Primeiro Capítulo



Luca arrastava suas pequenas malas pelo salão, com seus olhos amendoados banhados pelo sol dos trópicos, assim como sua pele, provindos de sua descendência, transmitindo um leve susto, mas perpetuando a vergonha. Viera viver com sua tia, Ofélia, em Florença.
Cansado estava o jovem, pois durante dias viajara pelo desconhecido, sentindo que a cada minuto a mais, seu coração pesava. Sua respiração se tornava difícil, o ar era escasso…
Seus passos eram lentos, descompassados, porém harmônicos pelo salão. Sua respiração era alta, voluntária, e o único som produzido naquele ermo recinto… 
Corpulento era, mas ainda assim esguio, em seu terno risca de giz, camisa preta, ambos levemente úmidos embaixo das axilas, devido ao calor de outrora, e uma gravata cor carvão, justa ao pescoço, como deveria ser. Seus cabelos grossos, penteados com vigor para trás, caíam em belos cachos, dourados em suas pontas, mas chegando a se tornar escuros como a noite em sua raiz.
Tudo ali era negro, as janelas cobertas por longas e pesadas cortinas pretas, e sua parca iluminação provinha de velas espalhadas precariamente pela lareira e mesas.
Correndo seu olhar pelo recinto, pôde notar ao longe uma pequena caixa aberta, adornada por fios de ouro, onde bailarinas dançavam ao som de exérquia, quase imperceptivelmente, girando em torno de si, lentamente. Com olhos escuros, pele branca como a neve, e madeixas presas atrás das orelhas em um coque rígido. Corpos esguios, perfeitamente esculpidos à mão. Seus braços, finos como um palito, giravam de acordo com a música, fazendo movimentos circulares com as mãos, como se chamasse mudamente por alguém. 
Aquilo assustava-o em demasia, pois pareciam tomar para si toda a luz do recinto, conforme a música se aprofundava… Tornando tudo um largo breu, aos olhos do garoto.
“Elas o induzem… Clamam por você e sua alma… A música lhe conta… A elas é clamado a se juntar…” – Foi sussurrado em seu ouvido, baixo o suficiente para que chegasse a duvidar de sua veracidade.
Mas, antes que desse conta de seus atos, Luca se viu com as mãos encrespadas, partindo em direção à medieval caixa, com passos apressados, e braços espalhafatosos. Quando se viu roçando em sua chave, e enfim tocando-a, enlouqueceu, simplesmente deixou se levar, e de nada ali presente se recordava...
Entretanto, não houve tempo para o ato se consolidar, pois logo um grito estridente irrompeu pelo recinto... uma voz feminina, porém forte, sem ponto de partida certo, deixando-o receoso, buscando pelo autor, sem deixar de tocar a chave, em momento algum…
Seus olhos percorriam alucinadamente todo o recinto, mas só a encontrou quando sentiu sua respiração ofegante lhe causando cócegas, e lhe arrepiando o pescoço, parada à sua frente, sibilando e farfalhando a voz, com raiva evidente:
“Seu cretino! Nunca toque aquilo que não lhe pertence.” – Ao final de cada palavra, a voz daquela moça imitava o som de gralhas, que agora se acomodavam em torno das grandes janelas, fechando suas negras asas malévolas. A garota possuía grandes glóbulos devidamente escuros, como os de toda família, mas claros o bastante para perceber a pupila que se dilatava, transmitindo raiva ao quebrar o silêncio que outrora reinava sobre o salão. Seus cabelos, em tom uniforme, imitavam o brilho do sol, acompanhando sua pele cor de mel.
“Perdoe-me. Não era minha intenção…” – Dizia o garoto assustado, hesitando, com sua voz aguda, sem transmitir firmeza em momento algum, mas buscando escolher as melhores palavras: “Não tive controle sobre meus atos… quando vi, aqui estava…” – Mas, antes que concluísse, fora interrompido por um sussurro mais calmo, quase imperceptível se não fosse pela proximidade, como se exprimisse para si própria.
“Não seja tolo. A caixa não pode induzi-lo a nada. Nada” – Concluiu, dando demasiada ênfase, como se não acreditasse no que era dito, entortando seus lábios em desdém, mostrando dois sulcos entre o lábio superior e o nariz.
Antes que Luca compreendesse as palavras, um súbito vento cálido percorreu sua espinha, e um choque atacou cada falange, permitindo que a pequena caixa, ainda em sua inconsciente posse, caísse lentamente ao chão, mas rápido o bastante para impedir que Luca ou Ofélia segurassem-na.
As mãos da garota se encresparam, seguindo segundos antes o movimento preciso da caixa, tentando segura-lá de qualquer maneira, a qualquer custo. Palavras foram sibiladas, mas tarde demais para que pudessem atingir a chave, que já batia no assoalho, com o pequeno raio que partiu de suas mãos, agora com todas as células esticadas.
As velas se apagaram rapidamente pelo forte vento que adentrou o recinto. Mesmo com as pesadas cortinas tremulando, nenhuma fonte de luz exterior existia. Tudo se resumia em preto... Tudo.
Mais rápido que Ofélia, o rapazote recuperou seus sentidos, se desvencilhando dos braços da garota que outrora o tomará, machucando-o.
Seu pé latejava, pois a caixa que chegara ao chão fincara seu vértice em seus dedos, atingindo-os em cheio. Mas a dor não lhe importava.
Tudo era exatamente como antes, entretanto tudo parecia mudado, segundo seu inconsciente...
O ar, outrora cálido e glacial, agora era quente e abafado. A raiva que emanava da garota, agora se tornara medo... Medo aquele quase palpável, com sua aura bruxuleante.
“Não... Novamente não” – Dizia Ofélia, que agora corria em direção às janelas, cambaleando com o vestido que não lhe permitia correr, enrolando as camadas em suas longas pernas, cobertas por uma meia grossa, tão negra quanto o vestido.
Buscava manter as cortinas fechadas, com as mãos, de forma espalhafatosa. Mas quando se deu conta do impossível que tentava, devido ao enfurecido vento que partia em direção à janela, correu para Luca. Seus olhos eram um misto de pena, tristeza a acusação, com a doçura do chocolate.
Um enorme buraco negro os cercou, sugando todas suas forças.
Tudo mudou. Tão rápido quanto possível, seus pesadelos se tornaram realidade...
Agora, aos olhos de Luca, tudo se tornara uma cidade, em inimagináveis proporções; Ao fundo, havia tenebrosas gôndolas, flanando sobre um sujo rio, onde nada se via, além de suas pequenas ondas moldadas ao vento.
Suas mansões eram majestosas, todas de cores escuras, e enormes gárgulas as guardavam. As pessoas que andavam por ali não passavam de vultos escuros, como se fossem fumaça.
Tudo lhe era devidamente conhecido. Cada recordação de sua infância, e de suas descobertas, que o trouxeram para ali, pairaram sobre seus olhos, tão nítidas como poderiam ser.
Ofélia, até então calada, se pronunciou em um tom farfalhante de voz, despertando-o de seus devaneios com sobressalto:
“O que pode ver?” – Não sabia o que responder. Pôde sentir suas sobrancelhas se unindo levemente, e suas olhos se fechando, demonstrando sua dúvida.
Percebendo a confusão de Luca, voltou a dizer toscamente, balbuciando as palavras:
“O que vejo não é, de maneira alguma, o mesmo que você. Tudo aqui está fadado a lhe parecer assustador, a representar seu maior medo...” – Uma lágrima solitária escorreu seu olho direito, entretanto, antes que pudesse fazer algo, Ofélia tomou em suas mãos um objeto que muito se parecia com o que Luca vira seu pai usando, logo antes de mandá-lo para sua viagem, utilizando daquilo que tanto lhe disse para não usufruir, praguejando-o.
Palavras foram sussurradas ao vento por Ofélia. 
A noite, com suas estrelas que brilhavam acima de suas cabeças, agora se tornava dia, em seu alvorecer, se unindo para formar aquele sol que apontava no horizonte, majestoso, a todos banhando com seus raios dourados. Sua luz era tremenda... Era tremendamente agourenta...

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