Quinto Capítulo



O vento assolava-me em seu chicotear intenso. Seus dedos cálidos mas áridos me pregavam peças, levando consigo todo calor de meu corpo. 
A lamaceira à minha volta me enojava até a alma como se penetrasse minha pele, alojando-se lá a minha revelia.
“Vamos, levante-se. Seja rápido!” – Um sussurro infantil ecoou, assustadoramente infantil, mas com obvio desespero.
Quando finalmente me dei conta, coloquei-me de pé num pulo, assustado, sentindo cada célula de meu corpo se retesar. Mas, tão rápido quanto me levantei, voltei ao chão: simplesmente cedeu sob meus pés, afundando.
“Vamos, já lhe disse!” – Com mais cuidado me pus de pé, finalmente me permitindo abrir os olhos. A claridade era tamanha que mal pude ver a princípio, deixando meus olhos rasos d’agua.
Mas logo que pude ver novamente, vi que fora um grande menino que sussurrava para mim.
Seus olhos eram dum azul profundo, brilhando na adrenalina e felicidade. Sua barba e bigode eram moderados, num incrível loiro, que brilhava ao sol da manhã, assim como seu cabelo, devidamente curto. Quando sorriu, vi seus dentes grandes, brancos como neve, mas tortos. 
Seus ombros eram largos, porém seu corpo era pequeno, normal.

Senti meus lábios se movendo para imita-lo quando voltou a sorrir.

Uma sombra parecia se postar logo atrás do rapazote, era a senhora da noite anterior.

“Rápido” – Voltou a dizer. Levantei-me e, com certa dificuldade, deixei o lamaçal

“Tem de fugir! Ninguém deve saber que lhe ajudei!” – Segurou em minha mão, e foi quando compreendi.

“Nã…” – Comecei a pronunciar, mas foi quando a senhora tirou-lhe o pescoço num único golpe com a faca.

Meu grito reverberou por todo local, com o corpo morto caído sobre meus pés. Não havia notado antes, mas suas roupas eram brancas, agora tingidas naquele tom vermelho que tanto conhecia.

Dei as costas a todo horror, numa tentativa farjuta de correr.

Meus pés se alojavam na lama grossa, assim como os da senhora que vinha ao meu encontro.

Estávamos num maldito chiqueiro, com grandes e rosados porcos chiando e entrando em nossa frente.

“Venha mocinho, não seja malcriado. Venha com a vovó…” – Dizia a mulher, num sussurro docemente envenenado.

Quando conseguiu segurar minha blusa, senti meu coração parando por um momento, deixando que a dor me prostrar.

“Não desta vez!” – Gritou uma voz que partia de trás da velha, acertando-lhe a cabeça em cheio com algo que não identifiquei.

Quando seu corpo cambaleou, pude ver um rosto familiar. Os mesmos traços.

Mas os olhos, esses olhos… Logo os olhos que julguei perversos!

“Vá garoto, corra! Só vá em frente, numa cabana, lá encontrará tudo o que precisa!”

Corri, obstruído pela lama, que logo chegou ao seu fim. Quando senti meus pés livres da gosma, olhei para trás, vendo os lábios do homem sibilar antes de correr para o leste: ‘Campanário’.

Prostrado, olhei por mais alguns segundos para onde o homem corria, mas logo as cinzas o levaram.

Como mágica.

Quando dei por mim, corria alucinado para o nada. O verde da grama não tinha fim, e não podia ver nada mais além.

O vento rugia em meus ouvidos, como se farfalhasse para mim algo.

Suas palavras eram indistintas, cantaroladas, como uma profecia Seu afago machucava-me os ouvidos. Frases sem nexo, frases incompreensíveis, frases doloridas.

Quando parei, ofegante, pude ouvir melhor. Mas grande parte já havia se perdido quilômetros atrás. Do pouco que compreendi, quase nada se formou: 


contra seu músculo
Num nepotismo
dedos calejados
E pele sulcada pelo cansaço do eterno
cor dos céus
Em seu brilho, xifópago da dor.
Essas asas que batem contra si
Com dor externa mas clareza interna
Chorando a felicidade e tristeza
Nesse seu mar rubro com começo e fim
Letra e sucursal, mas perfeitamente singular
mitigando seu voar
sangrar
Mas quando a hemorragia será acalentada?


Seu medo era tamanho que logo seu coração tornou-se desesperado em seu bater, tornando as palavras novamente escassas.

Uma velha cabana, com velhas folhas secas contornando-a, começou a apontar ao norte. Todavia, Luca corria há horas incessantes.
Já podia ver o sol deitando-se no horizonte, com uma vontade ardente de juntar-se a ele.

Quando atingiu o casebre, o sono já tomava conta de seu corpo. A porta não tinha fechadura, portanto se jogou contra a mesma levemente, deitando-se sobre o carpete, entregando-se mais uma vez ao inevitável.


 


-Veneza




Com olhos semicerrados, sentou-se num banco na bancada do estabelecimento.

O balcão era extremamente sujo, exalando um odor terrível, numa mistura de cerveja, vômito e suor.

Bêbados caíram para os lados das cadeiras ao seu redor quando permitiu que fosse vista, de repente. Sabia como era aos olhos humanos, sentindo-se sortuda por isso facilitar muito o que tinha de fazer.

“O que deseja?” – Perguntou um jovem, desinteressante o bastante para não fazer falta e para que passasse despercebido pela falta de qualquer coisa que o tornasse diferente ou simplesmente igual.

Realmente, fadado a tudo isso, pensou num misto de repulsa e crueldade.

“Oh, traga-me qualquer coisa para beber. Mas, tenho algo especial para lhe pedir. Me disseram que há, aqui, uma suposta faca medieval que está cravada no coração do estabelecimento…” – Antes que terminasse, o jovem lhe respondeu:

“Venha, lhe levarei lá. Porém, lhe aviso que ninguém, absolutamente ninguém, sobrevive depois de tocá-la ou simplesmente vê-la, portanto terá de ir uma parte só. Sei que são lendas, mas eu acredito”

Entramos por uma porta nos fundos, e mais meia dúzia delas, quando o garoto deixou que seguisse sozinha.

Quando cheguei a um velho porão, notei uma grande árvore plantada no meio, exatamente no meio, brilhando.

Meus passos eram rápidos e certeiros, sabia o que fazia.

Quase gargalhei quando vi: Uma ave se definhava, uma coruja. E em seu coração, a maldita estava cravada. Simplesmente isso, nada mais que um amontoado de lendas humanas tornando-se verdadeiras pelos diabretes de Azor.

Com a mão trêmula, à dirigi ao tesouro que necessitava.

Quando finalmente pude tentar tira-la de lá, vi grandes glóbulos completamente vermelhos e em parte putrefatos me fitando.

Seus olhos brilhavam de tal forma que pareciam incrivelmente vivos.

“Chega!” – Gritei com todas minhas forças para a ave.

Era aquela que vinha me perseguindo, olhando através de seus olhos, alterando sua composição, tornando-a viva novamente. Tola ao tentar me impedir, caso achasse que não sabia de seus truques!

Surpreendendo-se, sorriu para a ave possuída, fechando caridosamente seus olhos.

“Agora não!” – Sibilou com dureza.

Quando tentou, mais uma vez, retirar o Campanário de dentro da coruja, o corpo investiu contra seu rosto, quase tirando-lhe o olho esquerdo.

Assustada, caiu para trás, batendo a cabeça. Isso pouco lhe afetava, mas, durante os minutos que passou inconsciente, pode sentir o terror se alastrando, levando-a para anos atrás.


-FlashBack


 


A ventania forte de outrora cessara, permitindo que um ar árido se adensasse ao seu redor. 
Qualquer movimento seu era de grande peso, devido ao calor sugando-lhe a vivacidade do corpo. Até um piscar de olhos lhe cansava.

Mas grandes borrões de imagens passavam por seus olhos fechados, grandes faixas de imagens completamente etéreas ao seu ver. Tudo se projetava, lenta e dolorosamente à sua frente.

Um bater de asas se juntava ao horror que se via em seus olhos, à sua volta, tomando-a para si. Tudo isso dançava lindamente junto ao tilintar das vidraças pelas batidas dos galhos secos das árvores mortas.

O terror se tornava belo aos seus olhos descansados, perturbados e fascinados.

Mas foi quando piscou que notou a dor que partia dali.

Em sua mão escorregava um de seus olhos. E de onde ele partira, sangue jorrava. Os capilares e veias que mantinham o glóbulo lá, saltavam para fora do buraco. Era como se pequenas agulhas penetrassem-lhe a pele, lá se alojando, sempre buscando mais fundo na carne.

Seus pés pisavam torto pelo gramado, cambaleando, e enfim caindo.

Seu rosto estava coberto por sangue e dor, mas o desespero era quem lhe comandava o corpo e mente.

Podia sentir o enjoo formando-se em seu estômago, compilado ao latejar de sua cabeça.

Quando buscou em suas mãos pelo olho arrancado, só encontrou sangue. Havia ela perdido o próprio olho durante a queda?

Sua pálpebra tentava fechar-se involuntariamente, junto aos cílios, grudados pelo sangue que ainda deixava-a.

Seus gritos ecoavam por todo o local quando voltou a ouvir o bater de asas próximo.

Todavia, diferente do que esperava, a ave lhe colocou o olho de volta ao lugar.

Nesse momento, todo tipo de dor, ou lembrança da mesma a deixou. Simples e prazeroso.

“Levante-se, querida” – Uma voz soprou em seu ouvido.

E assim foi feito.

Mas suas roupas não eram as mesmas, todo aquele colorido deixara seu corpo, assim como o vestido antigo que usava.

Agora um negro tomava conta de suas vestimentas. Assim como seu sapato, agora um digno de uma bailarina.

Seus dentes rangiam de dor, e o vento soprava o que necessitava.

Sem pensar, tomou a coruja de outrora em suas mãos, dilacerando-a como um animal. 
Sendo um animal.

Quando voltou a abrir os olhos, tudo mudava a sua volta… Ela sabia… O que nunca deveria acontecer, acontecera, e com a bênção dos elementos trazendo à tona seu lado animalesco. Coroando o horror sulcado pelo eterno.



/-FlashBack/
/-Veneza/

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