As Preces de Rowena



Os passos ecoavam pelo longo e frio corredor da abadia. Ela não tinha mais de 16 anos e não tinha idéia exata do quanto era sortuda: sua irmã mais nova, com 14 anos, já estava casada com um homem 30 anos mais velho, presa num castelo monstruoso muito longe da terra natal. Por outros motivos, porém, ela achava que tinha de ser muito feliz por ter sido escolhida para consagrar sua existência a Deus.
Rowena andava entre um lugar e outro sempre recitando mecanicamente uma prece como toda noviça. Mas não conseguia acreditar que as palavras conseguiriam chegar ao seu destino divino:
“...fili, Redémptor mundi, Deus. Miserére nobis. Spíritus Sancte, Deus. Miserére nobis. Sancta Trinitas, unus Deus. Miserére nobis. Sancta Maria. Ora pro nobis. Sancta Virgo vírginum. Ora pro nobis...¹”
Orava em sussurros ritmados e cheios de medo. Rezava por medo, os pensamentos  aterrorizados se sobrepunham às palavras de fé, sobrepujando-as aos poucos: os inquisidores a encontrariam, levariam-na embora e ela terminaria, com certeza, queimada como bruxa.
“... Ave, Maria, gratia plena, Dominus tecum. Benedicta tu in mulieribus, et benedictus fructus ventris tui, Jesus.²”
Orava procurando achar o perdido fervor, para afastar aqueles terríveis pensamentos, orava como quem desejava ardentemente ser como todas as outras mulheres e meninas que enchiam aquele prédio secular sombrio e triste. Desejava ardentemente anular seu indivíduo e mergulhar no amor Divino, poder contemplar com fé legítima a tão falada face de Deus... mas no silêncio escuro da capela ela só conseguia ver o medo de ser apontada novamente, de ser segregada novamente.
g... ora pro nobis peccatoribus, nunc et in hora mortis nostrae..h³

Os pensamentos se desviavam das orações e ela lembrava-se do dia fatídico com toda força e clareza. Tinha oito anos, então e era a festejada filha do Duque de Ravenclaw, num passeio ao ar livre naqueles dias de verão que passavam tão rápido nas montanhas onde nascera. Os poucos dias por ano em que via decentemente o sol, que amava como as montanhas e  com a mesma intensidade que temia os longos corredores e os silenciosos salões do castelo.  
Corria alegre pela colina ignorando os chamados das amas. Sua mãe não saía mais do castelo, não tinha direito ao benefício do sol desde que o seu pai assim decidira. Só ela e os irmãos corriam, na companhia de inúmeras criadas, pelas colinas verdes e altas que cercavam a propriedade separando-a dos camponeses miseráveis que trabalhavam lá, no fundo do vale onde o sol fazia verdes os campos onde era cultivada a comida que abastecia a propriedade o ano todo.
Estava tão alegre que ergueu o corpo no ar num salto largo, imprudente e próximo demais de uma falésia oculta por um arbusto. Por um instante esteve solta no ar e então viu a garganta abissal aberta como uma goela abaixo de si, prestes a engoli-la.
Não gritou, embora ouvisse o grito da sua ama de leite diretamente atrás de si. Não sabia ao certo o que sentira naquele instante breve em que balançara entre a morte e a magia.
gNão quero morrerh – pensou e sentiu que algo a sustentava. Como se um gancho invisível a erguesse, estava parada no ar diante da garganta do abismo. Deu um impulso impensado para trás e logo estava caída – mas na segurança da colina, entre os braços da mulher assustada, que a contemplava num misto de surpresa e medo.
– Foi um milagre – alguém gritou – um anjo salvou a pequena Rowena.
Mas ela sabia que não fora anjo nenhum. Ela fizera aquilo. E dissera isso alto e claro diante dos pais: gNão queria cair, por isso não caí.h
Não entendeu a comoção que isso causou. Repetiu inúmeras vezes que ela havia desejado salvar-se e assim acontecera. Não entendia que não era natural ficar suspensa por magia acima de um abismo fatal. Não sabia que era considerado demoníaco ter um poder como aquele.
E logo começaram os rumores, logo não havia aia ou serva que quisesse estar a sós com ela. Eventualmente fazia travessuras inocentes: descobrira que podia fazer seu coelho levitar sobre a cabeça dos criados assustados; descobriu que podia fazer os cabelos das criadas soltarem-se sozinhos das toucas e ainda descobriu que era capaz de uma infinidade de outros pequenos truques tolos e muito engraçados. Quando atingiu a idade de 10 anos finalmente entendeu que provocava medo nos outros. Entendeu que era especial por que era a única no castelo que podia fazer as pequenas bobagens que a divertiam, mas aterrorizavam os criados e faziam correr rumores sobre a criança feiticeira filha do Duque de Ravenclaw.
Aquilo durou até o dia em que seu pai chegou de uma viagem longa e quando ela correu ao seu encontro não foi suspensa em seus braços como a filha preferida, mas levou de cheio no meio da face um tapa bruto e sonoro que a chocou, não por ser o primeiro que jamais levara, mas por ter vindo de seu pai.
– Chega de bruxarias para você, garota. Não sabe quanto ouro me custou salvar sua pele. Não sabe quanto eu penei para convencer os ministros da Igreja de que as histórias sobre você são invencionices que circulam desde que você ficou presa num galho na beira do precipício...
– Mas eu não fiquei presa em galho nenhum...
– Cale-se! Eu não dei ordem para que falasse! De hoje em diante, é a minha lei que você segue. São as minhas regras. Você vai parar com essas bobagens de magia ou eu mesmo a entrego ao Arcebispo para que a queime numa fogueira!
– Mas eu não sou má, papai! Não quero...
– Não ouses desafiar-me! Sei bem do que você precisa, aberração. Não te quero mais diante da minha vista, vou mandar-te ainda essa semana a um convento. Não suportaria saber que você jogou novamente o nome de nossa família na lama e na suspeita. Nenhum homem vai querer casar-se contigo, todos já sabem a sua fama... para que não envenenes nenhum marido no sono vai consagrar a sua existência a Deus, ou morrer no caminho do inferno!
Ela tinha lágrimas nos olhos quando viu pelo coche escuro o castelo distanciando-se no horizonte. Nunca havia saído de sua terra, nunca imaginara que a desconfortável viagem a levaria àquela construção de aparência severa e melancólica, onde suas belas roupas foram trocadas por vestes cinza-rato, suas tranças negras e longas desfeitas e cortadas e seus olhos azuis obrigados a manter-se fixos no chão ou no altar.
Suas mãos delicadas acostumaram-se ao trabalho pesado de esfregar o chão interminável do claustro do convento junto com as outras noviças e finalmente, depois de entender que jamais sairia dali ela se odiou por ter um dia feito magia.

 
Rowena parou. Chegara ao seu destino. A porta dos fundos. Olhou para o balde entre as mãos. Era até engraçado que ela fosse obrigada a andar rezando para cima e para baixo até mesmo para levar um balde de lavagem da cozinha até o chiqueiro. Abriu a porta e saiu para o frio do pátio externo. Lembrou-se das palavras da madre de que ali não importava de quem ela era filha, teria tarefas comuns de noviça. Alimentar os porcos era uma delas.
O pátio estava tão frio que ela suspirou de alívio ao entrar no cercado coberto dos porcos, onde a lama era quente, graças a tantos corpos gordos, amontoados numa estranha formação que ela achava que tinha algo de promíscuo e pecaminoso. Desviou os olhos dos porcos, lembrando-se de uma homilia onde fora dito que os pecadores se aproximavam mais dos animais que de Deus. Ela entendia por que, embora achasse que se fosse um porco, preferiria também estar amontoada entre muitos que sozinha no frio...
– O Bandido bem que disse que você estaria aqui– disse uma voz vinda do alto, assim que ela saiu do chiqueiro. Virou-se assustada, procurando. Ouvira claramente e tinha certeza que aquela voz alegre não soara dentro de sua cabeça... não podia estar louca. Uma gargalhada interrompeu seus pensamentos e a voz prosseguiu – Aquele bendito chapéu do Godrico não erra uma!
– Quem está aí? É algum espírito? Demônio, eu não darei minha alma para você!
Outra gargalhada e ela ficou espantada, por que vinha do teto do cercado dos porcos. Ouviu um som estranho e logo, do nada, ao seu lado surgiu uma mulher tirando um manto estranho e brilhoso da malha mais linda que já vira. A mulher era grande e vestia uma blusa de um amarelo berrante, apertada por um corselete preto que encimava uma saia preta de inúmeras voltas. Loura, cheia e rosada, tinha um aspecto bom e maternal, mas ainda assim, Rowena deu um passo atrás tentando defender-se com o balde. Fechou os olhos começou instintivamente a repetir uma prece pensando que talvez assim afastasse aquele demônio.
g...Sancta Maria, Regina coeli...  dulcis et pia, O Ma-mater Dei.... Ora pro nobis pe-pe-ccatoribus...h4
Como não houve resposta, abriu um dos olhos para dar de cara com a mulher, olhando-a com interesse.
– Ei. Não precisa me exorcizar. Não sou um demônio e não preciso que você peça que Santa Maria me defenestre daqui.
– Q-quem... de onde você veio?
– Hum, seria melhor você ordenar melhor seu pensamento, menina. Mas você ainda tem tempo para aprender isso. Eu vim te salvar desse lugar.
– Salvar? Eu estou salva, já, minha alma pertence a Deus e só a ele...
– Se você realmente acreditasse nisso, eu não estaria aqui. Você tem o direito de acreditar no seu Deus, mas tem nos pedido socorro todos os dias... para nós, os seus iguais, soam como socorro as suas preces.
– Eu não peço socorro a ninguém!
– Sim, você pede todas as noites. Pede a Deus, em longas orações que salve sua vida, que salve a sua alma. Ele atendeu às suas preces, Rowena, e eu estou aqui para salvar a sua verdadeira alma.
– Você não se parece com uma enviada de Deus... – ela disse olhando as roupas que, podia ter certeza, só eram usadas em lugares onde moças como ela jamais poriam os pés. Se Deus tinha enviados como aquela mulher, então não sabia mais nada sobre Deus...
– Nem sempre a resposta às nossas preces é aquela que esperamos... não me apresentei e isso é imperdoável. Helga HufflePuff, muito prazer –fez uma reverência. –não tive a sua origem nobre, portanto foi bem mais fácil achar meu caminho.
– Eu não entendo metade do que você fala!
– Godrico também não entende, mas ele nunca foi lá essas inteligências... digo, isso não importa. Para que você tem orado, mesmo?
– Me desculpe, senhora, mas isso não é da sua conta! Ora onde já se viu...
– Você tem orado para ser como as outras.
– Como você sabe? Ah, céus, devo estar louca e você deve ser uma alucinação... “Padre nostro, che sei nei cieli sanctificetur nomen tuum. Fiat voluntas tua...”5
– Você tem orado para ser como as outras por que deseja ardentemente...
– ... sicut in caelo, et in terra. Panem nostrum supersubstantialem6
– ...encontrar-se. Admita isso, e tudo ficará mais fácil.
– ... hodie. Et dimitte nobis debita nostra, sicut...7
– Você não pode ser simplesmente como uma das outras por que não É como elas... não é uma noviça, e sabe disso.
– ... et nos dimittimus debitoribus nostris. Et ne nos inducas in entationem;8
 – Rowena, você sabe o que você é...
– ... Sed libera nos a malo.9
– Rowena, acredite em mim, você é uma bruxa!
Em vez do “amém” da prece, Rowena soltou um grito, largou o balde e desatou a correr para dentro do castelo, deixando a mulher para trás. Seu pensamento era único e repetido, aquele maior temor, que agora soava em sua mente mais alto que todas as suas orações:
“Deus. Eu sou uma Bruxa. Não. Não posso ser uma bruxa! Irei para o Inferno por isso!”
Era hora da prece vespertina, mas Rowena fugiu da escuridão enevoada por incensos da capela e trancou-se na sua cela, apavorada, trêmula, como se a terrível verdade de ser bruxa pudesse ser descoberta e revelada. Como se ela brilhasse no escuro, como diziam que acontecia às bruxas.
“Eu não sou uma bruxa, não sou, não posso ser... não quero...”
Ela parou. Como uma porta que se abre de súbito, uma dúvida estrondou em sua mente. Seria verdade que não queria ser uma bruxa? Lembrou-se do orgulho que sentiu quando salvou-se do abismo sozinha... e como lentamente esse orgulho foi se transformando em vergonha. A imagem da mulher surgindo do nada no pátio, a idéia de que ela podia fazer coisas com as quais Rowena, na fria e silenciosa escuridão da abadia, só podia sonhar, que ela podia fazer bem mais que seus inocentes truques de infância, imediatamente a fizeram ter ânsia de gritar novamente, por que, agora percebia, acabara de, pela primeira vez, reconhecer alguém igual a ela. Que não parecia nem um pouco preocupada com tribunais e fogueiras como ela vivia desde que tivera ciência do quão extraordinária podia ser.
“Então... afinal... eu sou uma bruxa.”
A garota levantou da cama e arrancou num gesto só o véu de noviça, e com ele enxugou as lágrimas. Agitou os cabelos negros, desejando que eles crescessem novamente. Não sentia mais medo. Abriu a porta da cela novamente e saiu. Quem a visse naquele momento ou sentiria imenso respeito ou legítimo medo, por que Rowena irradiava poder.
Instintivamente, voltou a rezar, agora, no entanto com legítima e fervorosa fé:
“Ave, Maria, gratia plena, Dominus tecum. Benedicta tu in mulieribus, et benedictus fructus ventris tui, Jesus...”10
Pedia a Deus e aos santos, com todo a força que tinha, que Helga ainda estivesse no pátio do chiqueiro. Começou a correr embalada por suas preces, as palavras vindo mais altas e claras em sua mente: “Sancta Maria, Regina coeli, dulcis et pia, O Mater Dei. Ora pro nobis peccatoribus, ut cum electis te videmus...”11 Uma alegria diferente do medo das preces antigas a invadiu, por que ela estava feliz por estar viva, pela primeira vez em muito tempo, por que sabia quem era, finalmente: “EU SOU UMA BRUXA, QUE DEUS ME PERDOE POR ISSO, MAS SOU UMA BRUXA...”
Deus não respondia, mas ela tinha certeza que ele não precisaria perdoa-la, por que algo muito forte dizia que ela estava, ali correndo na direção certa, no rumo exato do seu destino. Abriu a porta de supetão e gritou:
– HELGA! HELGA HUFFLEPUFF!
A mulher surgiu no canto do chiqueiro, encostada numa pilastra, sorrindo.
– Ah, que bom que você mudou de idéia... não é agradável esperar do lado de um chiqueiro no inverno, mesmo usando uma capa de invisibilidade... mais um ponto para o chapéu de Godrico, ele disse que você não aceitaria imediatamente, mas viria logo... Será que Godrico deixou todo o cérebro naquele trapo?
– Do que está falando, Helga? E quem é esse Godrico?
– Ah, você vai conhece-lo é bonito e corajoso mas muito, muito burrinho– Helga fez um gesto engraçado como se espantasse uma mosca –creio que vai gostar dele e de Salazar, que é inteligente mas feio e magro como uma enguia cozida. Mas antes precisamos arrumar uma varinha para você. Tem um sujeito muito bom fazendo umas lá perto do Tâmisa...  podemos ir, então?
– Para onde e como?
– Ah, que aborrecido... você não sabe aparatar, ainda. Mas não tem problema. Segure meus ombros e concentre-se. Pode doer um pouco. Se você sentir medo...
– Medo?
– Eu me apavorei na minha primeira aparatação, vá por mim... se sentir medo...
– O que eu faço?
– Bem... Reze. Você parece ser boa nisso.
A garota começou a dizer silenciosamente uma prece e no instante seguinte, com um estalo, a dupla desaparecia. O grito de um porco cortou o silêncio e então, o pátio da abadia ficou novamente quieto. Um Sino bateu distante, anunciando o encerramento da prece vespertina e, em algum lugar do céu, os anjos disseram amém.

Fim


Tradução das Citações em Latim:
1. (Credo Latino, na vulgata latina do século II) g... filho, redentor do mundo, Deus. Tende piedade de nós. Espírito Santo, Deus. Tende piedade de nós. Santa Trindade, Deus único. Tende piedade de nós. Santa Maria. Rogai por nós. Santa Virgem, virgeníssima. Rogai por nós...h
2. Ave Maria, na vulgata comum a partir do s馗ulo 9) ・.. Ave, Maria, Cheia de Gra軋s, Deus ・contigo. Bendita entre as mulheres, bendito o fruto de teu ventre, Jesus.媒
3. (idem anterior)・.. rogai por n, pecadores, agora e na hora da nossa morte媒
4. (Magnificat) g...Santa Maria, Rainha celeste...doce e piedosa, ó Mãe de Deus. Rogai por nós os pecadores, assim  como...h
5. (Pai Nosso)gPai Nosso, que estás no céu, santificado seja vosso nome. Seja feita Vossa vontade...h
6. (idem anterior)no céu como na Terra. O pão que nos sustenta...
7. (idem anterior)hoje. Perdoa nossas dividas, assim
8. (idem anterior)como perdoamos os que nos devem. E nos livra de tentações
9. (idem anterior)e liberta-nos do mal.
10. Idem citação 2
11. Idem citação 3
 

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