Prefácio



Tudo tem uma razão de ser. Certa vez, Platão, em um de seus extensos diálogos, disse que o homem deveria se aventurar para fora da caverna se ele quisesse obter conhecimento. Essa ideia se tornou quase uma oração pra mim. Não houve nada na minha vida que eu não quisesse conhecer, explorar, me aventurar. Nunca recusei nenhum convite que estivesse predestinado à mais conhecimento acumulado. Na verdade, eu sabia - sem admitir - que se eu parasse de buscar informações, não conseguiria me destacar em mais nada. Eu sabia que se não houvesse conhecimento gravado na massa cinzenta de 2% do meu peso eu não poderia ser nada além de um legume. Quem sabe fosse um chuchu, que só absorve o sabor dos outros ao redor. Obviamente, jamais permitiria que isso viesse a acontecer.

De fato, passara a maior parte da minha infância como qualquer outra garota normal. Tudo bem, honestamente gostava de analisar as outras crianças. Sei, isso é ridículo vindo de uma criança de cinco anos. Mas você se sentiria um pouco estranho também se passasse a conseguir tudo o que quer porque simplesmente você quer. As coisas soam muito boas entendendo ao pé da letra. Porém, se você conseguir sempre o que quer, um dia deixará de entender o que não quer. E então você se tornará o ser humano mais inconstante do universo.

Lembro-me de conseguir desenhar paisagens que nunca vira nem nos documentários mais loucos que gostava de assistir (às vezes, deixava bonecas de lado para entender a natureza no maior estilo "Marcha dos Pinguins", de Luc Jacquet, por exemplo) e me destacava entre as crianças por esse e outros motivos. Ainda não são raros os momentos de "reflexão interior" sobre o que acontecia comigo e a maneira de tudo sempre acabar, digamos, bem pro meu lado. E como detestava essa atenção louca! Ela definitivamente me perseguia. O que eu podia fazer?! Depois de desejar intimamente suco de uva ao invés do chocolate gelado que minha mãe fazia pra levar a escola e, às 10:10 da manhã lá estava a caixinha de suco, suada, me esperando para que eu o tomasse na minha lancheira, eu secretamente tentava me convencer de que minha mãe trocava meu lanche com destreza. Nem me pergunte porque eu imaginava isso.

No fim das contas, eu sempre terminava meus curtos períodos de aulas com uma estrelinha colorida no canto superior direito dos meus cadernos, pelo excelente serviço que tinha feito. Com o tempo, às vezes me percebia sendo uma criança soberba por ter certeza de que eu deveria estar em uma escola melhor. Em outros casos, me sentia mal pelas outras crianças me olharem com desdém ou admiração devido meu excelente trabalho com números (ainda que levasse na bolsa livros do segundo grau), ou formas (alguns professores bisbilhotavam meus rabiscos no rodapé do caderno cheio de cosenos e tangentes), ou cores (ainda não compreendo como eu fazia as cores primárias cintilarem ou ficarem foscas...). Até que certo dia eu consegui, aos 8 anos, pronunciar - admito, meio arrastado, mas os adultos em volta lacrimejavam  de entusiamo - a tabela de informação nutricional de uma famosa caixinha de chicletes da época, que encontrei na minha mochila. Seria a natural curiosidade de uma criança ler uma informação nutricional em uma embalagem qualquer. Mas ninguém te olhará da mesma forma se você ler tudo isso em búlgaro. Na verdade, depois desse acontecimento, nunca mais entrei naquele colégio. Mudei de escola por este e por um outro motivo, e neste caso, eu digo que foi o único motivo de ter mudado de colégio.

Bem, depois de alguns prejuízos entre tolices de crianças e biscoitos que nunca acabavam, eu me deparei em um 31 de julho muito esquisito. Na verdade, era um dia normal, ainda que eu estivesse agitada por saber que eu completaria 11 anos em algumas semanas e que eu começaria a estudar em uma nova escola (depois de fazer nascer uma verrugona no dedo médio de uma garota que me chamou de "esquisita", duvido que ainda me queiram sentando perto), o sol brilhava do mesmo jeito, ou seja, todas as nuvens cinzas do mundo se encontram nos céus Londres, e Samia - minha babá por algumas horas enquanto meus pais estavam no consultório odontológico a algumas avenidas de casa - me fazia compania sendo eu filha única.

Mas, se o dia se resumisse a este morasmo, eu não lhes estaria contando minha história. A história de como recebi um envelope pardo, com meu nome e endereço de caligrafia impecável e um selo em parafina escarlate no centro. A história de como fui convidada a participar da Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts. A história de como fiquei apavorada com essa revelação, e a história de que no fim do mesmo dia, eu decidi não ir, em 31 de agosto, há um mês do meu aniversário de 11 anos, à plataforma nove e meio e estudar em Hogwarts.
 

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