Don't want lock me up inside






E
u sempre soube que aquele dia chegaria. Não é que eu ficasse agourando ou meu pessimismo extremo me desse essa certeza o tempo todo. Não. É só que eu simplesmente sabia. Pensar que desde o início aquilo estava fadado a desmoronar, a virar apenas uma lembrança dolorida, só me fazia ter certeza do quanto eu era fraca. Enxuguei com raiva a lágrima que acabara de saltar, única, mas que escorreu queimando cada parte do meu rosto; então, aquela era a dor que finalmente viera. Já não adiantava mais pensar que eu deveria ter sido forte, que eu deveria ter deixado meus sentimentos guardados do jeito que estavam. Passei a minha vida toda fazendo isso, porque é que tinha de me dar ao luxo de fazer o contrário justamente quando esse meu ‘talento’ era mais do que necessário?


Já fazia algum tempo, afinal, mas tudo era nítido em minha memória, nos mínimos detalhes, e eu tinha certeza que jamais esqueceria, nem mesmo os aromas e ‘cores’ daquela época. Um ano e meio atrás, para ser mais exata. Não posso negar que apesar desse tempo ter sido intenso – em um sentido bom – ele fora igualmente longo e complicado. Eu nunca tive problemas com o fato de interessar-me por garotas, não mesmo. O complicado era interessar-me por alguém como ela. Nunca aparentei ser um poço de inteligência, tão pouco simpática e amigável eu era; nunca fiz questão de ter amigos, nem mesmo os que eu mantinha na Sonserina. Pura aparência. Apenas uma vontade insana de mostrar que eu tinha o meu próprio controle. O que não era verdade. A parte de mim que era verdadeira tinha sentimentos demais, coisas com as quais eu achava que não saberia lidar; minha introspecção me fizera uma completa leiga para tratar as pessoas, para falar qualquer coisa que não demonstrasse raiva e hostilidade, o que era um reflexo da minha própria frustração. Não vou dizer que era feliz assim, mas olhando hoje, tudo era relativamente mais fácil. Quando você tem de se preocupar só em continuar envolta pela ‘bolha’ e nada mais, é realmente fácil.


Não sei ao certo quando passei a enxergar com outros olhos, mas a verdade é que eu sempre a admirei, não que eu admitisse – é óbvio. Era preciso coragem para falar o que pensa, e a forma como ela defendia suas próprias teorias era totalmente nova para mim, mesmo que todos falassem que eram loucuras, ela continuava ali, firme, acreditando fielmente em suas palavras. Como eu disse anteriormente, era complicado interessar-me por alguém como ela, mas não porque ela era doidinha e aquilo fosse totalmente ‘errado’, mas pelo fato de que ela jamais olharia ou sentiria algo que não fosse aversão por alguém como eu. Eu era aparentemente burra, apenas uma seguidora fiel do babaca do Malfoy, rude, fútil, apenas mais uma Sonserina que ela devia torcer para não ter o desprazer de cruzar pelos corredores. E eu, a desejava em segredo. A observava sem que ninguém notasse e azarava qualquer um que por acaso tentasse fazer qualquer gracinha com ela. Eu mesma me odiava por isso, sentia-me mais deslocada do que de costume, afastei-me ainda mais de tudo e todos. Luna Lovegood virara minha obsessão. E o verdadeiro motivo para eu estar na casa verde ficou mais do que claro, nem de longe era por ser aquela Pansy que todos conheciam, mas porque eu tive certeza que eu faria o que fosse preciso para tê-la. Podia estar apavorada com o fato, mas a minha determinação era muito maior.


Em um momento em que era evidente que a guerra se aproximava, ou melhor, em que a guerra deixaria de ser uma coisa ‘camuflada’ e passaria a afetar diretamente nossas vidas, ela me notou. Não que ela tivesse alguma opção, já que insistia em lançar meus olhares nada discretos ou pelas constantes aparições casuais em seu caminho. No começo, não conseguia abandonar minha hostilidade, ela era muito mais perceptiva do que eu imaginava, seu modo de entender o que estava acontecendo, de me olhar nos olhos e saber exatamente o que eu estava sentindo me assustava, tanto que eu me aproximei dela, mas era eu quem continuava na defensiva. Definitivamente, eu era péssima em lidar com aqueles sentimentos, mas de alguma forma, ela tornou-se minha amiga, de alguma forma totalmente inexplicável, ela enxergou em mim algo que nem mesmo eu era capaz de enxergar. Criamos um tipo de ligação que não era necessário tantas palavras; pela primeira vez na vida, eu me sentia confortável se estivesse em silêncio, ao lado dela.


*** 


Aquela sala trazia milhares de lembranças à tona, ainda que eu a tivesse deixado totalmente diferente do que estávamos acostumadas. Não havia nenhum quarto aconchegante, um adorável chalé nas colinas ou ainda apenas um gramado bem verde e úmido, era só uma sala velha e vazia, como ela era na verdade. Ou era o meu estado de espírito que a deixou assim, pois eu só pedi para entrar. As paredes da Sala Precisa estavam emboloradas, a tinta corroída pelo tempo e diversas teias de aranha se alojavam nos cantos; o chão era feito de um assoalho de madeira desbotado, e várias tábuas estavam soltas, rangiam ao mais delicado passo. A única fonte de luz vinha da enorme janela na parede oposta da porta. Uma chuva que provavelmente não era real caia do lado de fora, não estava forte, nem fraca, apenas caía, numa melodia melancólica e pesada. Era como se aquelas gotas incessantes representassem tudo o que eu queria chorar, mas reprimia com o restante das forças que me sobraram.


Fiquei em pé, diante do parapeito, durante longos minutos. Eu sabia que ela chegaria a qualquer momento, também sabia que por mais silenciosa que ela conseguisse ser, eu conseguia perceber sua respiração, mesmo que não estivesse ruidosa. Seu cheiro me inebriava quando a primeira fresta da porta se abria. Depois daquele tempo juntas, das coisas que passamos e depois de quase perdê-la para sempre, eu havia adquirido uma percepção e sincronia absurdas com ela. Em um sentido bem físico mesmo. A forma como me movimentava perto dela, como nossos movimentos eram delicados e se acompanhavam sempre, era algo que eu jamais iria esquecer e era algo que não importava quanto tempo passássemos longe, seria um ‘sentido’ que não perderíamos. Sorri ao lembrar-me da primeira vez que nos encontramos naquela sala. Do beijo que roubei e ela ficou espantada. Não que ela não soubesse dos meus reais sentimentos por ela, porque no fundo ela sabia, só acho que ela ainda não confiava exatamente nas minhas palavras, e como eu não tinha lá muito crédito, ela não confiava nem mesmo em sua própria percepção.


Meu desejo e obsessão por Luna, transformaram-se numa forma pura, plena, de amor; não vou negar que sempre achei isso uma bobagem, até que eu senti de fato. Senti com ela que tudo era melhor, que com ela eu podia ser melhor, podia ser verdadeiramente eu que não haveria problemas. Eu não me envergonhava de estar feliz, de estar apaixonada por uma garota como ela, porque, como eu já disse, de uma forma inexplicável, ela não só via algo em mim, como também conseguia gostar de mim. Não me arrependia de cada momento que passamos, mesmo que tudo estivesse seguindo um caminho que, inegavelmente, não tinha volta. Eu sempre soube que ela acabaria com algum rapaz tão legal quanto ela (não que o Longbotton ou o Weasley fossem, mas, que seja, não ia gostar do mesmo jeito), mas em algum momento eu cheguei a alimentar alguma esperança de que tínhamos alguma chance, ainda que mínima. Até que fui marcada e toda e qualquer esperança ruiu.


Aquela marca que ainda impregnava o meu braço seria um fardo por toda a vida. Fui obrigada pelos meus pais e a pedido do Lord, segundo eles, a fazer aquilo; a cada vez que eu sentia aquela marca queimando em meu braço, eu estava certa que o meu destino era morrer, e que ele estava muito mais próximo do que eu imaginava. Não morri, pelo que podem notar, mas não foi por falta de oportunidade. Do mesmo jeito que amaldiçôo a Marca Negra, eu tenho de agradecer, se não fosse por ela, não sei o que teria sido da minha Luna naquele porão na mansão dos Malfoy. Com o fim da guerra e a derrota do Lord, tornei-me algum tipo de foragida, um tipo de bruxa que a sociedade não quer ver nem pintada de ouro. Marcada. Era isso que eu sempre seria.


- Você não muda nada, Parkinson. – claro que eu sabia que ela tinha entrado, só não ainda não tinha tido coragem o suficiente para virar-me e encará-la. - Olha só para esse lugar, se eu não te conhecesse tão bem, não teria a encontrado nunca. – provavelmente não mesmo. Ela caminhou para perto e eu ainda estava afogada no meu silêncio; eu ainda olhava fixamente para janela quando ela deitou sua cabeça delicadamente em meu ombro. Aquelas ondas intensas, de quando nossas peles se tocavam começou a percorrer meu corpo e meu coração acelerou. Uma reação comum, posso assim dizer. Virei-me para olhá-la, finalmente, e a aceleração no meu coração parou. Não, eu não tinha morrido, mas definitivamente havia esquecido de como é que se respirava. Seria difícil demais dizer adeus, principalmente com aqueles olhos me fitando daquela maneira. Mas ela sabia, nós duas sabíamos que era necessário. Ela já não estava mais deitada em meu ombro, estávamos de frente uma para a outra, em silêncio, apenas sustentando aqueles breves segundos com o olhar.


- Não posso dizer o mesmo sobre você, Lovegood... – disse enquanto colocava uma mecha de seus cabelos para trás de sua orelha e lhe lançava um breve sorriso; um sorriso perceptivelmente triste. Ela sabia ao que eu me referia, afinal sua mudança era notável. Ela, definitivamente, não era mais a Luna que todos conheciam; talvez fosse a guerra, ou ela tinha apenas crescido; já não usava colares e brincos excêntricos, ou lia revistas de cabeça para baixo. Seus cabelos loiros platinados, que antes ficavam soltos e cheios, agora estavam ligeiramente mais curtos e lisos, com uma franjinha que a deixava com um ar de garota, embora fosse óbvio que ela tornara-se uma bela mulher. Seus olhos continuavam sempre os mesmos, algumas vezes ainda pareciam fora de órbita e sempre sonhadores demais, porém, se os observasse bem, depois de todos os sofrimentos que ela tivera de passar nos últimos meses, fora acrescentado uma coloração cinza, que insistia em deixar o meu pedaço de céu particular, nublado. Era bom ver que ela tinha crescido, mas às vezes sentia falta de seu otimismo, suas gargalhadas... É, eu sentiria falta de muitas coisas ainda. - Sabe por que te chamei aqui, não sabe? – eu e minha incrível habilidade com as palavras.


E o próprio soar delas me apavorou. Eu estava totalmente gelada, tremia, mas certamente não era de frio; desviei o meu olhar do dela imediatamente, mais uma vez, virei-me para a janela e senti o meu rosto quente. Eu estava chorando. As lágrimas agora corriam silenciosas e não cessavam, caiam uma atrás da outra, deixando meu rosto manchado pela maquiagem escura dos olhos. Então fora só agora que eu tinha caído na ‘real’; eu teria de ir embora, deixá-la livre para ser feliz como já devia ter feito desde o início. E eu não queria deixá-la. Eu ainda tinha que protegê-la. Errado. Era eu quem precisava dela. Eu a amava muito mais do que qualquer coisa na vida. Eu a queria por perto, sempre, para abraçá-la e simplesmente contar como foi o meu dia, não queria ter de me trancar dentro de mim mesma mais uma vez. Ela me fazia querer ser melhor, conseguiu me mostrar que eu havia algum valor afinal e que eu podia fazer tudo que eu quisesse, se eu realmente quisesse. Por ela fui capaz de criar ou despertar sentimentos que achei que não pudesse sentir, que não fosse nobre ou digna o suficiente para merecê-los. Aprendi tantas coisas. Quer algo maior do que ter aprendido a amar? A amar alguém mais do que eu amo a mim mesma. A ser altruísta e saber compartilhar. Perder tudo isso causava uma dor dilacerante, dessas que você acha que nunca vai ter fim. E não teria. Sentia como se as minhas próximas palavras fossem causar uma explosão, que estilhaçaria meu coração em milhões de pedaços, impossíveis de serem colados. Jamais me vi como alguém que pudesse sofrer ao dizer adeus a alguém, que estivesse apavorada em sentir saudades e que já estivesse sentindo saudades antecipadas, mas lá estava eu, sentindo tudo isso e chorando feito uma criança. Não. Chorando feito uma mulher, prestes a deixar o único e grande amor.


- Pansy... – sua voz causou um aperto ainda maior no meu peito e as lágrimas se intensificaram; eu não queria que ela me visse chorando – Eu sei porque me chamou e sabe que eu não concordo... – claro, eu sabia. E eu juro que tentei acreditar em suas palavras, juro que tentei fazer o possível para ver as coisas da mesma forma que ela, mas era impossível. Ela mesma assumiu que as coisas não seriam fáceis. Nunca seria fácil para nós duas. Nem que a guerra não tivesse acontecido e eu não fosse uma ex-comensal as coisas seriam fáceis, mas isso colaborou para que eu tomasse a minha decisão. Se em Hogwarts as coisas estavam difíceis para mim, imagine fora dela. Sem contar, que nos separaríamos de qualquer jeito; ela ainda tinha mais um ano ali, enquanto eu teria de encarar o mundo lá fora. Talvez a distância por aquele ano não ‘destruísse’ tudo que havíamos conquistado, mas meu futuro era tão incerto, eu mal sabia para onde iria. Não pretendia trilhar essa ‘caminhada’ com meus pais, eles encontrariam outra forma ilícita de viver e não era mais aquela vida que eu queria para mim. Não precisei a olhar para saber que ela estava me olhando e chorando. Vê-la chorando me deixava ainda pior e sem saber o que fazer. Mas, aquela era a hora de ser forte por nós duas. Durante aquele tempo ela foi forte, eu precisei muito mais dela do que o contrário. Agora era por nós que eu deveria fazer aquilo. Enxuguei as lágrimas e respirei fundo. Com toda a certeza, aquela era a decisão e a coisa mais difícil que eu já tinha feito na vida. Ser uma comensal e depois lutar contra eles nem se comparavam àquilo. Mais uma vez, virei-me e encarei-a.


- Minha Luna... – acaricie de leve sua bochecha e seus olhos se fecharam ao meu toque - Me deixe falar, sim? Porque isso não vai ser fácil. Eu te amo. Te amo como nunca amei ninguém e com certeza nunca mais amarei alguém dessa forma... Eu preciso que entenda minha decisão... Eu não posso arriscar te ver machucada, de novo... Talvez eu vá para Azkaban, talvez tenha um destino menos pior, mas você precisa me deixar arrumar isso. – fiz uma pausa, eu não iria aguentar - Eu vou voltar, e ainda vou te amar da mesma forma. Se for para ficarmos juntas, vamos ficar, de um jeito melhor, sim?  – a essa altura as lágrimas já escorriam de novo e eu não queria olhá-la nos olhos, pois sabia que iria fraquejar. Ela fez menção de que iria começar a dizer alguma coisa, mas encostei meus dedos em seus lábios, um gesto que implorava a sua compreensão. Dei um selinho longo, que mesmo ao meio de tantas lágrimas, conseguia ser doce. E conseguia ser amargo também. O gosto de uma despedida sempre era amargo. Corri em direção para a porta e caminhei até onde deveria caminhar, onde já estavam esperando para me mandar embora. Minha Luna ficara para trás, junto com ela o meu coração e a minha alma... Não conseguia sentir mais nada.


 


‘ Lithium, don't want to forget how it feels without
Lithium, I want to stay in love with my sorrow'


 

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