quando estendi-lhe minha mão direita, coberta pela luva negra de couro parnasiano, e viu-se brilhar uma pequena peça.
-É daqueles de verdade, usados nos jogos dali da Velha Escola?
-Autênticos, mas reservo-me o direito de não revelar minhas fontes.
Dei uma risada. A felicidade do centauro era oriunda da realização de um antiqüíssimo sonho: ter um pomo de ouro, dos usados nos jogos de Quadribol da Velha Escola. Merecia, o velho Montímuno. Como amigo que me era, prometi-lhe que iria realizar-lhe o sonho, e está feito. Com seus olhos ainda fixos na linda esfera alada, ele me entrega a bolsa velha e surrada, e murmura:
-O que o Exército será sem você, o maior torneador que este mundo já conheceu?!
Lisonjeiro, o comentário do centauro, mas realmente há nele fundos de verdade. Durante minha estada no Exército Opaco, aprendi muito sobre a confecção de varinhas, vassouras, cajados e todo o tipo de objeto mágico, e o que recebia naquela hora eram algumas toras da melhor madeira mágica que se pode conseguir daquelas terras. Nunca me preocupei em perguntar como Montímuno conseguia tantas beldades para meus trabalhos, mas sempre que proferi uma vontade, fui de pronto atendido. Bom amigo, esse centauro arrogante e convencido! Realmente, ele é um dos poucos pelos quais daria minha vida, pois tenho a certeza de que por mim faria o mesmo, como já o fez em ocasião que não se constitui oportuno lembrar agora.
Estava feito. Com um amigo satisfeito e valioso carregamento em mãos, parti para minha simples cabana de pedra, na qual passaria a noite fria aproveitando a mulher que em minha cama dormia, e o dia também frio torneando os mais variados artigos de uma nova marca a nascer no mundo da mágica: Crucificatti.

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