Capítulo único





Blinded No More

Era uma noite serena e clara, e o céu vestia-se numa manta com estrelas perfeita e cuidadosamente desenhadas. Este mesmo céu podia ser visto através do teto enfeitiçado de um Castelo que, imponente, se erguia, refletindo a atmosfera noturna e todas as suas nuances.

Do lado de dentro, velas flutuantes tremeluziam e apenas alguns archotes mantinham-se acesos, dando ao local uma aparência bruxuleante. Um par de íris acinzentadas também faiscava, e era quase possível ver as flamas nos olhos gananciosos de Salazar Slytherin naquela noite.

Ali estavam reunidas pessoas importantes da Sociedade Bruxa em geral, todas devidamente vestidas a caráter. Aquela festa era para quatro desses grandes nomes. Ou melhor, não era para eles, e sim por iniciativa deles.

Algum tempo havia se passado desde que a comemoração se iniciara. Homens mais velhos riam e conversavam a altos brados, de certo modo já levados pelo consumo de álcool sem tanta moderação, da mesma maneira que suas mulheres também dialogavam entre si – ainda que de forma mais contida, é verdade.

Enquanto isso, um bom número de parelhas mais jovens permitia-se um momento mais íntimo de dança e sussurros ao ouvido, movimentando-se ao som da música calma que reverberava por aquelas paredes.

O ápice daquelas horas, para a maioria dos presentes, já havia se passado. Já para outros não, especialmente para um deles.

Olhos perspicazes de cobra percorriam todo o salão à procura de duas íris azuis recheadas de retidão e firmeza, e eles não demoraram a encontrá-las.

Rowena Ravenclaw apoiava-se numa parede enquanto bebericava seu cálice raso de vinho, e sua percepção aguçada não demorou a fazê-la notar a aproximação de um homem com cabelos negros da altura dos ombros e olhos acinzentados a cobiçá-la.

– Boa noite. – proferiu seu observador, alto, robusto e ereto, colocando-se diante dela e cobrindo sua visão do que se passava ao redor deles. Mesmo se ele não possuísse aquela postura tão viril, seria difícil para Rowena permitir-se enxergar algo que não fosse a pele alva, os olhos penetrantes, os lábios finos bem desenhados, o nariz afilado e o cabelo liso cobrindo parcialmente um rosto aparentemente tão cortês. – Amanhã é o grande dia. – ele assinalou, aproximando-se mais.

Ela assentiu, e apenas isso. Incrivelmente, as palavras lhe fugiam somente ao estar na presença daquele homem tão enigmático.

Rowena lembrou-se da conversa que tiveram no dia anterior, quando sua convicção sobre quais alunos seriam ensinados sob aquele teto – ainda que ela buscasse agir da forma mais racional possível – enfraquecia. Salazar parecia determinado demais a prosseguir com aqueles objetivos tão excêntricos.

Ela pôde ver nele a sede de poder e a vontade de provar-se a qualquer custo, quiçá tarde demais.

Rowena sabia que aquelas paredes, salas e corredores abrigariam o futuro. Ali seriam minados o conhecimento, a destreza e a sabedoria. Havia divergências entre os quatro fundadores, nada mais normal quando grandes mentes amontoam-se em busca de um objetivo comum, contudo.

– Queremos cabeças tão brilhantes quanto a sua neste local, bela Rowena. – ele enunciou-se uma vez mais.

– Mas é loucura uma visão como a sua, Salazar! Seria injusto privilegiar apenas a pureza de sangue.

– Não aja com a mesma inocência de Helga e a ousadia impensada de Godric. Desejamos ou não uma Escola a formar os melhores? – ele replicou, firme, já próximo ao ouvido da bela mulher, num sibilar de cobra, despejando seu veneno mais sutilmente nas últimas palavras, visando envolvê-la.

– Essa conversa é antiga, Salazar. – ela tentou afastar-se, mas, com uma simples e maior insistência de Slytherin, cedeu. O perfume cítrico que emanava dele lhe permeava os sentidos, tirando-lhe a sensatez, sua característica mais marcante.

Ele percebeu que a resistência ‘inimiga’ ruía lentamente, e então ofereceu seu lado mais gentil, e ainda sim ganancioso. Salazar sabia ser persuasivo, mas tudo precisava ser bem calculado.

– Permita-me o prazer desta dança. – um sorriso torto brincou nos lábios dele, que lhe ofereceu o braço direito estendido. Ele cogitava que nada estava ganho, que havia o risco de perder o jogo, então era a hora do lançar da última carta, que precisava cair dentro da cartola.

Ela olhou do braço comprido, fixando ligeiramente o olhar no anel prateado de cobra em seu dedo fino, aos olhos dele, para em seguida aceitar o convite.

A música entoava-se melancolicamente e ambos permaneciam em silêncio. Rowena, dividida entre seu lado espirituoso, astuto e os sentimentos tão conflituosos, mergulhava seu rosto no peito do homem, que a guiava na dança, reflexivo. Salazar precisava abordá-la da melhor maneira, pois não aceitaria ser derrotado naquela guerra de egos.

– Vou acompanhá-lo no voto amanhã. – ela pronunciou-se, quebrando o silêncio e surpreendendo-o. Sua mente oscilava assim como a música tão agradável aos seus ouvidos. Não o fitou diretamente nos olhos, talvez por vergonha de si mesma por ceder tão facilmente.

– Não poderia esperar menos de você, minha Rowena. – ele a tomou pela cintura e curvou os lábios, apoiando seu queixo na cabeça dela, que não pôde ver seu sorriso maldoso.

– Eu posso vir a me arrepender, mas...

– Confie em mim, ao menos desta vez. – uma pausa – Aliás, teremos muito a comemorar hoje à noite. – maliciosamente, inclinou o pescoço até que seu rosto encaixasse perfeitamente na curva do pescoço dela, aspirando o perfume doce do local.

– Se me permitem a intromissão... – uma voz grossa, ainda que gentil, fez-se ouvida. – Salazar, pode me emprestar a Rowena por uns minutinhos?

Ele não respondeu, apenas beijou o alto da mão de Rowena, fitou-a como se dissesse “espero você mais tarde”, e então tomou, séria e pretensiosamente, a visão de Godric, que não pareceu se incomodar muito com o comportamento cítrico do colega, e os deixou a sós.

Godric também falou da reunião, mas não tentou impor a ela seu ponto de vista em instante algum. Ele era um homem mais amistoso e autêntico. Tinha a beleza jovial de um rosto retangular com bochechas coradas e cabelos e olhos castanhos cativantes.

Minutos depois, interrompendo uma fala de Gryffindor, um homem corpulento veio cumprimentá-lo.

Ela levantou a mão, acenando que não havia problema algum em deixá-lo conversar com o outro.

Tomou o último gole de vinho de seu cálice de bronze e, aproveitando-se da distração dos dois, preferiu afastar-se.

Preciso de ar, refletiu. Salazar mexia muito com ela. O jeito misterioso e envolvente daquele homem estava tomando conta de seu ser.

Havia prometido a ele, ainda que numa fala breve, e era uma mulher de palavra. Cumpriria com seu compromisso com ele, ainda que fosse a maior loucura e o ato mais irrefletido de sua vida.

Agora ela ultrapassava os grandes portões da Escola e podia ver a noite sem o aspecto enfeitiçado pertencente ao lado de dentro do Castelo. Era, incrivelmente, mais mágico enxergar o firmamento diretamente, sentindo a brisa da noite em seu queixo.

Um pequeno bosque situava-se nos arredores de Hogwarts. As árvores ali eram espaçadas, permitindo que as luzes da Lua e das estrelas esbanjassem-se sobre a relva verdejante.

Ela caminhou, levantando o longo vestido acima dos tornozelos para permitir-se passos mais livres e cadenciados.

Ouviu vozes ao longe. Familiares, devo dizer. Aproximando-se mais, conseguiu distinguir quem falava – era Helga.

– Posso acreditar no que meus ouvidos parecem discernir como um pedido para concordar com sua inescrupulosa e ultrajante proposta, querido Salazar? – mesmo que cada palavra fosse carregada de pesar, ela conseguira mostrar um sorriso e falar num tom calmo e, até mesmo, bondoso.

O assunto que tratavam não surpreendera Rowena, mas a resposta contundente de Helga precisava ser considerada. Naturalmente eles discutiriam antes da reunião tão aguardada. Rindo ao vê-los como dois irmãos brigando pela maior fatia do bolo, ela seguiu em direção a eles. Contudo, um movimento de Salazar mudou o rumo de seus pensamentos, outrora ingênuos.

Numa habilidade típica de Slytherin, ele tomou a mão de Helga e a beijou em seu dorso. Rowena escandalizou-se, pois o modo com que ele a olhava não diferia muito do que ele empregara-se ao conversar com ela própria mais cedo, tão galanteador.

– Helga, Helga... Seu olhar nunca se distanciou de sua imaginação tão fértil. Juntos – ele sussurrava agora em seu ouvido –, podemos transpassar isso e chegarmos mais longe. Uma educação eletiva e funcional. Juntos, minha querida Helga. – ele tocou-lhe o ombro, aproximando seus rostos, como se tentasse beijá-la.

Pondo a mão contra o peito de Salazar, em um pedido claro para que se afastasse e, pela primeira vez, exibindo a ele um olhar de desprezo, Helga, com toda sua sinceridade e senso de justiça, o alertou – Você me enoja, afaste-se de mim.

Rowena não teve sequer boa vontade de permanecer ali depois do que ouvira.

Como Salazar podia ser sem escrúpulos e tão sedento por poder?

Poderia refletir o quanto quisesse sobre isso e certamente jamais encontraria a resposta e o porquê de ele ser assim. Talvez até enlouquecesse se tentasse.

Arrependeu-se por deixar-se contaminar por aqueles ideais podres e preconceituosos de Slytherin e sua resposta seria dada no dia seguinte.

Mas não se arrependia somente daquilo. Lembrou-se da criança que levava em seu ventre, fruto do amor proibido e incontrolável que sentia por aquele homem. Havia prometido que se casaria com ele num futuro próximo e que criariam juntos sua herdeira. Não queria que a filha crescesse sem a presença do pai, ainda que ele fosse tão desprezível às vezes.

Helena, o belo nome de sua mãe, que logo seria acompanhado do também desprezível sobrenome Slytherin.

Sentindo raiva de si mesma, por tamanha inocência, entrou novamente do Castelo, já com as proteções contra aparatação desfeitas, e viu aos poucos os presentes deixarem o local, não sem antes serem efusivamente cumprimentados por Godric, todavia.

Esteve tentada a voltar a seus velhos aposentos e não ao que compartilhava com Salazar nos últimos tempos, mas mudou de ideia. Sua inteligência aguçada lhe dizia que ele poderia pensar que algo de errado havia se passado.

Chegou ao quarto compartilhado e, de imediato, deitou-se na cama. Fingia estar dormindo, deitada ainda com as roupas da festa, enquanto aguardava o retorno dele e pensava no quanto sua atitude no dia de amanhã seria decisiva para o futuro daquela Escola.

Salazar apareceu dez minutos depois, e pareceu não desconfiar do comportamento dela. Não se demorando muito, ele também se deitou.

Horas pareciam segundos, e os ponteiros do relógio de parede pareciam apressados para anunciar o amanhecer, que logo os abençoaria. Ou amaldiçoaria um deles.


***

– Nem me esperou noite passada, querida. – disse ele, dissimulado, vestindo-se enquanto a via levantar-se da cama já pela manhã.

– Estava com dores de cabeça, dormir era o melhor que eu poderia fazer. Afinal, precisava estar descansada para a reunião do dia de hoje, tão importante para todos nós. – sorriu, de costas para ele. Não só por fora, deve-se acrescentar.

Orgulhosa de si mesma, ela arrumou-se rapidamente, assim como ele.

Chegaram juntos à sala, já devidamente preparada para a ocasião.

A reunião que decidiria a procedência dos futuros alunos seria realizada numa grande sala a oeste do salão principal. Era simples em sua construção, mas possuía em seu centro uma suntuosa mesa redonda com quatro cadeiras de espaldar reto ao seu redor, diversificadas. Poder-se-ia perceber nitidamente a quem pertencia cada uma delas apenas ao observá-las brevemente.

A de Godric possuía majestade em riscas vermelhas e douradas; a de Helga era a mais simples, estofada em um tecido amarelo bastante vivo; a de Rowena misturava tons de bronze e azul, tendo no seu encosto um bordado de corvo; e a de Salazar, por sua vez, misturava prata, verde musgo e ostentava, horripilantemente, serpentes metálicas entrelaçadas no apoio para os braços – nada mais característico para um ofidioglota.

O sol já começava a elevar sua altura à medida que a expectativa e a tensão se tornavam maiores entre eles.

Salazar sentou-se confiante, mas com uma leve ponta de receio, que o fez entrelaçar as mãos sobre a mesa.

As de Rowena suavam, e seu coração palpitava sofregamente. O que sentia por ele a comprimia, mas ela sabia que precisava se libertar. E a hora havia chegado.

Godric iniciara a reunião ressaltando a importância de que os votos fossem feitos com responsabilidade e coragem e, logo depois, iniciou a sessão, declarando seu voto aos três presentes: o de que todos os bruxos deveriam ter a chance de estudar ali, inclusive mestiços e nascidos trouxas.

Helga não poderia demonstrar maior alegria no olhar ao ouvir isso. Slytherin e Hufflepuff eram claramente divergentes, mas Rowena e Godric se mantinham em silêncio.

Aproveitando o calor do momento, Helga levantou sua mão – pedindo a permissão para falar – e delegou seu voto, que veio acompanhado de um sorriso entusiasmado e de leve deboche para Salazar, sentado à sua frente. O Slytherin apenas arqueou as sobrancelhas, soltando um grunhido ríspido.

– Rowena? – Godric dirigiu-se com um sorriso cordial à bela mulher sentada ao seu lado.

Os olhos dela encontraram involuntariamente os de Salazar, que pareciam esperançosos e desejosos por sua resposta. Gananciosos.

Seu voto era decisivo. Dependendo de qual fosse, Salazar poderia ter esperanças.

Rowena, contudo, havia aprendido a lição. A voz da razão deveria medir e conduzir as suas atitudes. E ali não fugiria dessa máxima.

– Não me importo com as origens familiares dos alunos, contanto que eles consigam enxergar e perceber que em cada caminho haverão de proceder com sabedoria.

A pretensão escorreu do rosto de Salazar ao mesmo tempo em que Helga batia palmas entusiasticamente e Godric declarava:

– Bom... Desculpe-me Salazar, mas seu voto, independente de qual seja, não fará diferença agora.

Mesmo em sua euforia interna, Rowena resumiu-se a sorrir discretamente para Helga e retirou-se da sala. Apenas ao deixar o local por completo, permitiu-se um sorriso verdadeiro, autêntico. Sua razão estava onde nunca deveria ter saído: dentro de si mesma.

Salazar saiu em seguida, mas não seguindo os passos da mulher que o havia contrariado.

Seus passos ecoavam pelos corredores, e a verdade é que sua derradeira chance habitava dentro do ventre dela, não em Rowena pessoalmente.

Não conseguia acreditar que Rowena o havia traído. Definitivamente, ela não era apenas mais uma mulher. Sua razão deveria estar interligada a uma sintonia inabalável.

Inconscientemente, ele fora levado para seu abrigo – e sua real e última esperança.

A alegria estava presente em Helga, a complacência em Godric e a firmeza em Rowena.

E nele habitava a ira.

Se eles queriam guerra, guerra teriam.

Com seu olhar decidido, adentrou o banheiro feminino do segundo andar e dirigiu-se à pia, entrada para a Câmara Secreta, obra resultante de sua necessidade de marcar alfarrábios e a história do mundo bruxo. Ou de ver alguém, especialmente um herdeiro de sangue, tornar-se grande e honrar o sobrenome Slytherin.

Após alguns segundos, Salazar passou a fitar o vazio enquanto lentamente a ganância trespassava seus sentidos.

A inteligência de sua mãe formulada e aliada à vontade do pai de se provar. Uma equação vantajosa, com certeza.

Desejaria contar com a filha Helena para que sua missão, que agora falhara, um dia pudesse ser concluída com outras mãos. Mãos que se sujariam com o sangue mais impuro a ser derramado.

Já o sangue Slytherin continuava a correr, entretanto, apenas através de suas veias, assim como a serpente que sibila e desliza pelo solo. Slytherin seria a Casa do poder, do poder a qualquer custo. Seja ele obtido em meio às trevas ou à luz.

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Blinded No More tem como objetivo mostrar como nasceram as características dos futuros estudantes de Hogwarts e como seria determinada sua seleção no decorrer dos anos. Através dela, oferecemos nosso ponto de vista de como tudo foi definido em conjunto com os conflitos de personalidade e convicções a permear o romance entre Rowena Ravenclaw e Salazar Slytherin, com suas virtudes e vulnerabilidades. Mas o nosso destaque é para Salazar Slytherin, de ambição notória, a ponto de se usar de quaisquer meios para conseguir o que tanto deseja.
 



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