Sobrevivendo

24 de Junho de 1999.


Snape correu os olhos pela sala; e a palavra veio-lhe instantaneamente à cabeça. Sobreviventes. Por breves momentos ele chegou a sentir algo como empatia por aquelas pessoas; e depois retornou a seu estado habitual de indiferença. Não eram muitas as pessoas ali mas, de qualquer forma, eram mais do que ele esperava que viessem. A diretora e todo o pessoal de Hogwarts, à exceção de Filch e dos fantasmas. Slughorn. Até a sapa velha da Umbridge estava presente. Kingsley e mais uns dois aurores que haviam se juntado à Ordem da Fênix no final da guerra. Arthur Weasley com dois de seus intermináveis filhos, Carlinhos e Ron, o segundo vindo visivelmente a contragosto, provavelmente arrastado pela Granger, que se portava com dignidade. Ele enxergou ainda mais alguns alunos ali, da Sonserina, logicamente, um pouco afastados do restante do grupo. Mas não havia nem sinal da pessoa que mais desejava ver.

Mas era óbvio. O que estivera esperando? As palavras que McGonagall lhe dissera quase três meses atrás ainda ecoavam em seus ouvidos. Choque. Depressão profunda. Por mais de uma vez Snape havia pensado em escrever a ela. Mas nunca chegava nem mesmo a tirar o pergaminho da gaveta. O que lhe diria? Será que aquilo que haviam construído durante a guerra, aqueles momentos quase idílicos e afastados do mundo exterior... será que esses sentimentos sobreviveriam no mundo aqui fora? E, mais do que isso: ele... deveria? Ela já teria tomado conhecimento da parcela de culpa dele em sua nova vida?

A chegada do Ministro da Magia interrompeu o confuso fio de pensamentos. Rufus Scrimgeour saudou os presentes e então, deu início à pequena cerimônia da entrega da Ordem de Merlin, Primeira Classe, a Severus Snape, por serviços prestados durante a guerra. Finalmente Snape havia conseguido o que sempre desejara. Porém, estranhamente, não se sentia nem metade tão satisfeito como sempre pensara. A que custo ele havia conquistado aquele prêmio... a morte de um de seus melhores amigos... uma das pouquíssimas pessoas que haviam atrevido a confiar nele... Severus ficou muito quieto durante toda a cerimônia e recebeu sem muito entusiasmo os cumprimentos ao final. Ele estava curvado sobre a mesa assinando algumas formalidades quando sentiu uma pequena mão pousando em seu braço. Antes mesmo de erguer os olhos e ver parada à sua frente a garota toda de preto, exceto por belos olhos muito azuis, ele já sabia quem era. Numa fração de segundo se deu conta de que era o perfume dela, o que possibilitava que a reconhecesse mesmo por trás de todos os disfarces. O perfume e algo muito mais sutil, uma essência, ou um estranho tipo de telepatia, talvez, que ele nem podia adivinhar de onde vinha. Um sorriso surgiu em seu rosto e as palavras lhe brotaram dos lábios sem ele pensar:

_ Você veio.

Ela lhe sorriu brevemente; e dois pares de olhos se prenderam um no outro; e as palavras lhes faltaram. Havia tantas coisas que ele queria dizer a ela... nem sabia por onde começar! Mas o mais importante era que metade de suas perguntas haviam sido respondidas apenas com um olhar... sim, a amizade sobrevivera ao final da guerra. Ele não conseguia traduzir em palavras a sensação de tê-la por perto outra vez; e odiava admitir mas sentia tanta, tanta falta daquelas horas que passavam juntos... Então, numa súbita compreensão, Snape se deu conta de que não era Tonks, afinal, quem estava ali, mas uma sombra do que ela havia sido. Onde tinha ido parar a vida dentro dela? Choque e tristeza começaram a assaltá-lo e, em seguida, a culpa, velha companheira. Mas então, ela estendeu a mão e tocou a medalha, arqueando as sobrancelhas.

_ Estamos ficando importantes, huh?

_ Hm _ ele desdenhou e ela sorriu outra vez; e então se jogou em um abraço. Dessa vez, Severus a abraçou de volta, os braços a apertando muito forte como que para protegê-la de todas as coisas ruins.

_ Você merece _ ela murmurou em seu ouvido, ao mesmo tempo arrancando-lhe arrepios e aumentando a culpa. Mas Tonks se afastou rápido demais.

_ Tenho que ir. Trabalho. Só dei uma escapada para ver você _ e ela ficou na ponta dos pés e beijou-lhe a face, mal dando a Snape tempo de responder um "obrigado" antes de desaparecer por completo. Ele a procurou com os olhos, ansioso, e não havia mais sinal dela; havia sido tudo tão rápido... como uma ilusão. Mas seu olfato apurado captou vestígios do perfume dela em suas vestes, se misturando ao dele... Porque ela tinha sumido tão depressa? Ele queria lhe pedir, perguntar... saber o que ela andava fazendo, como estava vivendo... havia sido uma grata surpresa vê-la ali; e ela já estava até mesmo de volta ao trabalho. Porém, não havia formas de esquecer a expressão de dor oculta em seu rosto. Ele queria arrancar aquilo dela. E foi ali, naquele instante, em que ele prometeu a si mesmo que iria ajudá-la a voltar a ser a Tonks de sempre; aquela que ele havia aprendido a duras penas a... gostar.

Pouco mais de um mês depois ele a encontrou no Três Vassouras a fim de fazer-lhe um convite.


*


Dois de Março de 2000.


Ele nem se lembrava mais de como era ser frio e impassível. Tudo o que existia agora era aquela necessidade que o consumia por dentro e o impelia a (como ele próprio diria nos velhos tempos) a "humilhar-se". Snape observava as mãos longas e pálidas apertando firmemente os braços da poltrona, os nós dos dedos ainda mais pálidos.

_ Você tem certeza? _ perguntou McGonagall do outro lado de sua escrivaninha.

_ Tenho _ ele respondeu secamente antes de voltar a ruminar seus pensamentos.

_ Muito bem, então.

Um tenso silêncio voltou a cair sobre a sala por mais algum tempo antes de a porta se abrir e deixar entrar Kingsley Shacklebolt. Ele estendeu a mão a Minerva e depois a Snape; e retirou alguns documentos de dentro das vestes, que pediu a ambos que assinassem.

_ Sua varinha, por favor _ Snape estendeu-a obedientemente _ Bem, o procedimento padrão me obrigaria ainda a usar um feitiço anti-fuga, mas... acho que não será necessário, estou certo?

_ O único lugar que me interessa estar, acredite-me, é ao lado dela _ e logo notando o quanto suas palavras o haviam traído, ele ficou de pé e acrescentou rispidamente _ Vamos logo.

Ele acompanhou os passos largos de Kingsley até os portões, mal registrando o que o auror dizia. Em instantes chegaram a Hogsmeade e então, aparataram ao que parecia ser um subúrbio de Londres, em frente a um charmoso sobrado. Kingsley se adiantou e tocou a campainha.

Embora jamais houvesse visto Andrômeda Tonks em toda sua vida, Snape soube imediatamente quem estava parada à porta. Como Tonks em uma certa noite, Andrômeda também lembrava muito Bellatrix Lestrange. Não havia, porém, nada de maligno em sua expressão, mas ela tampouco parecia ser ingênua. Encostada na moldura da porta, os braços cruzados, cabelos castanhos longos e lustrosos, olhos cinzentos, usando uma camisa púrpura e exóticas pulseiras, a mãe de Tonks o recebeu com uma expressão ao mesmo tempo divertida e hostil.

Ele se adiantou, a garganta seca; e cumprimentou-a com um aceno de cabeça.

_ Sou S...

_ Sei quem você é _ interrompeu a mulher, numa voz meio rouca, a sobrancelha erguida.

_ Eu... gostaria de falar com Tonks.

_ Nymphadora _ ela o corrigiu; e acrescentou _ Se ela o receber...

_ É realmente importante. Por favor _ ele suplicaria se fosse preciso.

_ Vou ver o que posso fazer _ e ela escancarou a porta.

Enquanto Andrômeda e o auror se cumprimentavam efusivamente, Snape se viu perdido no meio de uma sala atulhada com todo tipo de objetos exóticos. Em apenas alguns segundos, apenas observando a casa e a mãe dela, Snape conseguia compreender de onde Tonks vinha, qual seu mundo e de onde ela havia herdado aquela personalidade forte e direta que tanto o atraía, sem esquecer o exótico nome e o gosto por coisas fora do comum.

Tonks. Ela estava ali, tão próxima... a respiração ficou suspensa por alguns segundos enquanto Severus pensava que bastariam alguns passos e ele...

_ Sentem-se _ Andrômeda ordenou e sumiu escada acima. Snape se sentou muito reto em uma poltrona roxa, a mão apoiando o queixo, as sobrancelhas retas e ameaçadoras. Kingsley se calou procurando entender o que estava acontecendo ali; Andrômeda podia ser muito irônica mas definitivamente era amigável. E logo tudo ficou ainda mais estranho, quando a voz de Tonks se fez ouvir do andar de cima, gritando furiosamente:

_ Snape? O que esse maldito faz aqui? Não, não quero. Não quero nem ver!

E logo uma porta batia com estrondo. Snape afundou em sua poltrona como se houvesse levado um soco no estômago e cobriu o rosto com a mão.

_ Eu tentei _ anunciou Andie, retornando à sala. Mas ela não parecia nem um pouco frustrada.

Snape meneou a cabeça e murmurou:

_ Juro que não planejei nada disso... não era para ter sido assim _ e então ergueu os olhos para a mulher _ Preciso dizer isso a ela.

_ O Sr. ouviu a resposta dela, Sr. Snape. E acho que sabe o quanto minha filha é cabeça-dura, então acho bom não ter muitas esperanças. Se bem que ela tem toda razão, é claro, em agir assim.

Severus suspirou.

_ Se eu pudesse voltar atrás...

_ Pois devia ter pensado em todas as consequências antes de agir feito um idiota.

Idiota. Talvez fosse isso mesmo o que ele era; então ele não reagiu. Andrômeda ofereceu-lhes uma bebida e, como os dois recusassem, ela se sentou no sofá roxo, uma das pernas cruzada sob o corpo, e acendeu um cigarro trouxa com a varinha.

_ Mãe alguma suporta ver a filha nesse estado.

_ Eu não suporto sequer imaginar Tonks nesse estado _ ele se apressou a dizer, secamente.

Ela apenas estreitou os olhos e deu uma lenta tragada no cigarro e da mesma forma, muito devagar, soltou a fumaça, enquanto pensava. E então disse:

_ Sabe, me lembro bem do dia em que ela passou por aquela porta toda feliz. "Mãe, ele é só um pouco mais velho, mas você vai adorá-lo"_ e ela imitou a voz mais fina da filha enquanto arregalava os olhos exatamente como Tonks fazia _ Mais velho, certo. Me lembro que pensei que seria bom pra ela, quem sabe, crescer um pouco. Mas logo fiquei sabendo do problema dele... _ ela se interrompeu, deu mais uma tragada no cigarro e as palavras seguintes saíram de trás de um véu de fumaça _ Licantropia, entende? Além de todo o preconceito... ainda teria o problema do dinheiro, do perigo... Nymphadora era uma auror! Eu estava relutante em aceitar aquela loucura. Mas aí, no instante seguinte, me dei conta de que estava falando exatamente como a minha mãe quando disse que iria me casar com o Ted... aquela velha... _ e ela murmurou algo incompreensível enquanto deixava a cinza cair num cinzeiro de jade muito verde _ Então eu disse a Nymhpadora: vá, minha filha. Se ele a faz feliz, tem a minha bênção. E ele a fez _ Andie se inclinou para a frente _ ela e Remus foram muito felizes até o Sr. Snape aqui resolver que seria muito interessante separar os dois... e eu me pergunto: Por quê?

Ele apenas desviou os olhos.

_ E depois ainda tem a audácia de vir até aqui para... para conferir o resultado? É isso? Como pensava que Nymphadora pudesse estar?

Exatamente como ela estava. E ele queria tomá-la em seus braços, oh céus, como queria. E bastava subir alguns lances de escada. Mesmo que levasse mais mil tapas na cara... ele merecia, não era?

_ Eu... estou péssimo com isso tudo _ ele murmurou quase inaudivelmente _ Não foi proposital, acredite.

_ Proposital ou não, foi uma ação sua que o matou, Sr. Snape _ e a mulher, apesar de furiosa, começou a sentir ao mesmo tempo compaixão pelo homem sentado ali, magro, pálido, com uma aparência doentia, parecendo tão sinceramente arrependido. Mas não, não sentiria pena dele. Sirius e a filha mesmo lhe haviam dito o quanto ele era traiçoeiro.

Snape ficou de pé, as feições mais duras do que nunca.

_ Devo ir, então.

_ Ora, uma decisão acertada, quem diria? _ e mais uma vez ele não reagiu à ironia, mas estendeu a mão para Andie, que a apertou com dedos firmes.

_ Obrigado por me receber. E... se puder, por favor, diga a Tonks...

_... Nymphadora...

_ ... que eu.. sinto muito. Se pudesse voltar atrás... se pudesse adivinhar que Lupin morreria... adivinhar o que viria a sentir por sua filha... bem.

Andie apenas suspirou e abriu a porta. Kingsley abriu a boca apenas para se despedir dela; e outra vez quando já se encontravam frente às portas de carvalho do castelo. Então ele perguntou numa voz fria:

_ Escute... aquilo... na casa da Andie... é o que eu penso?

Snape ergueu o queixo e disse num tom moral:

_ Se pensa que eu matei Lupin, então, está certo.

O auror estreitou os olhos, parecendo se controlar a muito custo.

_ Francamente, Snape... achei que finalmente você tinha encontrado alguém que de quem pudesse se tornar amigo... mas pelo visto, me enganei. Nada vai te fazer mudar, não é mesmo? Nem guerra, nem mortes... e com Tonks, ainda por cima? Tonks, que jamais fez mal a qualquer pessoa, que sempre trata a todos tão bem?

_ Estou muito feliz e satisfeito com o que fiz, como dá pra notar.

_ Ora, eu devia...

_ Pois vá em frente.

Snape permaneceu de pé, rígido, o vento agitando as vestes negras. Olhava desafiador para o auror; e este teve uma estranha impressão de que Severus não sentia medo algum do que quer que pudesse acontecer naquele momento, pelo contrário. Parecia desejá-lo. Kingsley respirou pausadamente e se controlou; não era um assassino como o outro.

_ Não acho que precise fazer algo. Você acabará consigo mesmo sozinho, se continuar assim _ e, entregando-lhe a varinha, deu as costas a Snape e se perdeu na noite que começava a cair.

Snape havia conquistado mais um inimigo. Mas estava certo, era o que ele era mestre em fazer. Era o curso natural das coisas.

---

Esse capítulo talvez não seja tão importante assim pra história, mas eu precisava fechar o elo entre presente e passado; e também mostrar até que ponto o Snape foi. Só tenho medo dele ter ficado um pouco OOC nessa segunda parte, o que vcs acham? Ai. Ah, espero ter mostrado a Andrômeda tão poderosa como imagino que seja. Beijinhos a todas as que comentaram (meio corrida essa semana, não vou poder mandar respostas particulares): morgana black, maria cláudia e hannah, e obrigada tb a quem leu mas é quietinho demais pra dizer algo ;D

Você precisa estar logado para comentar. Faça Login.