Em Mil Pedaços



A tensão preenchia a sala como uma bola de espinhos, que ia se expandindo cada vez mais e os prensava contra a parede. Era impossível ignorar.

Snape, porém, havia conseguido manter a frieza. Até agora. Quando Potter pigarreou à porta da sala, pela primeira vez em anos ele não se sentiu tão satisfeito assim por ter aplicado uma detenção no rapaz. Mas Severus jamais engoliria seu orgulho o dispensando; então eles começaram sutilmente a trocar ofensas. Parecia o mesmo joguinho de ódio de sempre até Snape fazer um comentário debochado sobre o rapaz estar perdendo ali preciosas horas que poderiam estar sendo gastas com a namorada. Harry replicara com um "coisa que o senhor daria fortunas para ter". Snape quase engasgou, mas conseguiu manter a pose; e lançou ao garoto apenas um olhar carregado do mais puro desdém. Pôs-se a dar voltas pela sala, ruminando. Claro que não queria namorada alguma, que petulância a do garoto, achando que sabia alguma coisa sobre sua vida. Ele queria, sim, que Tonks o *perdoasse*, mas daí a querer algo mais... Era claro que não.

_ Pode se fazer de indiferente, mas é verdade. Eu sei, todo mundo sabe _ Harry murmurou audivelmente do outro lado da sala longos minutos depois.

Snape interrompeu o passo na metade, não acreditando no que estava ouvindo.

_ Quer tanto ser correspondido, aliás, que chegou ao ponto até de se humilhar. Ir até a casa dela, rastejando...

Snape girou nos calcanhares e caminhou lenta e ameaçadoramente até a mesa onde Potter estava sentado, calmamente escrevendo no pergaminho. Severus abria e fechava as mãos como se estivesse se controlando a duras penas para não esganar o rapazinho petulante que estava enfiando o dedo em sua ferida aberta. Mal e mal se controlando, ele se curvou sobre a mesa e disse:

_ Não é admitido falar nestes termos a um professor, Potter. Exijo respeito.

_ Respeito? _ Harry ironizou, tranqüilamente, erguendo a sobrancelha e olhando Snape nos olhos _ Como pode exigir respeito alguém que não o tem?

Severus abriu e fechou a boca umas duas ou três vezes, sem encontrar uma ofensa à altura. Enquanto isso, o garoto continuou, calmamente:

_ Sempre soube que o senhor _ e ele frisou ironicamente a palavra _ era um covarde. Mas trair alguém que teve a coragem de acreditar...

_ Potter! _ agora lívido, Snape começou a se descontrolar e seu tom de voz foi subindo...

_ Vai me matar, também? _ Harry perguntou, abrindo os braços.

_ Não admito... _ ... subindo...

_ ... insiste em ir atrás...

_ ... não sabe do que está falando, Potter! _ ... subindo...

_ ... e ora, vejam só! Estou vendo cabelos limpos nessa cabeça?

Aquela havia sido a humilhação final. Potter, mais um maldito Potter, debochando de suas fracassadas tentativas de conquistar uma garota. Uma sensação de deja-vu apoderou-se de Snape; e ele se viu outra vez em seu sexto ano, metido num traje de gala, no qual gastara todas as suas economias, esperando a companhia para o baile que nunca chegaria. E se retirando para os dormitórios duplamente humilhado, ouvindo atrás de si as risadas implacáveis de Black e Potter, debochando de seu cabelo arrumado, das vestes, e das flores que havia levado para a garota.

Snape cerrou os punhos e as unhas se enfiaram na carne, quase arrancando sangue; e ele vociferou, com gotinhas de cuspe acompanhando as palavras:

_ Expulsão, Potter! Soa bem, não? O Sr. passou dos limites! _ Harry apenas sorriu. Tinha deixado de sentir medo ou sequer se impressionar com aquelas demonstrações de fúria há muitos anos. Vendo aquele sorriso, Snape o agarrou pelos ombros e o sacudiu _ Desapareça da minha frente! _ ele gritou com voz esganiçada.

Muito calmo, o garoto deu de ombros, pegou a mochila e obedeceu: desapareceu pela porta. Tremendo horrivelmente, Snape passou a mão pelo rosto, tentando se recompor, ao mesmo tempo em que desabava sobre uma cadeira.

_ Maldito. Petulante. Atrevido. Orgulhoso. _ as palavras saíam entrecortadas pela respiração acelerada.

E então, de repente, todo ele estava queimando. De ódio, arrependimento e vergonha. Todos sabiam, então? Que ele, o frio e insensível Severus Snape havia tentado melhorar a ridícula aparência, engolido o orgulho e praticamente se arrastado aos pés dela? Talvez Tonks não valesse toda aquela humilhação, afinal. A raiva o preenchia como um líquido quente e amargo. Oh, que tolo havia sido! Havia aberto seu coração a ela de certa forma, exposto seu arrependimento, e agora... virara mais uma vez alvo de risadas do castelo inteiro. Outra vez: valeria mesmo a pena? Ele e Tonks eram completamente opostos. A convivência seria impossível, era claro! Aquilo era só uma obsessão idiota, um desejo doentio porque nunca a poderia ter. E ele havia se humilhado por... por aquilo! Snape passou os olhos em torno da sala, procurando uma forma de extravasar sua fúria. Então, se encaminhou até uma das muitas prateleiras abarrotadas de frascos e estendeu a mão para um deles. Acariciando a superfície lisa e escorregadia, ele murmurou:

_ Adeus, Nymphadora.

*

Seu cérebro trabalhava furiosamente, tentando encaixar as novas peças e obter uma resposta. Snape mentira para ela? Por quê? Ou realmente havia pensado que "seu plano" fora bem-sucedido? E porque, afinal, ele pretendera fazer aquilo com Lupin? Sim, Tonks se lembrava perfeitamente bem de que, durante algum tempo, Severus Snape e Remus Lupin haviam sido rivais, mas... chegaria Snape a tal ponto por uma paixão?

_ Ridículo.

Era claro que não. Se ainda fosse amor... E, pensando bem, se fosse realmente amor, isso a levaria a perdoá-lo? Ela sacudiu a cabeça, confusa, e voltou ao ponto de partida enquanto tomava mais um gole da cerveja amanteigada. Ela franziu a testa, estudando as pequenas bolhas que nadavam imersas no líquido claro e estouravam ao chegar à superfície. Então, suspirou pesadamente.

_ Não quero ser indiscreta, mas... vocês brigaram, não foi, querida?

_ Ahn? _ Tonks ergueu os olhos e Madame Rosmerta estava ali parada, uma das mãos apoiada no quadril, a bandeja de prata debaixo do braço e um sorriso compreensivo no rosto.

_ Posso me sentar? _ Tonks assentiu, e ela puxou uma cadeira _ Bem, então, o que foi que aconteceu entre você e o Professor Snape?

Tonks suspirou outra vez.

_ Olha, eu nem sei mais. Até hoje a tarde eu tinha certeza *absoluta* de que ele tinha feito uma coisa horrível, mas agora... agora não sei de mais nada. Se fez, se mentiu pra mim... E por quê? Por que ele mentiria?

Rosmerta mordeu o lábio, fitou o tampo da mesa e soltou a bomba:

_ Bem, porquê ele mentiria eu não sei. Mas... ele a ama, você sabe.

_ Ele o quê? _ Tonks perguntou com voz cortante e segurou a caneca de cerveja com tanta força que entornou quase metade do líquido _ Ah, não, claro que não...

_ Ora, você sabe como o Prof. Snape é. Jamais admitiria para a própria sombra que está apaixonado... não me admira nunca ter lhe contado.

_ Ah, não sei não. Você... você conhece bem ele?

_ Tenho o Três Vassouras há anos, querida. Sem querer esnobar, é o bar mais freqüentado pelos alunos, professores e quaisquer outras pessoas que tenham a ver com Hogwarts de todo o povoado. Você sempre acaba sabendo mais do que gostaria. E acaba aprendendo a descobrir o que vai na cabeça de alguém só pela forma como ela bebe, também. E é por isso que eu repito... ele a ama.

Tonks apenas mordeu o lábio; a outra mulher tocou-lhe a mão.

_ E você, o que sente por ele?

Tonks franziu a testa.

_ Ah, Merlin, também gostaria de saber. Sei que já tive medo, amei como amigo, odiei... acredita nisso? Eu, que nunca havia odiado ninguém em toda minha vida... E agora nem sei mais o que sinto _ ela suspirou outra vez.

_ Sabe que no último mês perdi as contas de quantas vezes o vi exatamente como você está agora? Sentado sozinho ali naquele canto, olhando pro copo de uísque de fogo e suspirando...

_ Ele... ele fez mesmo isso, foi?

_ Foi, querida. Sei que ele odiaria ouvir alguém dizendo isso, mas... foi de partir o coração.

Tonks sentiu o próprio coração se partindo um tantinho dentro do peito.

_ E você sabe como ele é. Ja-mais gostou daqui. Era sempre o Hog's Head ou então, aposto, beber sozinho nas masmorras. Mas então, você surgiu na vida dele e o Prof. Snape passou a vir aqui apenas por sua causa...

As rachaduras no coração dela aumentaram e pequenos pontinhos de dúvida começaram a brotar.

_ Ah, Madame Rosmerta, o que é que eu faço? Não sei mais no quê acreditar!

_ Vocês já conversaram sobre o que aconteceu?

_ Ah, mais ou menos _ haviam conversado apenas naquela fatídica noite. Depois, Tonks se recusara a responder até um simples "bom-dia". Apostava que, se lhe desse ouvidos, Snape viria com uma porção de desculpas furadas; e achava que já tinha tido o suficiente de falsidade da parte dele.

_ Bem, sugiro que tenham uma conversa séria. Ah, minha querida, você não faz idéia da quantidade de relacionamentos que vi irem por água abaixo apenas por falta de uma boa conversa...

_ Você acha, é? Devo ir falar com ele?

_ Tenho certeza.

Tonks fitou as bolhinhas nadando na cerveja outra vez. Não devia ainda sentir pena dele, mas... só de pensar nele, sozinho ali, suspirando por ela... em vez da cruel satisfação que sentiria até aquela tarde, o que ela queria agora era simplesmente... abraçá-lo.

Num ímpeto, ela ficou de pé.

_ Certo. Eu vou _ Rosmerta sorriu, Tonks pagou a cerveja e caminhou apressada pela noite.

Não havia perdoado Snape ainda, claro. Mas, depois do que Dumbledore e Rosmerta lhe contaram, achava que devia ao menos ouvir o que ele tinha a dizer, afinal. Aí, quem sabe, teria novas peças para completar o quebra-cabeça que a estava enlouquecendo. Agora... quanto àquela certeza absurda de Rosmerta, de que Snape a amava... ela sentia um incomodozinho no fundo da barriga só de pensar. E tentava desesperadamente parar de pensar naquilo.

Hogwarts chegou rápido demais; e Tonks de repente teve alguns segundos de dúvida. Mas, impulsiva como era, logo desceu as escadas e, chegando à grande porta de ferro fundido que dava para os aposentos dele, parou. A porta estava entreaberta; e ela sabia que Harry tinha detenção naquela noite. Apurou os ouvidos, e pareceu ter ouvido o som de algo se quebrando. Franzindo a testa, ela esperou alguns segundos e então, lá estava o som de vidro se partindo outra vez. Ela sacou a varinha e empurrou a porta.

Snape estava sentado à mesa, na sala quase completamente às escuras, iluminada apenas por algumas fracas chamas que vinham da lareira. Ela se aproximou silenciosamente, mas, de repente, pisou em algo no chão. Vidro. Que se quebrou sob seus pés. Olhando para baixo, Tonks prestou mais atenção: o chão inteiro estava coberto pelos frascos, quebrados em mil pedaços... e coisas viscosas jaziam entre os cacos.

Snape ergueu os olhos para ela e sua expressão era completamente vazia quando perguntou:

_ O que está fazendo aqui?

Tonks sentiu algo se contorcendo dentro dela. Vê-lo vazio era a pior coisa... sem demonstrar ódio, dor, frustração. Agora ela se dava conta de como ela mesma havia parecido até um mês atrás. Ela se aproximou e disse, muito séria:

_ Precisamos conversar.

Snape não respondeu, mas desviou os olhos para os cacos de vido no chão. Iluminados pelo fogo, brilhavam como pedras preciosas. Sem esperar resposta, Tonks puxou uma cadeira e se sentou do outro lado da mesa. Ela agora se lembrava das coisas horríveis que tinha dito a ele naquela tarde; e começou a se sentir horrivelmente constrangida. Não sabia nem mesmo por onde começar; e então o silêncio dominou a sala escura. Aos poucos, Snape passou a se sentir desconfortável. O perfume dela o perturbava. A presença incomodava, o impedia de respirar de forma apropriada. Ele lutou e lutou contra si mesmo, jurou se agarrar às decisões que havia tomado há apenas meia hora mas, para seu horror, se viu enterrando o rosto nas mãos e murmurando:

_ Tonks, eu sinto tanto... nunca tive a intenção... eu realmente não queria... se você soubesse o quanto eu desejo poder voltar no tempo e evitar tudo isso...

Se ele soubesse o quanto estava errado em sentir tanta culpa... O coração dela se partiu mais um pouquinho e, sentando-se na beirada da cadeira, ela tirou as mãos dele do rosto e as segurou entre as suas. Snape desviou os olhos.

_ Tudo bem _ ela murmurou suavemente.

Ele suspirou, e culpa e dor se estamparam em sua face.

_ Não, não está. Aliás, nunca está quando... _ ele se interrompeu subitamente, odiava auto-compaixão.

_ Quando...? _ ela perguntou, outra vez suavemente. De repente estavam eles dois outra vez na Sala Precisa, ela prestes a descobrir um grande segredo de Snape. E ele parecia ter a mesma sensação, pois se ouviu dizendo:

_ Quando alguém resolve aproximar-se de mim.

As lembranças o consumiam por dentro; ele era definitivamente maligno por natureza e nunca deveria se esquecer disso... mas se esqueceu. Por três vezes.

_ Lilly _ ele suspirou.

Tonks se sentou mais na beiradinha da cadeira, curiosíssima. O que viria em seguida? Seria... *o motivo*? Aquele acontecimento sobre o qual toda a Ordem da Fênix tecia suspeitas e mais suspeitas, o acontecimento que o havia feito mudar de lado? Ela o observou engolindo em seco. Snape relutava em se abrir, porém, sentia que precisava contar tudo a ela. E, se não o fizesse agora, jamais o faria. Tonks precisava ter uma visão clara da pessoa que ele era.

_ Ela era tão... maravilhosa. Inteligente. Justa. Boa.

_ E você... você se apaixonou por ela.

Não era uma pergunta. E ele se sentiu aliviado por não ter de responder.

_ E eu... acabei com a vida dela _ ele disse, num murmúrio quase inaudível.

Tonks assentiu com a cabeça. Sem que ela notasse, lágrimas começaram a escorrer pelo seu rosto enquanto se dava conta de tudo o que ele havia suportado. Um erro enorme. Julgamentos errados. Falsas acusações... até mesmo por parte dela, talvez.

_ Dumbledore _ ele disse, olhando para a parede _ De novo justo. Bom. Se atreveu a confiar em mim quando ninguém mais ousava...

_ Você se apaixonou por ele também.

Snape demorou alguns segundos para compreender as palavras, e então, virou-se para ela, estreitando os olhos. Ela sorria um sorriso banhado de lágrimas. De repente se lembrou do quanto Tonks era louca e às vezes tinha o hábito de fazer comentários completamente inconvenientes

_ Tonks... _ ele a repreendeu, e ela sorriu mais. E riu, jogando a cabeça para trás. E então, os lábios dele se curvaram um tantinho para cima. E mais. E mais. E de repente ele se viu sorrindo no meio da desgraça, sorrindo como há mais de um mês não fazia.

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Go, Harry, go! E sim, me xinguem porque eu parei o capítulo aqui, mwaahahah! ;D

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