A tocaia



Ao sumir-se na espessura, Jão Fera voltou o rosto e por entre a basta ramagem
esteve a contemplar o vulto esbelto da menina.
Ao passo que se engolfava nessa fascinação, ia-se operando a transfiguração
completa de sua fisionomia.
O perfil adunco e chanfrado, que revestia a beleza feroz e sinistra do abutre,
embotou a rispidez, saturando-se de uma bruteza alvar. Intumesceram-se as faces, pouco
antes crispadas pela cerração habitual das maxilas, e tomou a tez um tom fouveiro,
indício da ebulição do sangue a ferver-lhe em bolhas no coração.
As fulvas papilas que se encovavam pelas têmporas, como tigres nas furnas,
saltaram das órbitas, dilatadas por um fluido espesso que tinha a fosforescência felina.
De ordinário avincava-lhe a fronte uma ruga saliente, que depois de fender-lhe o
sobrolho, partia-se em duas plicas profundas como gilvazes, a lhe cortarem o rosto. A
temulência da paixão injetando os músculos e insuflando as narinas, apagou todos
aqueles sulcos rasgados pela sanha; e até os lábios sempre cosidos à feição de uma
cicatriz, agora túrgidos arregaçavam, mostrando pela estreita comissura os dentes
agudos.
Assim o aspecto do homem ralado por uma sede intensa ou calcinado pela
chama violenta que ardia interiormente, afinal tomara a fisionomia da sensualidade
brutal, onde como na brama do tigre, ressumbrava a ferocidade do amor.
Oculto no mato, foi o capanga, qual ao arrasto de uma cadeia, seguindo
maquinalmente Inhá, através do campo. Muitas vezes, na absorção que ia, mostrou-se a
descoberto, não o tendo percebido os dois companheiros, por estarem com a atenção
presa na conversa.
Quando, porém, a menina sentou-se na tronqueira, voltada para o lado donde
viera, aconteceu de vê-lo na ocasião de atravessar a nesga de campina, que separava os
dois bosques. Turbado com aquele acidente, irritado por se ter mostrado naquele
instante, Jão Fera rompeu o encanto da fascinação que o atava e embrenhou-se na
floresta.
Era justamente a ponto, que ao longe estrugira o assobio do curiau, repercutindo
pelos recessos da mata e algares das barrancas.
Estugando o passo, chegou o capanga à Ave-Maria. Ali encostado ao tronco de
uma árvore, com os braços cruzados e a cabeça fincada ao peito, submergiu-se nas
profundezas daquela alma, que devia ter cavernas tremendas e insondáveis abismos.
- Amanhã quando souber, pensará que fui eu!...
Murmurando estas palavras, uma expressão de angústia derramou-se pelo
semblante do facínora, que se confrangeu, como se uma tenaz lhe estivesse a triturar o
coração. Que medonha era a dor nessa natureza sanguinária, que se apascentava de
cruezas e homicídios!... O eu humano é como sua besta: manso, quando frugal; rábido,
se o fazem carnívoro; por isso em casa sentimento há o trasunto da história de nossa
alma.
Naquele momento Jão Fera sofria a suma de todos os sofrimentos que derramara
em seu caminho; de todas as ânsias, que sua mão levantara. Tudo nesse homem, a dor
como a alegria, a raiva como o amor, a gula como a embriaguez, revestia a natureza da
fera; tinha fauce para devorar, e garras que lhe dilaceravam o chão da alma, como a pata
da suçuarana escarva a terra no arremessar do pulo.
Durou rápido trato essa agonia moral; e não podia prolongar-se que o rijo
coração, vaso frágil para contê-la, embora acrisolado ao fogo das paixões tempestuosas,
ia estalar.
Abalou-se o corpo vigoroso com um forte calafrio, que sacudiu-lhe a terrível
obsessão; e o facínora surgiu outra vez audaz e ameaçador. Rebatendo o chapéu com
um revés de mão, descobriu a fronte rija e alta, que se escalvava entre uma floresta de
cabelos negros. Outra vez se descarnou a sua fisionomia com a expressão dura, ríspida e
incisiva, que lhe dava a aparência de um perfil talhado em gume de aço.
- É sina! proferiu no tom implacável do fanatismo.
Com pouco reboou das barrocas da azinhaga o tropel de um cavalo. Jão Fera
acostumado a distinguir nos rumores da mata as várias notas que formavam a surdina da
floresta, inclinou o ouvido à escuta. Não se enganara; o animal vinha naquela direção e
aproximava-se rapidamente.
Galgando então pelos socalcos do imbê, que descia dos galhos de um prócero
jequitibá, alcançou o tope no rochedo, donde se descortinava entre o rendado das folhas
uma volta do caminho.
Não tardou que apontasse ali, para sumir-se logo na curva da estrada, um
cavaleiro.
Era o mesmo embuçado que falava pouco antes com Monjolo. Orçava pelos
cinqüenta anos; barroso da cara que lhe cobria uma barba ruiva e áspera como as cerdas
da capivara; de mediana estatura e excessivamente magro; vinha trajado ao uso da terra:
chapéu mineiro de feltro pardo, sob o qual via-se o lenço de Alcobaça que lhe servia de
rebuço; poncho de pano azul forrado de baetilha, com a gola de belbute levantada; botas
de bezerro armadas de chilenas de prata.
Os lábios do capanga, onde flutuava um sorriso de desprezo, contraíram-se logo,
e arrojou-se o corpo à frente para não desprender a vista assanhada do cavaleiro, que
sumira-se na curva do caminho. Desceu rápido ao rés da azinhaga, por onde breve
meteu-se o desconhecido.
Mal que assomou este no alto da rampa, a pupila injetada do capanga cravou-selhe
no semblante e o atraía como a garra do abutre; a par, os dedos da mão direita
afagavam com certa volúpia feroce o longo cabo da faca, passada à cinta, e já a meio
fora da bainha.
Não parecia o embuçado muito senhor de si e tranqüilo de ânimo; pois lançava a
um e outro lado olhos inquietos e investigadores, à feição de quem temia e perscrutava
algum perigo oculto naquelas brenhas que o cercavam. Alguma vez hesitou, como
incerto da resolução que devia tomar; olhou para trás, ou enfrestou pela vereda que
serpejava diante dele vistas impacientes. Dir-se-ia que vacilava, entre continuar e
retroceder; ou quiçá julgava-se transviado, e procurava afirmar-se no caminho para ele
desconhecido.
De chofre empinou-se o cavalo, arremessando o homem sobre a escarpa da
barranca, donde rolou ao trilho, como um corpo inerte.

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