Ato Zero Ponto Cinco, Quase Um

Era pouco mais de meio-dia ainda, mas parecia muito mais na cozinha escura. Pouca luz entrava por ali, com as cortinas sempre fechadas, e a pequena e frágil vela não ajudava muito mais. Havia uma lâmpada ali, mas há anos que não era utilizada - Tobias há muito tempo a quebrara, em um de seus ataques de fúria, e nunca havia se interessado em substituí-la por uma nova. Ou, a bem da verdade, nunca havia ficado sóbrio tempo suficiente para fazer isso - entre ir à cidade, comprá-la, voltar e instalar, sempre encontrava um ou dois copos pelo caminho. Não era muito exigente quanto ao que bebia; qualquer coisa servia e por isso mesmo sempre encontrava o que queria.

Eileen estava ali, sentada no chão da cozinha escura, sozinha. Estava machucada, encostando a testa na parede fria e tentando não pensar em coisa alguma.

- Mamãe? - uma voz interrompeu seus pensamentos vazios. Desviou o olhar para a porta: ali estava Severo, sete anos, magro como um caniço, os cabelos mal cortados um pouco compridos, o rosto um pouco sujo. - está tudo bem?

-  Eu não te disse para ficar no quarto? - perguntou ela, sem se dar ao trabalho de sair do chão. Era até bom estar tudo escuro, pensou ela, pois assim podia esconder um pouco a sua vergonha.

- Ouvi... barulhos... - disse ele, incerto.

 

- Não foi nada. – ela tentou sorrir. – Ficou com medo, Severo?  Venha aqui – chamou ela, acenando, sem sair do chão.

 

Severo aproximou-se, os olhos brilhando – era muito raro a mãe chamá-lo para perto de si. Tinha apenas sete anos de idade. Sentou-se no colo dela e deixou-se abraçar.

 

- Foi o papai, não foi?

 

- Papai não tem culpa – disse ela – ele ficou um pouco nervoso, só isso. Ele foi dar uma volta, então quando voltar já vai ter passado.

 

- Ele não devia bater em você...

 

- Ele não bateria se não houvesse motivo, certo? – disse Eileen, com os olhos vazios focando longe dali. – E ele não vai fazer de novo.

 

O rosto dela doía, estava marcado no lado direito, logo acima das sobrancelhas. Além disso também havia alguns hematomas ainda se curando na altura dos ombros e perto das costas, mas esses eram antigos, da semana passada, e ela não se importava mais.

 

De uma maneira errada e estranha, Eileen quase não se importava em apanhar. Aqueles tapas, socos e insultos eram quase uma prova de amor. Eram a única coisa do amor que restara para ela. Pensava no amor de Tobias como sendo tão forte que não pudesse ser contido. Que gostava tanto dela que o ciúme atingia o próprio filho. E que não era tão ruim assim, porque ele estava ali, perto dela, e aquela era a última vez, de qualquer forma... era apenas um problema temporário, que ela poderia superar. Eles todos poderiam. Juntos. Eles se amavam. Isso era o mais importante, não era?

 

Talvez aquela no rosto deixasse uma marca. Seria quase uma tatuagem.

 

Suspirou. Não via a hora que Tobias voltasse. Ele sempre voltava arrependido, meigo, cuidava de seus ferimentos e agia como quando se conheceram. Como o Tobias por quem se apaixonara. Ele estava ali, era apenas uma questão de conseguir desenterrá-lo... e ela conseguiria. Ou iria morrer tentando. Nem percebia que talvez fosse literalmente.

 

Estava tão distraída que não percebia Severo falando. Teve de pedir para ele repetir.

 

- Mamãe, não quer que eu chame os vizinhos?

 

- NÃO – disse ela, seca. – não há necessidade. E eu já lhe disse que as coisas de casa são só para a casa.

 

- Eu o odeio – disse Severo, sério.

 

Ele mal percebeu a mão dela se aproximando, tal foi a velocidade e a força. Pegou em cheio em sua bochecha, avermelhando seu rosto e tão de repente que ele nem percebeu que deveria chorar.

 

- ELE É SEU PAI! – berrou Eileen. – NÃO FALE DELE DESSE JEITO!

 

Severo olhou para a mãe, de olhos arregalados. Ela nunca estivera tão obstinada.

 

- E vá já para o seu quarto!!! – berrou ela, largando o filho buscamente.

 

Obediente, Severo saiu correndo da cozinha, com o rosto em chamas, agora percebendo a dor, e segurando totalmente o choro. Subiu as escadas correndo e deitou-se na cama. Abafou o som das lágrimas com o travesseiro.

 

- Um dia vou ser bem grande, e então EU baterei nele, para variar – balbuciou, com raiva, as lágrimas cegando seus olhos.

 

Severo não conseguia ter raiva da mãe.

 

Em partes porque ela era sempre boa com ele – ou, ao menos, melhor do que seu pai -, mas principalmente porque toda sua raiva infantil e cega era destinada a Tobias Snape. A única coisa que fazia sua mãe se exaltar era ele.

 

Era só por Tobias que Eileen sorria ou chorava. Severo era ainda pequeno e já conseguia perceber que era quase um intruso naquela casa. Seu pai, que era pai apenas no nome e na concepção, o odiava, e era um ódio seco e velado, um ódio de distância. Severo nunca apanhava do pai, mas sabia que isso era porque ele pouco se importava com o filho. Às vezes, cego de dor, chegava a pensar que levar uns tapas não seria de todo mal, se com isso pelo menos o velho Tobias olhasse para ele. E falasse com ele, nem se fossem alguns insultos.

 

Não, Tobias não dava a mínima para o que quer que fosse, mas principalmente Severo. E quando ele voltava, como um cão que fez uma arte, chorava e se sentava aos pés de Eileen, fazendo-lhe promessas, jurando-lhe amor, dizendo o quanto a amava e precisava dela. Ele até mesmo chegava a cumprir essas promessas, às vezes – por algumas semanas apenas. Mas jamais mencionava o filho. Nem mesmo nesses arroubos de bondade e amor.

 

Sua mãe o amava, ele podia ver. Embora não entendesse a razão. Tobias era o centro do mundo de Eileen, mesmo que esse mundo no momento fosse um cenário de pós-guerra. Severo imaginava que a mãe tinha pelo padrasto um amor às raias da loucura, e não sabia o quão perto da verdade estava.

 

Sua mãe estava, aos poucos, perdendo a razão, mas ele não sabia, e Tobias não notava. Nunca se soube dizer se foram as surras ou a desilusão, mas talvez ambas as coisas foram roubando de Eileen a consciência, pouco a pouco. Mas isso, Severo demorou um pouco a descobrir.

 

Aos sete anos, a única coisa que sabia era que sua mãe se exaltava para defender o pai, mas não para defender a si mesma. Ou a ele, seu único filho. Severo desconfiava, com razão, que nunca teria um irmãozinho. Eileen era o mais próximo que ele tinha de companhia de afeto, e Severo buscava isso sem tréguas e sem preço, o tempo inteiro. Vivia tentando ajudar na casa, levava flores rameiras que apanhava no jardim, ficava sem jantar para a mãe comer quando o arroz era pouco, mas nada parecia adiantar.

 

Eileen alternava momentos em que o acarinhava e lhe contava histórias com outros, mais freqüentes, onde passava o dia deitada no quarto, ignorando-o, ou simplesmente saía de casa e passava dias fora, deixando o filho sozinho. Nessas ocasiões, Severo fazia o máximo que podia para não se mover, pois não queria despertar a atenção do pai. Sabia que, se isso acontecesse, não poderia contar com ninguém.

 

Às vezes sonhava que o pai desaparecia, e então sua mãe o levava embora dali e cuidava dele, cozinhava-lhe bolos doces e lhe dava presentes com pacotões enfeitados. Nesses sonhos, Eileen vivia sorrindo, pois o marido não estava por perto para atormentá-la.

 

A casa em frente à dos Snapes não era muito rica, mas era sem dúvidas melhor. Severo vivia espiando-a pela sua janela, e certo dia conseguira vislumbrar chapéus e balões em volta de uma mesa, com uma cantoria muito alegre. Ele morria de vontade de ver o que se passava por ali. E morria também de inveja, embora nunca a admitisse para ninguém.

 

A rechonchuda senhora Grace, que morava na esquina, havia dito que era hora dele ir para a escola, mas sua mãe não se interessara muito. Ele não contara para Eileen, mas gostaria bastante de ir para a escola. Como um garoto normal. E então também poderia ficar um pouco longe de casa. E é claro que não contaria aquilo para ninguém.

 

Continuava fantasiando quando ouviu a porta. Tobias havia voltado cedo, aquela vez. Saiu do quarto e foi até a sala, mas o olhar furioso que sua mãe lhe enviou o fizeram recuar. Era um olhar cheio de repulsa e ódio, que dizia para não se aproximar mais. Severo queria acreditar que a mãe fazia isso para que ele não corresse perigo, queria mesmo – queria tanto que às vezes até conseguia -, mas na maior parte do tempo sabia que ela não queria que ele atrapalhasse seus momentos com o pai.

 

Era simples: o pai não gostava dele, então Eileen o escondia. Assim como fazia com todos os seus machucados, fosse quando o pai se arrependia, fosse quando ia comprar pão (muitas vezes, fiado).

 

Ferido, engoliu o choro pela segunda vez naquele dia e recuou até a cozinha. Deveria subir até o quarto, mas sentou-se ali mesmo e abraçou os joelhos. Podia ouvir alguns gritos da sala.

 

- ELE NUNCA IRÁ EMBORA?  - era a voz do pai, grossa, alterada e alcoólica.

 

- Ele tem sete anos, Tobias!

 

- VOCÊ ME DISSE QUE ELE IA EMBORA! PRAQUELA HOGZARTS LÁ...

 

- Hogwarts!

 

- QUE ME IMPORTA? SÓ QUERO QUE ELE VÁ LOGO PRO GUETO DAS ABERRAÇÕES – disse Tobias, fazendo a palavra soar como “aberrazões”. – VOCÊ ME DISSE!

 

- Ele irá, querido, mas é com onze anos...

 

- FALTA QUANTO TEMPO AINDA COM ESSE MOLEQUE NA MINHA CASA?

 

Severo ouviu o som de um tapa, e silenciosamente começou a chorar, ignorando o resto da conversa. Aquele não era um dos dias onde o pai voltava manso.

 

Chorava pelo amor que não tinha, chorava de dó pela mãe na sala, chorava de dó pela mãe que não o defendia, chorava pelos pais querendo que ele fosse embora, chorava por si mesmo, por não querer ir embora, e por querer, por querer muito ir embora.

 

Não sabia onde o pai pretendia jogá-lo, até que tinha demorado, mas não seria tão ruim quanto ficar ali. Ou seria? E Severo derramou outras lágrimas, algumas por querer ficar com a mãe, algumas por querer que a mãe ficasse com ele, algumas por se odiar por não querer mais ficar ali com ela.

 

Não tinha sequer dez anos, mas já havia muita coisa em sua vida.

 

 

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Continua...                                  

 

 

 

Nota da autora: esses capítulos foram introdutórios, e não pretendo que a fic toda tenha esse clima de depresão. Mas isso é importante, afinal, é a família dele, e foi isso que formou seu espírito e é a origem de muitas de suas atitudes, inclusive com a Lilían. Vou desenvolver isso ainda, é claro. E não, ele não ficou igual aos pais, vocês conhecem o Snape.

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