Capítulo único





Fanfic continuação de Conto da Barca do Inferno:
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* * *
 
   "[...] Visitarei o rei da Babilônia, e esta nação, diz o SENHOR, castigando a sua iniquidade, e a da terra dos caldeus; farei deles um deserto perpétuo."


 
A Ilha da Noite Sem Fim  


O navio enfim atracou. Era o anoitecer mais obscuro que a maior parte do grupo já havia visto. Nenhuma estrela à vista, nem quaisquer nuvens acanhadas que pudessem estar escondendo-as. A lua podia ter despencado do céu ou desaparecido com magia maligna, mas Hermione preferia pensar que ela apenas estava em sua fase nova e que dentro de alguns dias voltaria ao seu esplendor.


Não era uma opinião de que Severus compartilhasse, e não demorou a deixar claro o que realmente pensava.


– Da maneira que esse local está pavoroso, não duvido que até os astros tenham-no abandonado.


Desde o desembarque em um porto preenchido por madeira podre, musgos e ventos com cheiro de morte, a esperança de que a jornada não fosse tão cruel se fora num piscar de olhos. Um calafrio percorreu o corpo de Hermione, mas ela preferiu tentar pensar de modo técnico e não deixar o temor silenciar seu raciocínio.


O Mestre de Poções formou na ponta de sua varinha uma luz esverdeada que ajudaria a clarear um pouco o caminho. Os demais seguiram seu exemplo e deram os primeiros passos à frente.


– Curioso. Realmente curioso...


– O que é tão curioso, diretor? – Hermione desejou saber enquanto instintivamente se posicionava perto do professor slytherin para caminhar ao lado dele, apesar de fitar o ancião com atenção.


– Surpreende-me que tenhamos a permissão de utilizarmos nossa mágica num local em que ela é supostamente abominada.


Harry estreitou o vinco entre as sobrancelhas, mas nada disse. Dumbledore prosseguiu:


– Nosso povo e o que habitou essa região há muitos séculos travaram uma ampla disputa por poder. Minha suposição é a de que apenas magia básica e elementar nos é lícita aqui, diferente de feitiços capazes de ferir ou matar. Não eram do tipo adepto às guerras, mas eram bastante sábios.


– E o que lhes aconteceu? – a sede de Hermione por conhecimento a fez perguntar mais uma vez.


– É uma civilização extinta. Os que restaram depois da devastação sofrida migraram para outras partes do globo. – a resposta pareceu satisfazer a bruxa, e a partir dali o silêncio fez-se presente.


Não precisaram caminhar muito para que algo capturasse sua atenção.


O único local com um pouco de visibilidade era um casebre medíocre e largado ao abandono que estava localizado a alguns metros de distância do cais. Próximo a ele havia somente o solo arenoso que formava um caminho único a se seguir. Não era de modo algum reconfortante, mas era claro que não havia um leque de possibilidades aos viajantes. Quem chegasse até ali só poderia fazer duas escolhas: voltar por onde veio – no caso, o navio – ou ir por ali.


O grupo não hesitou ao se direcionar à casinha suja e destroçada. Dumbledore, como o líder que era, seguia na dianteira, tomando o que pudesse existir de perigo para si. Em uma das mãos estava a varinha, a outra empurrava com cuidado a porta cheia de farpas que rangia, quebrando o silêncio absoluto que reinava.


Entraram atentos aos detalhes, movendo as vistas por todos os cantos e partes obscuras que encontravam.


O local era singelo e formado por três cômodos mal divididos. No primeiro deles havia uma cama de palha, no outro uma mesa com duas cadeiras de madeira em volta. No último, o mais curioso, somente existia o que parecia ser uma estante, mas com um único objeto posicionado acima dela. Não era um livro ou um quadro como poderia se imaginar, Ronald o encontrou primeiro.


Um relógio cuco, com flores entalhadas na superfície, parecia quebrado e antigo. Seus ponteiros não se mexiam. Não fora somente o fato de ele não funcionar que chamara a atenção de Ron, contudo: estava encoberto por respingos do que parecia ser sangue.


– Harry! – chamou, uma pontada de pânico em sua voz.


Harry e Hermione estavam próximos, no mesmo cômodo, observando a minúscula janela e discutindo se o cadáver existente em seu apoio era de um corvo ou de um morcego. Viraram-se no mesmo momento para observar Ron, que já estava completamente lívido.


O Menino-Que-Sobreviveu foi mais rápido que a garota, olhando o objeto com curiosidade. Sentia que havia algo errado ali, parecia tudo tão... falso.


Hesitando por um momento, mas sem ser impedido, estendeu a mão para pegar o relógio. Só foi necessário tocá-lo para que ocorresse uma abertura na estrutura e o cuco despontasse.


Um grasnar horrendo de um animal artificial com um olho faltando foi ouvido em todo o casebre. Ele voltou ao relógio e tornou a sair, as asas fingindo bater. Não demorou muito para que todos os cinco integrantes da tripulação estivessem amontoados ali. Alguns pálidos, outros encarando o objeto em alarme.


Ninguém se atreveu a falar, pois o grasnar aos poucos foi substituído por palavras arrastadas.


Cinco elementos o Universo compõem. A fênix e suas plumas de fogo expiarão em cinzas, todavia; o ar será aprisionado em redoma de vidro à luz que não a do dia; a água límpida se tornará vapor não recôndito; a terra se transformará em perpétuo deserto. Restará tão somente a alma, cujo destino é incerto.


– Não entendi. – Ron, após dizê-lo, fez total expressão de confusão e incredulidade. Harry permaneceu apático, mas Hermione, Dumbledore e Snape se entreolharam imediatamente após absorverem as palavras que pareciam formar uma profecia.


Era quase certo que haviam chegando à mesma conclusão.


– Ei, o que é isso? – Harry questionou em assombro logo depois, apontando para o relógio cuco. Dele brotava uma pequena esfera luminosa e estranha, que aos poucos foi entrando em movimento.


– Vamos! – Severus ordenou quando o ponto de luz se afastava pela fresta da porta entreaberta.


– E se for uma armadilha? – o rapaz de cabelos bagunçados imediatamente contrapôs.


Snape já preparava uma resposta ácida, mas Dumbledore se adiantou ao outro professor.


– Não possuímos muitas pistas, Harry, portanto qualquer sinal nos é bem-vindo. Basta que sejamos cautelosos.


– E se nos separássemos? Alguns de nós seguiriam o caminho indicado pela luz enquanto outros faziam vistoria nas redondezas atrás de mais algo suspeito.


– Prometemos seguir juntos, Ronald, e o faremos até o fim.


– Muito sensato, senhorita Granger. – o diretor, num gesto complacente, sorriu-lhe e foi à frente do grupo outra vez.


Ao deixarem o casebre, de varinhas em punho, viram o ponto de luz perolada a uma distância de mais ou menos dois metros deles. Nos primeiros passos do trajeto ouvia-se apenas o arranhar de seus calçados contra a areia que formava uma trilha em meio às pedras.


– Alguém pode me explicar o que foi aquilo? – o ruivo desejou saber após algum tempo guardando a dúvida para si, ainda estarrecido pelo que ouviu. A varinha visivelmente lhe tremia entre os dedos.


– Apenas um de nós chegará ao final da missão. – Snape foi direto ao ponto, com a voz invariavelmente fria, quase o mesmo tom baixo e indiferente de que se usava para lecionar.


– Vamos... morrer? – o ruivo engoliu em seco após mencionar a última palavra.


– A profecia era pouco clara em suas metáforas, senhor Weasley. A maioria de nós será carta fora do baralho – Dumbledore explicava com uma voz calma pouco condizente com a situação que atravessavam –, o que não quer dizer necessariamente que morreremos. O certo é que haverá algo para deter-nos.


Ron não retrucou, contentou-se com repensar as partes da profecia de que se lembrava para tentar descobrir alguma pista de qual seria seu destino.


Não houve uma segunda decisão pronunciada, e os cinco continuavam acompanhando o rastro luminoso que, conforme se expandia, deixava de ser arredondado para ganhar formas inicialmente desconhecidas. Todos acabaram tão obcecados pela luz que deixaram de reparar no destino a que ela os levava.


Hermione sufocou um grito ao observar o solo – que no momento estava iluminado pela primeira vez –, o que chamou a atenção dos demais.


– Isso é sangue? – questionou Ron, quase num berro.


– Sim, senhor Weasley. – Dumbledore esclareceu, seu semblante ainda aparentemente tranquilo.


– Vejam! – Harry era o único que não havia encarado o chão, impossibilitado de deixar de cravar os olhos na luz em metamorfose.


A figura havia crescido bruscamente, em questão de segundos, deixando de se distanciar deles para completar sua transformação. Ganhara quatro patas, um rabo e uma crina. Estava quase confirmado que era um pequeno cavalo quando o que se assemelhava a um chifre surgiu acima da testa do animal.


– Um unicórnio! Trata-se de um patrono? – perguntou Hermione, mas não houve tempo para analisá-lo, pois ele começava a trotar, deixando-os para trás.


Seguiram-no quase sem dificuldade. Ronald às vezes focava-se nas manchas de sangue na estrada, tentando ignorá-las o máximo que podia, sem muito efeito.


Snape foi o primeiro a perceber que a criatura adentrava um círculo tão luminoso quanto ela, detendo-se ao alcançar seu centro.


– E agora? Vamos penetrar o limite de luz ou vamos tentar contorná-lo?


– Não creio que chegaríamos a qualquer lugar relevante, ignorando a mensagem do que nos trouxe até aqui, se procurarmos um caminho que nos pareça menos arriscado, senhor Weasley.


– Então ultrapassamos a luz e vemos o que acontece? – questionou Harry, tentando afastar de sua voz o tom de desconfiança.


– Eu irei sozinho antes. Já estou velho, morrerei em breve, foi para uma situação como essa que seu professor está aqui conosco.


– Mas, Dumbled...


– Severus, você prometeu.


A resposta pareceu deixar o professor de Poções sem palavras, e mesmo o trio de gryffindors que os acompanhava precisou engolir o coro de protesto que por pouco não brotou deles. Dumbledore aproveitou o breve momento de inércia e o silêncio total para se adiantar na direção da esfera cintilante.


Por um segundo, o diretor parecia ser um espectro. Tão ilusório em seu brilho emprestado.


O unicórnio somente se mexeu ligeiramente, mas nada mais aconteceu. Da mesma maneira, nada havia se passado com o velho bruxo presente no interior da forma.


– O senhor está bem? – perguntou Hermione, encarando-o apreensiva.


– Estou, senhorita Granger. Agradeço pela preocupação. 


– Minha vez de tentar. – Snape não esperou por palavras antes de se aproximar de Dumbledore, sentindo o brilho perolado envolvê-lo.


Com os dois responsáveis já posicionados ali, Harry, Ron e Hermione não hesitaram. Deram as mãos e fizeram o mesmo percurso. No entanto, eles não brilharam, e o unicórnio – em vez de apenas se remexer incomodado – passou a trotar em círculos e num ritmo acelerado em volta deles.


Só houve tempo de se unirem no centro, pois a criatura, enfurecida, contornava a área luminosa que os envolvia, impedindo-os de sair dali.


Um paredão fantasmagórico começou a se formar e o unicórnio soltou um relincho que parecia penetrar até a alma deles, num ruído enlouquecedor o bastante para que todos tapassem os ouvidos e caíssem de joelhos. As varinhas não possuíam qualquer serventia ali, e a única alternativa para eles era desejar que o barulho parasse. Antes, todavia, de seu desejo ser atendido, a inconsciência os alcançou.


* * *


Hermione foi a primeira a abrir os olhos. Uma brisa fria tocava seu rosto, e com ela veio a percepção de que não sentia grande parte de seus membros. Moveu as mãos com cuidado e enfim o sangue voltava a circular com maior intensidade. Sentou-se no que percebia ser gelo encoberto por uma camada áspera de areia, mas não uma areia qualquer.


Após acender a luz da varinha, ao seu redor ela só era capaz de enxergar tons entre o branco e o azul, não a tradicional cor para a areia que oscilava entre amarelo e bege. Nada mais era visível, porém, e estava sozinha naquela imensidão desértica. E sombria, pois a noite eterna insistia em persegui-la, não importa onde estivesse.


Levantou-se, visando situar-se. Lembrava-se da esfera luminosa e de ter desmaiado, mas aonde foram parar? E onde estavam todos?


Alguns minutos se passaram, sem resultados. Hermione só começou a considerar mudanças no ambiente quando se introduziu numa névoa densa e obscura. Sua varinha estava preparada, mas ela não sabia ao certo em que grau algum feitiço funcionaria. Se somente feitiços para sobrevivência eram permitidos ou se os de defesa também. Esperava sinceramente que não fosse obrigada a descobrir.


O primeiro elemento visível foi uma sombra acima de sua cabeça; o segundo, um rosnar agressivo seguido de um assobio agourento. Depois escutou um resmungo familiar que reconheceria em qualquer lugar: Ronald estava por perto. Franziu a testa, deixando de focar o céu para enxergar além da névoa. Ali parecia haver dois vultos, um maior e menor, mas em nada se assemelhavam às sombras.


Sua visão ficava cada vez mais nublada e sabia que deveria se afastar da névoa, mas antes precisaria descobrir se aqueles vultos eram o que ela acreditava que fossem.


Bastaram alguns passos para que uma voz conhecida soasse e a surpreendesse de maneira irreversível.


– Todos para o chão! – gritou de repente o Mestre de Poções enquanto bruscamente empurrava Hermione contra o solo granuloso e frio, deitando-se por cima dela para blindá-la com o seu corpo – Fechem também os olhos e cubram nariz e boca! – ordenou assim que intuiu que aquela névoa poderia ser tóxica.


Hermione havia caído de costas, e sentiu o peso de seu professor assim que ambos encontraram a areia que deveria ser fofa e não fria, embora o impacto não tenha sido tão forte quanto poderia ser em outra superfície.


Ela emitiu um ruído de surpresa, logo abafado quando uma mão pálida do homem cobriu a boca e o nariz dela.


– Proteja também seus olhos. – sussurrou, usando sua mão livre para acobertar os seus próprios.


A garota o obedeceu prontamente, confirmando que seu pensamento sobre a toxidade da névoa estava correto. Percebeu o calor do corpo do professor atravessando os poros de sua pele para então aquecê-la, o que fez com que seu rosto esquentasse do mesmo modo, mas por outros motivos. Só torcia para que o frio não tornasse sua reação tão notória.


Os ruídos advindos das sombras cessaram de maneira gradual, e felizmente nenhum contratempo maior aconteceu. Aquele aparentemente era só um aviso do que encontrariam pelo caminho.


A névoa tenebrosa igualmente dissipou-se por completo minutos depois, e o grupo foi se levantando para bater a areia cristalizada de gelo das vestes.


Snape foi um dos primeiros a se pôr de pé, oferecendo o braço para a moça que ainda permanecia no chão.


Ela sorriu embaraçada com a situação, mas aceitou a cortesia do slytherin, erguendo-se no segundo seguinte e cambaleando ligeiramente pela força com que ele a puxou.


– Descobri, da maneira mais desagradável possível, que feitiços aquecedores não são de todo efetivos aqui. Ao menos podemos transfigurar nossas vestes para algo mais condizente com o ambiente. – Dumbledore esclareceu ao notar com satisfação o resultado de seu feitiço: um traje em púrpura com estrelas e meias-luas douradas estampadas, além de um par de luvas e um cachecol amarelos. Os demais logo seguiram seu exemplo, embora preferissem tons bem menos chamativos.


– Para nossa sorte, não intuíram nossa presença aqui. Se resolvessem nos atacar, provavelmente estaríamos perdidos. Ou mortos. – elucidou o professor mais jovem, mas para ninguém em especial, sinalizando a noroeste com a mão para que prosseguissem por ali.


– Por isso me protegeu? – após um minuto, Hermione, que novamente se punha ao seu lado, diminuiu o volume da voz para que somente ele a ouvisse.


– Seguramente precisaríamos de alguém para dar continuidade à nossa busca caso algo desse errado... – respondeu evasivo, também num murmúrio, querendo disfarçar até para si mesmo o verdadeiro motivo de tê-la resguardado com tanto apego.


– Obrigada. – ela encontrou novamente a mão do homem com a sua, dando-lhe um leve aperto.


O frio era intenso, e a ligação ainda não havia sido interrompida entre Severus e Hermione, que interior e surpreendentemente estavam gratos pela escuridão. Nenhum dos dois aparentava desejar a perda do contato, mas quando notou Dumbledore – o único que se apercebeu da maior proximidade de Snape com a aluna – virar-se para conversar algo com o garoto Potter, o Mestre de Poções pigarreou com discrição e libertou os dedos dela.


Ambos sentiram falta do calor emanado do outro no mesmo instante, mas disfarçavam muito bem, focando as vistas na trilha aleatória que se formava no deserto, a sombra da noite omitindo o rubor em ambos os rostos.


* * *


– Não devemos estar muito distantes do ponto em que a profecia do relógio começará a se cumprir. Pelos rastros deixados no anel enfeitiçado que Tom transformou em horcrux, prevejo que estamos quase lá. – o diretor de Hogwarts quebrou o silêncio e a aparente tranquilidade que os rondava após mais algumas horas de caminhada.


– Estamos próximos de quê exatamente, senhor? Da espada? – Hermione adiantou-se aos demais, perguntando o que, no fundo, ocasionava curiosidade em todos os outros.


– Sim e não, senhorita. Havia vislumbres de um local similar a este e mais à diante de um santuário com estátuas e registros de uma civilização antiga, além de uma ponte que suspeito ser o último obstáculo até a espada de Lacônia. Naturalmente, antes disso já havia semelhança de cenário com uma civilização decadente que acredito ter sido a Babilônia. Pela idade de Voldemort naquela época, e segundo informações de uma fonte confiável, contudo, suspeito que apenas menores sejam aptos a atravessar a ponte que citei anteriormente.


Mas que maluquice era aquela? Como poderiam estar próximos das ruínas e no deserto da Babilônia? Estariam fazendo uma viagem no tempo? Eles não teriam desaparatado involuntariamente, teriam?


Respostas de menos para perguntas demais. Harry engoliu em seco, Hermione abriu os olhos desmesuradamente e Ron cessou o passo por um segundo. Snape, por sua vez, exibia uma expressão fria e direcionada exatamente ao homem mais velho que demorara tanto para lhes dar uma informação tão relevante.


Sem dúvida alguma o ancião sentiu o olhar fixo às suas costas, pois logo se virou e acenou com a mão para que o outro professor se aproximasse. Snape acelerou o passo até alcançá-lo.


– Sinto muito não lhe dizer antes, Severus.


– Você insinua que nós dois realmente...


– Sim, ambos ficaremos para trás. Eles terão de seguir sozinhos. Se não os três, ao menos Harry chegará ao local que mencionei.


– Você me escondeu esse detalhe de propósito, seu velho caduco! Sabia que eu não concordaria com levar isso à diante.


– Está certo. Eu agi de tal maneira para que o plano fosse mais bem executado, meu garoto.


– Eu não sou ‘seu garoto’, lembre-se de que sou hétero, Dumbledore. – sua língua afiada não perdoava – E não deixarei que uma mulher esteja metida nisso sem qualquer um de nós por perto! – seus protestos eram feitos em voz baixa, mas mesmo um ouvinte desatento notaria a impaciência nos trejeitos do homem carrancudo.


– Severus...


– Vá para o meio do inferno! – esta exclamação, diferente das anteriores, foi ouvida pelos gryffindors que estavam alguns passos atrás deles. Snape deu as costas ao outro bruxo, os ombros visivelmente tensos enquanto voltava a seu antigo posto, tornando a caminhar ao lado de Hermione. Ela percebia a contrariedade nas feições do slytherin, e a única fala dele que ouvira fora feita num tom em si mais nitidamente dolorido do que furioso.


Estava claro que o bruxo perto dela sabia tão pouco do que os aguardava quanto eles e que, se estivessem sem a companhia do diretor, tateariam sozinhos no completo escuro. Bem, de certo modo escuro já estava.


De fato, mais do que nunca era assim que Snape se sentia. Em uma escuridão que já não servia de abrigo nem de proteção. Um buraco negro que possuía outro cósmico buraco dentro de si, e era nele que escondia seus sentimentos. A questão é que eles começaram a se libertar com uma magnitude assustadora desde o início da viagem. Pior: Severus sabia exatamente quem era a responsável por isso, e não era o seu amor de infância.


Ele não teria o mesmo comportamento destemperado com Dumbledore se fosse qualquer outra moça naquela missão, teria? Não, não teria. E isso o deixava ainda mais transtornado.


Não houve, apesar disso, muito tempo a mais para a autopunição e para os questionamentos que submetia a si mesmo. Enquanto começava a discernir de fato o que lutava com tamanho afinco para camuflar, uma das avultadas rochas cobertas por tons esbranquiçados – esporadicamente distinguidas por eles entre as dunas congeladas – começou a vibrar assim como o coração do professor há tantos anos adormecido.


Dumbledore era quem estava mais à frente e próximo à pedra, mas não recuou. Com a varinha preparada encarou o tremor atentamente, à espera do obstáculo seguinte. Todavia, mesmo as mentes mais férteis presentes ali não eram capazes de palpitar corretamente sobre o que viria a seguir. Sem maiores entraves, a rocha ergueu-se, permitindo que se manifestassem quatro patas gigantes e um rabo com espinhos similares a estalactites.


– Ah, não... – sussurrou Ron, os olhos arregalando-se conforme a compreensão o alcançava. – Isso... Isso... é...


Finalmente mais uma fenda foi feita na suposta rocha coberta de gelo, despontando dela uma cabeça delgada, mas ainda assim grande.


– Um dragão! – bradou Harry, assim que a criatura virou-se para encará-los, quase os esmagando com suas patas grosseiras.


Snape foi o primeiro a, num instinto, pronunciar um feitiço para combatê-lo, mas nem uma faísca sequer despontara de sua varinha. Ser um perito em Artes das Trevas ali não parecia ser tão bom negócio assim, afinal.


Logo os olhos do dragão eram as únicas partes de sua anatomia que se mexiam, considerando cada um dos integrantes individual e atenciosamente. Tal gesto os confundiu, deixando os bruxos em dúvida sobre correr ou esperar para ver o que aconteceria.


Por fim, sua visão focou no diretor. Um novo brilho cobrindo os orbes âmbares enquanto o analisava.


A fênix e suas plumas de fogo expiarão em cinzas. – uma voz esganiçada e sem sincronia nasceu através de sua garganta, não sendo somente um trecho da profecia, mas um comando. Uma chama azul fulgurante irrompera pela ampla boca e levou o homem mais velho ao estado de combustão num piscar de olhos, transformando-o em cinzas que, no mesmo instante, começaram a se arrastar numa espiral de vento rumo ao desconhecido.


Tudo o que Hermione foi capaz de fazer foi agarrar o braço do professor de Poções que, petrificado, encarava as chamas extinguindo-se e a poeira cinzenta sendo carregada.


No entanto, o dragão nem mesmo permitiu que cultivassem o sentimento de luto pelo que acontecera ao diretor, pois outro rosnado agudo foi ouvido instantes depois, e a criatura avançou contra eles.


Ao invés de ordenar ao trio que corresse, pois as pegadas poderiam delatar para onde estavam indo, Snape sacudiu a varinha de ébano em um feitiço não verbal e desta vez ela pareceu obedecer a seu comando. O homem envolveu o grupo, agora sem Dumbledore, num poderoso feitiço desilusório que foi eficiente, camuflando-os perfeitamente ao ambiente gelado e despistando o dragão que, desistindo de buscá-los, se recolheu outra vez na forma disfarçada de uma pedra congelada.


Ron e Hermione ainda não criam no que haviam visto. O ruivo, num gesto de nervosismo, coçava a nuca enquanto a garota mordia o lábio inferior, decerto entendendo o quão difícil era ir à diante sem conhecer muito do que enfrentariam.


Harry e Snape, por sua vez, transpareciam sua inconformidade com o que acontecera fechando fortemente as mãos em punho e moldando na face uma expressão dura, ainda que estivessem com a cabeça baixa.


Os três gryffindors logo ensaiaram um abraço coletivo iniciado por Harry, fazendo com que o Mestre de Poções se sentisse intruso em uma cena na qual não possuía papel. No fundo, gostaria de deixar seu lado slytherin aflorar e debochar sobre o quão patético era aquele comportamento, mas quando olhos castanhos se depararam com os seus, a alguns metros de distância, o homem sombrio sentiu seu coração dar um solavanco com a aflição estampada neles.


Eis que Ron, em meio ao abraço, surpreendeu seus dois amigos ao comentar que como membros da Casa de Gryffindor não poderiam amolecer, pois Dumbledore seguramente desejaria que não desistissem.


E assim o fizeram, mas desta vez ninguém tomara a dianteira, ficando cada um perdido em seus próprios pensamentos enquanto prosseguiam lado a lado.


Para lamentação do grupo, entretanto, feitiços de desilusão eram de curta duração e consumiam muito da magia de um bruxo, e era inviável que estivessem permanentemente sob seu efeito.


Conforme seus passos progrediam na imensidão inabitada, mudanças paulatinas aconteciam ali. O frio e a noite permaneceram inatingíveis, é verdade, porém escombros e tantos outros vestígios de destruição se tornavam cada vez mais visíveis.


Ron pensou em reclamar da fome – pois só haviam comido pouco antes de deixar o navio –, do cansaço nas pernas pela caminhada extenuante e do frio que o deixava a ponto de bater o queixo. Tinha a consciência, no entanto, de que seria hipocrisia fazê-lo depois do que dissera sobre colocar o objetivo deles como prioridade.


Assim que essa conclusão o alcançou, os quatro sentiram o solo sob seus pés trepidar, o que tornava manter o equilíbrio uma missão cada vez mais complicada para eles.


– Para trás os três! – não muito depois de acatarem a ordem do professor, todos caíram de costas e viram brotar progressivamente as ruínas de um templo que em seus tempos de glória aparentava ser em formato de zigurate e todo ornado em tijolos envernizados e das mais variadas colorações.


Nabucodonosor, o grande ‘arquiteto’ e líder daquela civilização, certamente se sentira orgulhoso de seus feitos no passado, ao menos arquitetonicamente falando. Também fora ele o ‘dono’ dos Jardins Suspensos da Babilônia, uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo, que mandara construir como um agrado à sua esposa.


Mesmo em ruínas tudo ali ainda era impressionante. Havia animais como touros e leões, além de dragões, em relevo nas paredes demolidas e até mesmo mosaicos destroçados.


Hermione foi a primeira a notar uma entrada íngreme que poderia levá-los ao interior da ruína. De onde estavam, era possível avistar uma camada generosa de gelo formando um caminho próximo a quatro paredes com cunhas estranhas. Historicamente, aquele povo antigo fora pioneiro na escrita cuneiforme, conservando em barro por séculos informações que traduziam costumes e tradições de sua época.


Harry e Ron desviaram agilmente do gelo liso por um caminho pedregoso e entraram numa recôndita câmara anexa cujo teto trazia sinais de desabamento. Snape observava curiosamente os escritos na parede na esperança de encontrar algo que os guiasse até a espada. Hermione, por sua vez, atraiu-se por uma grande figura esculpida com capricho que estava apoiada num altar inclinado para a esquerda aos fundos do templo, sentindo-se quase compelida a tocá-la.


Quando seus dedos encontraram o que parecia ser um ídolo da antiga civilização babilônica, uma espiral de ar frio contornou sua silhueta e a paralisou por um período de tempo suficiente para que se formasse uma redoma de cristal em formato de semibolha ao seu redor. Seria um local bonito de se estar se não fosse a tragédia que era ficar aprisionada ali.


Assim que recobrou os movimentos do corpo, gritou por ajuda, mas o ruído mal podia ser ouvido do lado de fora. A gryffindor golpeava com força a superfície transparente e a fraqueza não demoraria a consumi-la, pois o oxigênio se extinguia exponencialmente rápido no espaço fechado.


Onde estava a voz de sua amiga fazendo incontáveis perguntas? O garoto Potter foi o primeiro a suspeitar que havia algo de errado se passando por ali e foi procurá-la.


– Mione! – a exclamação transtornada do rapaz de cabelos bagunçados despertou os outros dois homens para a realidade. Ron e Harry, já próximos, lançavam feitiços que se provaram inúteis contra a camada vítrea, agora Snape pretendia alcançá-los o mais rápido que os escombros lhe permitiam.


Até que o inesperado aconteceu: onde os pés de Severus tocavam, o gelo começava a derreter e engoli-lo. Não importava o quanto resistisse, a água gelada o impedia de mover direito suas articulações, sem contar a força invisível que o sugava para baixo, tragando-o quase por completo em questão de segundos.


Hermione perdera noção de seus sentidos e se esvaíra em fumaça branca no mesmo instante em que a cabeça do slytherin submergira.


Ron sentiu os pelos de seus braços arrepiarem-se quando a água começou a passar de líquida para o estado gasoso, contrariando as leis da física, pois sua temperatura certamente ainda estava baixíssima. E para espanto ainda maior dos dois garotos, que esperavam vê-lo assentado inconsciente no chão, Snape havia desaparecido com ela.


Não havia muito tempo para buscar entendimento sobre o que ocorrera à sua amiga e ao outro bruxo, pois como a base de parte da estrutura do templo era o gelo, o que já havia desmoronado uma vez definharia em definitivo agora.


– Precisamos deixar este lugar. – Harry constatou ao observar os deslizamentos de terra e as rachaduras que surgiam nas paredes.


– Mas para onde foram Snape e Hermione?


Por estar tão sem respostas quanto o amigo, Harry achou melhor puxá-lo pelo braço para saírem rapidamente dali. Já do lado de fora, completamente sujos de barro e ofegantes pelo esforço, viram o zigurate ser engolido pela areia esbranquiçada outra vez.


Ron parecia uma estátua de gelo. Harry, por sua vez, caiu de joelhos no chão e lágrimas silenciosas vieram a seus olhos verdes, mas ele lutou bravamente para que não caíssem.


Não possuíam a menor de ideia de para onde foram Dumbledore, Snape e Hermione, mas o Menino-Que-Sobreviveu preferia pensar que não haviam morrido. Rezou, após tantos anos sem fazê-lo, preces Trouxas que surpreendentemente ainda estavam gravadas em sua mente desde sua infância tenra.


Harry e Snape sentiram muito o desaparecimento de Dumbledore mais cedo, ainda que o segundo deles mascarasse melhor suas emoções. Agora o garoto e Ron sofriam o dobro sem Hermione por perto.


O jovem Potter parecia derrotado. Ron também sabia que Hermione era o cérebro do trio e que tudo ficaria mais complicado sem ela, mas disse:


– Você não vai se levantar, cara?


– Dumbledore se foi, Snape se foi, Hermione se foi. Que futuro temos nós dois aqui?


– Harry, temos um objetivo. Não queremos que Voldemort saia vencedor, queremos? Há a esperança de que eles na verdade não tenham morrido. É como se vivêssemos algo real, mas nem tudo aparenta ser assim. Dumbledore mesmo disse que a profecia não deveria ser tomada literalmente.


Arthur Weasley ficaria orgulhoso do filho agora se visse o jeito surpreendentemente maduro com que se comportava desde sua chegada ali.


– Já foi feita uma profecia sobre Harry Potter quando você era bebê, mais uma foi feita há algumas horas. Precisamos ir em frente, cara. Há uma multidão de bruxos que deposita a esperança deles em você. Em nós! – o ruivo completou, colocando a mão no ombro do amigo, que ainda estava de joelhos.


* * *


– Não! – alguém proferia em agonia ao abrir os olhos, como se despertasse de seu pior pesadelo. Remexendo-se incômodo onde estava, o homem de cabelos e olhos pretos posicionou suas duas mãos espalmadas diante de seu campo de visão, ainda surpreso por ter escapado ileso.


Ao dar-se conta do destino a ele reservado, sentou-se e enxergou a alguns metros de si uma moça fazendo o mesmo. Ambos se levantaram no mesmo instante, pondo-se a caminhar. Como se um deles fosse o polo negativo e o outro o positivo, aproximavam-se vagarosamente e sem nunca desviar o olhar. Era como se sentissem a necessidade de pôr à prova se aquilo era verdadeiro ou apenas fruto de sua imaginação.


O abraço tão desejado pelos dois então aconteceu pela primeira vez, e deles transbordava o alívio ao ver que tudo que viveram havia sido como um mau sonho.


– Lembra-se de tudo? – ela assentiu à pergunta feita por Snape.


– Estamos só nós dois aqui? Não vi qualquer pista de Dumbledore ou dos meninos.


– O diretor deve estar por perto, já Weasley não deve demorar a acordar. – o Mestre de Poções apontou para dois jovens ainda adormecidos à esquerda de onde estavam – Quanto ao Potter, confesso que não sei o que esperar. Segundo lendas bruxas antigas, pontes simbolizam não somente uma travessia qualquer, mas um ponto sem retorno, decisões irreversíveis para quem as tomou. Acredito que a parte da profecia referente a ele seja dada como incerta por esta razão.


Ela, que ainda não havia pensado por esse lado, temeu, como em tantas outras vezes, pela vida do amigo. Dos amigos, na verdade, pois Ronald continuava inerte.


Sem saber de onde tirara tanta ousadia, e mais tranquila por pelo menos ele estar ali, Hermione apertou-se ainda mais contra o corpo magro do slytherin e apoiou a cabeça em seu peito coberto por vestes negras.


Falando em vestes, não eram as transfiguradas, mas as mesmas que usavam quando chegaram à ilha. Não havia nelas um grão sequer da areia cristalizada também. Era como se todos os sinais físicos de sua passagem pela outra realidade fossem apagados, restando-lhes somente memórias embaralhadas de acontecimentos passados.


Foi a vez do bruxo de render-se a um impulso. Apesar de, bem lá no fundo, temer ser rejeitado, ergueu o queixo de Hermione com um dedo e seus olhos se encontraram outra vez. Avelãs e obsidianas formando um contraste agradável até se fecharem lentamente enquanto as bocas encurtavam o caminho entre elas.


E os lábios se tocaram gloriosamente. Com timidez no começo, talvez, mas logo o beijo foi ganhando intensidade e as mãos do homem haviam ido parar na cintura feminina enquanto as dela acariciavam as costas do bruxo.


Até que ouviram um ruído familiar que os despertou para a realidade e separaram-se imediatamente. O par se entreolhava enquanto o diretor se aproximava, arremedando a melodia de uma canção Trouxa qualquer com os lábios fechados.


– Interrompo algo? – perguntou retoricamente o ancião que ajeitava os óculos de meia-lua no nariz torto, pois estava mais do que claro o que acontecia ali.


– Bom, quero dizer, eu não... – Snape atropelando as palavras não era algo que se via todos os dias.


– Não se preocupe, meu rapaz, posso voltar para conversar com vocês mais tarde. – antes de se virar, entretanto, completou – E parabéns aos dois. Agora é esperar que a senhorita Granger consiga lidar com seu jeito rabugento, só sendo mesmo uma santa para conseguir dobrá-lo, Severus. – riu-se o ancião.


O clima alegre rapidamente extinguiu-se, porém, quando o barulho de galhos sendo pisoteados foi ouvido. Dumbledore já não sorria para o casal, mas observava a vegetação com desconfiança. A escuridão eterna da Ilha da Noite Sem Fim possuía seus infortúnios e eram em momentos como aquele que eles eram evidenciados.


Não tardou para que os emissores dos sons surgissem das sombras. Pareciam ser Inferis, apesar de mais primitivos. Uma aura cinzenta circundava seus rostos cadavéricos e os buracos onde deveriam estar seus olhos traduziam a maldade em seu ser.


Os três não esperariam que as criaturas agissem antes de tomar providências daquela vez. Dumbledore aproximou-se de Snape e Hermione, ficando à frente deles.


Chamas jorraram de sua varinha sem que falasse nada e Severus logo o acompanhou no feitiço. A garota sabia que se tratava de uma variação mais forte do feitiço Incendio, mas não considerou necessário participar da defesa.


Achou estranho, porém, que agora pudessem usá-lo. Deduziu que era por provavelmente já estarem retornando de sua busca, daí não ofereceriam mais qualquer perigo à espada.


As criaturas estavam em grande número e eram quase demoníacas, mas não agiam por conta própria e possuíam medo da luz e do calor. Com isso, logo se dispersaram em várias direções ou simplesmente viraram cinzas, trazendo um cheiro asqueroso para o ar.


Apenas um deles, que veio de um canto inesperado, aproveitou-se de que Hermione não lançava o feitiço, partindo para cima dela e derrubando-a no solo com força. Suas mãos cadavéricas foram diretamente ao seu pescoço, sufocando-a. No entanto, a varinha caíra próxima a seu corpo quando ela a largara por conta da surpresa, podendo recuperá-la rapidamente.


Incendio Maxima. – murmurou, quase sem ar, mas pôde ver a cabeça de carne podre pegar fogo à sua frente. Logo o aperto em seu pescoço suavizou e Hermione não demorou a empurrar o cadáver imóvel para longe, erguendo-se num salto.


Snape questionou com um olhar se estava bem e ela acenou afirmativamente com a cabeça. Apreciara o fato de que ele mantivera o foco no que fazia e deixara que ela desse conta da criatura sozinha. Isso mostrava que confiava o bastante em sua capacidade de bruxa e não a trataria como uma mocinha incapaz.


Diferente do que vivera na Babilônia, onde sua varinha era inefetiva, ali ela tinha toda sua mágica à disposição. Não aceitaria que pelo episódio de mais cedo a diminuíssem à posição de donzela indefesa.


Mais alguns instantes foram necessários até que o fluxo de Inferis terminasse e as chamas pudessem ser apagadas. Por fim, Dumbledore aproximou-se da marca que limitava o círculo que não mais brilhava e designou um aro de fogo para seu lugar, garantindo que mais nenhuma daquelas criaturas poderia se aproximar.


Os três então se sentaram ao centro, à espera dos integrantes restantes da expedição.


– Bem – disse o diretor, voltando a sorrir –, agora sabemos no que nosso querido Voldemort se baseou para criar seus Inferis mais completos.


– Acredita que estas possam ser as formas primitivas dos Inferis do Mundo Bruxo? – questionou Hermione, maravilhada com a informação. Notara a semelhança, mas não conseguia enxergar como poderia ocorrer uma evolução em cadáveres animados.


– São as formas primitivas sim, senhorita Granger. Eles seguramente são programados para aparecer neste local enquanto quem está em missão ainda tem seu corpo aqui adormecido. Tom deve ter escapado por pouco de ser morto. Isso me faz pensar que dessa conjuntura podemos tirar uma lição importante: a ganância excessiva de poder nem sempre compensa. De que adiantaria visar a espada se aqui seu corpo estaria morto antes que pudesse retornar?


Hermione somente assentiu, os olhos um pouco arregalados. Não sabia se estava mais espantada com o que poderia ter acontecido se não tivessem voltado ou com a sagacidade do diretor para conhecer todos os detalhes, de forma consciente ou não.


* * *


Não andaram mais do que apenas alguns minutos, mas a sensação para Ron era a de que se passaram horas. Fora corajoso dando ânimo a Harry quando ele mais precisara de ajuda. O problema era que não possuíam a mínima ideia de para onde deveriam ir, então continuaram a seguir algumas rochas em sequência, rezando para que elas não os fizessem caminhar em círculos.


Não entendia bem o que era aquela sensação, mas algo lhe dizia que seria o próximo a morrer. Ou ao menos a desaparecer repentinamente. Que Harry deveria terminar a jornada sozinho, de fato, não era novidade. O que mais o surpreendia era que não se acovardara diante da possibilidade eminente de morte. A razão de ter sido selecionado para Gryffindor sendo revelada cada vez mais.


Estava tão centrado em seus pensamentos que demorou a notar a intensidade do vento frio que não os deixava em paz.


– Harry, faz muito tempo que esse vento está rondando a gente? – questionou, virando-se para o amigo.


O garoto abriu a boca para responder, mas a fechou em seguida, espaçando os olhos ao observar o que acontecia logo atrás de Ronald. Pressentindo que era chegada a hora, o ruivo virou-se.


Percebeu rapidamente que um tornado gélido se formava, tendo a consciência instantânea de que seria quase impossível fugir dele.


– Bem, pelo menos não são aranhas. – murmurou para si mesmo. Atento ao perigo, apontou para o norte para que corressem naquela direção, desesperados demais para olhar para trás.


Mantiveram o ritmo por alguns segundos. O tornado, entretanto, os seguia cada vez mais rápido e maior. Num último ato de coragem, Ron empurrou Harry para frente.


– Continua correndo, cara! – gritou, aguardando o redemoinho pegá-lo.


– Ron, não! – exclamou o outro, voltando para buscá-lo, mas o ruivo preferiu correr em direção ao fenômeno, forçando o Menino-Que-Sobreviveu a parar assim que Ron era engolido.


– A profecia, Harry, lembre-se da profecia! Você é a alma, e seu futuro você mesmo construirá! – foi a última coisa que ouviu do amigo, que, em meio ao amontoado de areia azulada, se decomporia em pó. O silêncio então o rondou uma vez mais.


Estava sozinho. Queria chorar, mas o sacrifício e as últimas palavras de Ron pareciam ter lhe dado a força de que precisava. Perdera seus pais, depois Sirius, depois Dumbledore e seus amigos. O ar parecia lhe faltar, mas sabia que se parasse por um minuto sequer, não mais levantaria.


Não havia mais abrigos ou proteção, pois pessoas que tanto amava se foram. Não existia mais o que perder além da vida, e Harry sempre esteve disposto a doá-la por aqueles com quem se importava. No entanto, eles não queriam sua vida simplesmente, mas confiavam nele para conseguir a espada e derrotar Voldemort. Então o faria.


Respirando profundamente, voltou a andar, até que encontrou a ponte de que Dumbledore falou.


Não possuía grande extensão, mas diversos formatos. Era algo estranho, mas até onde a vista de Harry alcançava ele conseguia ver partes de madeira, de metal, de palha e com neve. Sem contar que nenhuma parecia estável, todas – sem exceção – estavam cobertas por uma fina camada de gelo que tornava sua travessia duplamente perigosa. Sem dúvida, era o cenário mais bizarro que já havia visto.


Suas pernas não estavam firmes quando deu o primeiro passo, seus pés patinando um pouco e firmando-se em seguida. Um detalhe tornava as circunstâncias ainda mais desfavoráveis: não havia um apoio lateral para as mãos, somente um caminho com um abismo de gelo como plano de fundo.


Tentando manter a calma, avançou cada passo sempre atento. Cada respiração era fundamental para que o desespero fosse contido em seu interior.


Talvez houvesse passado horas ou minutos, Potter nunca saberia dizer ao certo, mas ele estava cada vez mais próximo do fim de seu derradeiro obstáculo. A ponte parecia assustadora, no entanto, se tratada com cuidado e atenção, não era complicada de se atravessar.


Pelo menos era o que ele conjecturava até uma águia de duas cabeças sobrevoar seu corpo e quase derrubá-lo com o susto.


Harry se jogou para trás inconscientemente, escorregando no gelo e ficando com a cabeça para fora da base, assim como seus pés. Uma posição horizontal para um objeto vertical, seus óculos deslizando de seu rosto e caindo. Tudo o que pôde sentir foi o alívio por terem sido apenas seus óculos, não ele.


– Accio óculos. – convocou, sacudindo o mínimo possível sua varinha. Não sabia se daria certo, já que eram raros os feitiços a eles permitidos naquela dimensão. Para sua sorte funcionou, e logo os dois, Harry junto ao objeto, estavam de volta e a salvo por inteiro.


O garoto ficou deitado ali por alguns segundos, até sentir o frio diretamente em suas costas obrigando-o a continuar ou morrer de hipotermia.


Chegando ao final da ponte, havia apenas mais um pequeno monte em que a espada – já visível de onde ele estava – estava cravada. Queria correr para acabar com tudo o mais rápido possível. Sua razão, todavia, o alertava para que fosse mais cauteloso.


Com passos mais firmes e a varinha em mãos, Harry não parou de observar à sua volta em busca de uma armadilha nem baixou a guarda. O que lhe soava um tanto irônico, pois justo quando contava com algo do tipo nada aconteceu.


Bufando, ficou de frente à espada em dúvida sobre o que fazer.


– Isso não pode ser tão fácil. – sussurrou, a um passo da arma de lacônia.


Sua cicatriz ardia de forma incômoda, mas não exatamente dolorosa. Harry sabia que a espada não era má, só que combatia o mal e sua cicatriz era fruto dele. Era uma sensação desconfortável, mas compreensível e que até mesmo chegava com alívio, afinal queria dizer que o artefato era realmente o que eles procuravam.


Ansioso para saber se estaria apto a retirá-la de seu refúgio de séculos, aproximou-se mais. Sentia a energia que emanava dela ao mesmo tempo em que observava sua luz brilhar. O ardor em sua cicatriz se tornou mais inconveniente, mas o garoto já não se concentrava mais nela. Ele estendia a mão para tocar o objeto imponente que o fizera passar por tudo aquilo.


Prendendo a respiração, sentiu quando sua mão ultrapassou uma barreira invisível para poder  tocar sua base. Olhou para ela, hesitante por um segundo. Antes que perdesse a coragem, a puxou.


Um clarão azulado ocorreu e Harry Potter foi empurrado com toda a força para trás, rolando no morro até chegar em solo plano.


Quando parou, só conseguiu sentir dores em todas as partes de seu corpo, mas não havia nada em sua mão. Nem a espada ou a varinha. Pensou seriamente em desistir e aceitar partir para a escuridão que tanto o chamava, mas o formigamento em sua cicatriz não permitiu que o fizesse, pois significava que a espada estava por perto.


Com um gemido, rolou para o lado e lentamente levantou-se. A espada, juntamente com sua varinha, estava aos seus pés. Sua luz já não era mais azul, mas vermelha.


Arrastou-se com dificuldade para chegar a ela. Colocou a varinha no bolso da calça e ergueu a lâmina da espada até tê-la em seu campo de visão.


E agora como sairia dali?


Uma voz incomum, mas consoladora, sussurrou em sua mente: "faça um pedido".


E, antes mesmo que pudesse refletir sobre, o chão pareceu girar sob seus pés. Harry sumira lentamente, com tempo o suficiente para entender o porquê disso.


Ele só queria ir para casa.


No entanto, o que enxergara depois o surpreendeu. Ele voltou para a Ilha da Noite Sem Fim, mais especificamente para dentro de certo círculo de fogo em que estavam os quatro integrantes remanescentes da jornada.


– Vocês estão vivos! – exclamou ao vê-los. Em questão de segundos já estava abraçado a Hermione e Ron, depois fez o mesmo com Dumbledore. Teve até coragem o bastante para abraçar rapidamente Snape, que ficou parado, atônito pelo gesto inesperado do garoto.


– Mas... mas... mas como? Eu vi todos vocês morrerem, alguns de maneira brutal. – disse, sem encarar ninguém ao mesmo tempo em que olhava para todos. – Não são fantasmas, são?


– Não, Harry. Naquela dimensão não poderíamos morrer a menos que morrêssemos nessa, o que não aconteceu porque acordamos antes disso. – Hermione esclareceu, voltando a abraçá-lo, feliz.


– Como isso é estranho, tenho tantas perguntas, dúvidas e nem acredito que fui escolhido pela espada.


– Eu o entendo, Harry, nem eu sei ao certo como tudo aconteceu – disse ela, lançando um breve olhar ao professor de Poções –, mas acho melhor conversarmos mais sobre tudo isso quando estivermos a salvo na Escócia, de onde saímos.


– Certo. – murmurou ele.


Percebeu que Dumbledore também assentia, porém não o encarava. Olhava com curiosidade a espada.


– A espada em nenhum momento falou com você, meu garoto? – questionou-o, finalmente prestando atenção nele.


– Disse-me para fazer um pedido. Mal meus pensamentos viajaram até a sensação de querer estar em casa outra vez e vim parar aqui. Cheguei à conclusão de que minha casa é onde estão meus amigos. Nada poderia fazer mais sentido.


– Será que isto não daria certo novamente? – foi a vez de Hermione perguntar.


– Não sei. Não tenho ideia de como funciona.


Mal ele terminou a frase e já sentiu uma presença em sua mente que não estava ali anteriormente. Sua cicatriz voltou a formigar e Harry soube o que deveria fazer.


– Acho que vocês têm de encostar na lâmina. – ergueu a espada, esperando que o fizessem. Dumbledore não questionou, apenas fez o que lhe era pedido, seguido por Hermione e Ronald e, um Severus Snape desconfiado.


Harry então fechou seus olhos.


– Quero ir para Escócia, quero que minha casa vá junto comigo.


Não demorou para que todos começassem a sumir. Ron arregalou os olhos, mas seu amigo somente sorriu-lhe.


Sabia que estava tudo bem, da mesma forma que sabia que havia um inimigo a ser derrotado e uma guerra a ser vencida. Também sabia que eles, como na primeira parte de sua jornada, iriam até o fim.


Percebeu enfim que não precisava abrigar-se na escuridão, não precisava da proteção da noite.


Porque agora eles tinham a luz.


Notas:


- A ideia de uma separação/dobra – de corpo e até mesmo de alma e espírito –, devido a um evento especial, permite que o grupo viva realidades paralelas. Numa estão adormecidos, em outra enfrentam os obstáculos que terão de ser vencidos para alcançar a espada de lacônia citada também na fanfic da qual esta é continuação.


- A chama azul é uma das de maior temperatura registrada quimicamente, sendo, portanto, ideal para combustão e transformação de Dumbledore em cinzas rapidamente. Entre as cores mais comuns de fogo, em ordem crescente de poder calorífico, temos: vermelho, laranja, amarelo, verde e azul.


- Quanto à parte da profecia correspondente a Snape e Hermione, trazemos à cena o templo de Marduk (um dos mais reconhecidos deuses daquela civilização), atualmente coberto por areia e escombros e com suas fundações preenchidas por água (no caso da fic, congelada) por causa da escavação de um antigo fosso.


- As criaturas cadavéricas que aparecem logo depois do retorno de Snape e Hermione surgem automaticamente quando alguém, na segunda realidade, se aproxima da ponte que leva à espada. Voldemort, por ser desprovido de sentimentos puros, era tido como indigno dela, retornando logo à ilha antes de pôr o primeiro pé na ponte. Isso, porém, ainda assim o fez ter de enfrentar as criaturas que, em nosso enredo, o inspirariam a criar os inferis.


- A passagem posta antes da história está contida em  Jr. 25:12, na versão da Bíblia de João Ferreira de Almeida - Revista e Corrigida.


- Será mui confundida vossa mãe, ficará envergonhada a que vos deu à luz; eis que ela será a última das nações, um deserto, uma terra seca e uma solidão. Por causa do furor do SENHOR, não será habitada; antes, se tornará em total assolação; qualquer que passar por Babilônia se espantará e assobiará, vendo todas as suas pragas. (Jr. 50:12-13)


- Nossa referência para criaturas lendárias (como o dragão) relacionadas à Babilônia também foram retiradas das Escrituras: E Babilônia se tornará em montões, morada de dragões, espanto e assobio, sem um só habitante. (Jr. 50:37). Há ainda, por curiosidade, referências a outros seres bastante comuns na literatura: Peso dos animais do Sul. Para a terra de aflição e de angústia (donde vem a leoa, o leão, o basilisco e a áspide ardente voadora) levarão às costas de jumentinhos as suas fazendas, e sobre as corcovas de camelos, os seus tesouros a um povo que de nada lhes aproveitará. (Is. 30:6) / Mas as feras do deserto repousarão ali, e as suas casas se encherão de horríveis animais; e ali habitarão os avestruzes, e os sátiros pularão ali. E os animais selvagens das ilhas uivarão em suas casas vazias, como também os chacais nos seus palácios de prazer; pois bem perto já vem chegando o seu tempo, e os seus dias não se prolongarão. (Is. 13:21-22).


- Para mais informações sobre o mundo alternativo que exploramos, visite: http://pt.wikipedia.org/wiki/Babil%C3%B4nia, http://pt.wikipedia.org/wiki/Cativeiro_Babil%C3%B3nico e http://pt.wikipedia.org/wiki/Segundo_Imp%C3%A9rio_Babil%C3%B4nico.



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Comentários (1)

  • Amanda Regiane

    Thaizoca! Amei a fic,claro. O beijo deles foi a coisa mais doce do mundo, um dos melhores que li do casal. Ron me surpreendeu bastante, geralmente n vou muito com a cara do ruivo nas SS/HGs mas adimito que ele se portou como um grifo legitimo aqui!Quase tive um infarto quando o Dumbledore morreu! Mas suspeitei que voce n bancaria a JKiller! kkk O plot é muito booom Thai, serio mesmo!A fic é linda! Pena ser tao curtinha =\ Acho que tinha historia pra mais uns bons capitulos... *u*Parabens pelo otimo trabalho ♥  

    2013-10-16
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