O Anjo



“Quando Ismália enlouqueceu,
Pôs-se na torre a sonhar...
Viu uma lua no céu,
Viu outra lua no mar.”


 


 


A noite estava bonita. Teoricamente pelo menos.


Ela tinha tudo para estar bonita, o céu estava limpo, as estrelas apareciam aos montes, a lua estava no máximo de seu esplendor. Mas ela não conseguia ver essa beleza tão descarada. Na verdade ela não conseguia ver nada além da sua própria dor que dilacerava cada parte do seu ser, não a deixava respirar, não a deixava pensar, não a deixava viver.


Era assim que os últimos meses poderiam ser resumidos, cinzas restantes de uma fogueira que já tinha se apagado fazia tempo, nem ao menos uma pequena brasa podia ser vista. A festa tinha acabado, o prazer tinha ido embora, as cores se dissiparam e o seu coração, por mais que batesse, não queria mais bater, tudo perdera a graça.


 



“No sonho em que se perdeu,
Banhou-se toda em luar...
Queria subir ao céu,
Queria descer ao mar...”


 


 


Ela procurava desesperadamente por algo que a fizesse sentir alguma coisa. Qualquer coisa. Ela só queria se sentir viva como sabia que poderia ser. Mas todo aquele azul prendia a sua mente num ritmo que ela sabia que não teria mais volta.


O lago que estava bem abaixo dos seus olhos refletia tudo, como um perfeito espelho de imperfeições. Era fascinante como ele conseguia reproduzir o que estava logo acima e ao mesmo tempo ter o seu próprio toque, que fazia a cena ficar ainda mais bela, ainda mais hipnotizante, como se tudo no mundo fosse daquele nível de compatibilidade.


A lua brilhava como se não houvesse amanhã. E talvez realmente não existisse mais um amanhã, talvez tudo acabasse hoje, as luzes se apagariam e o breu reinaria dando passagem para o fim real, para a concretude do vácuo de sua mente.


 



“E, no desvario seu,
Na torre pôs-se a cantar...
Estava perto do céu,
Estava longe do mar...”


 


Vácuo.


Era uma palavra engraçada para uma Corvinal.


Sua mente já fora ágil, afiada, sábia, competitiva, ela já fora tudo menos o que era agora. Talvez isso que a estava enlouquecendo. Ela não nascera para aquele vazio, para aquela maré morna, para aquele nada, para aquele negro que não possuía significado algum além de uma dor constantemente irritante. Isso era possível?


A lua do lago tremulava em pequenas ondas ritmadas, criando uma melodia em sua mente. Toda aquela visão fazia parecer que era realmente possível, que respirar não era ruim, que viver poderia ser interessante, que um sorriso poderia ser verdadeiro, que verdades existiam, que o amor era possível.


Mas isso era apenas um devaneio, afinal o amor era mais uma das mentiras inventadas pelas pessoas, correto?


Porque na verdade a vida era uma grande peça de teatro, onde cada um queria ser o próprio protagonista nos ridículos e minúsculos mundos que eles próprios criavam entorno de si, esquecendo que existe muito mais daquilo.


Como as duas Luas que ali estavam. E apesar de serem exatamente iguais, elas eram absurdamente diferentes, uma estava bem perto do céu, brilhando em seu completo esplendor e graça, enquanto a segunda estava beirando o chão, tremulante, ofuscada sem ser como realmente poderia ser. Um retrato maravilhoso dela e de sua irmã.


 



“E como um anjo pendeu
As asas para voar...
Queria a lua do céu,
Queria a lua do mar...”


 


A lembrança da sua irmã fez com que o ar ficasse ainda mais gélido. Isso poderia ser coisa da sua cabeça, já que ela estava na torre de astronomia no meio da madrugada, então era completamente normal aquela temperatura por ali. Mas naquele ponto ela já não conseguia distinguir o que era produzido pela sua cabeça e o que era realidade.


Afinal, o que poderia ser dito como realidade?


Ela pensou que o sentimento que ela nutria por sua irmã era real e, pior ainda, era correspondido. Só que não era bem assim que as coisas funcionavam. Afinal ela era sua irmã, era uma mulher e ambas eram indianas. E logo ela descobriu que a outra  estava certa, ela logo acabaria no inferno por conta desse sentimento.


Talvez o inferno já tivesse começado e ela não tinha percebido. Talvez ela já estava começando a pagar pelos seus pecados.


Pecado e perdão. Céu e Inferno. Anjo e Demônio. O que eram essas palavras além de escopos sem nenhum real significado, apenas mentiras inventadas para reprimir e emitir uma falsa sensação de proteção e comodismo para quem não tinha coragem de admitir os próprios erros.


E era isso que ela precisava naquele momento, não? Algo que a fizesse sentir segura, acolhida, bem-vinda em um lugar que ela sabia que poderia chegar nem perto e que lhe desse esperanças de que tudo não estava acabado.


Então o que poderia ser o seu anjo?


Um quadro lhe veio à cabeça, de um homem com falsas asas nas costas, talvez se ela fizesse igual poderia sair daquele lugar que a sua própria mente lhe enclausurara. Talvez se ela pudesse criar as suas próprias asas poderia sair daquela prisão.


Na realidade somente ela criar as suas asas para fuga, pois fora ela própria que criara seu cativeiro.


 



“As asas que Deus lhe deu
Ruflaram de par em par...
Sua alma subiu ao céu,
Seu corpo desceu ao mar...”


 


 


Talvez Deus realmente não existisse, mas aquela sensação do vento batendo contra o seu corpo lhe dava tamanha liberdade que ela chegou a pensar que talvez ali fosse a morada Dele.


Pelo menos agora sua mente não estava mais presa, não existia chão nem dor, não existia aquela sensação frívola, insensível a qualquer outra coisa que não fosse ela mesma.


Agora ela tinha uma nova sensação que ocupava todo seu corpo, a liberdade. Liberdade de sorrir, de sentir, de sair, de respirar, de ver, de tocar, de não pensar.


Junto com a liberdade veio a felicidade de poder sentir algo além do nada, veio a alegria de perceber como aquilo era simples, veio o prazer de saber que realmente era possível sentir alguma outra coisa depois do tudo que se tornara o nada.


Será que o amor poderia dar tudo aquilo que ela estava sentindo com tamanha intensidade e alegria?


Talvez.


 Só que dessa vez antes de mais nada, a escuridão chegou de vez.


 


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A: Eu sei, tá bem doida, mas meio que era pra ser assim mesmo. É que veio na cabeça e como é bem pequena deu pra fazer uma short sem criar grandes preocupações.


Por último, e o mais importante, obrigada por lerem!

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