A Mansão Lestrange



—Capítulo 6—


A Mansão Lestrange


 


      


Menos de uma hora depois o vilarejo ganhou vida. Aldeões saiam de suas casas à pé, rumo à seus trabalhos ou ao mercado. Alguns simplesmente pegavam o jornal no jardim e voltavam para dentro de suas casas. Bicicletas e cavalos passavam constantemente pela rua.


Pedro observava todo o movimento por trás de uma pequena janela quadrada, no segundo andar de uma estalagem. Era um lugar pequeno e simples, bastante discreto. Tinha uma arquitetura antiga, lembrando uma construção medieval. O quarto era pequeno, com duas camas de solteiro, de madeira, e uma estante de frente para as camas, com uma televisão sobre ela.


—O que viemos fazer aqui se os Lestrange não estão aqui? —Perguntou Sophia, sentada na cama, encostada no espaldar, mudando lentamente os canais da TV, sem parar em nenhum canal especificamente.


—Eu vou tentar entrar na Mansão Lestrange. —Disse Pedro, olhando para uma garotinha que brincava com seu irmão na calçada do outro lado da rua, antes de fechar a cortina com um puxão único. —Deve haver informações por lá. Endereços, ordens, rascunhos. Qualquer coisa.


—Mas será que eles deixariam essas coisas para trás? —Murmurou Sophia, desligando a TV e levantando-se da cama, esticando o corpo para cima, estalando a coluna, antes de voltar-se para o primo. —A mansão deve ter um milhão de feitiços de proteção, no mínimo!


—Eu já tinha pensado nisso. —Disse Pedro, indo até a mochila e abrindo o bolso maior. Puxou a cesta com comida que Jinx havia dado à eles, pondo sobre a mesa. Sacou a varinha do bolso e apontou para ela. —Engorgio.


—E o que pensou em fazer? —Perguntou Sophia, aproximando-se com os braços cruzados sobre o peito, observando enquanto o primo distribuía duas fatias de pão de forma, pondo presunto e queijo entre elas, antes de dar uma generosa mordida.


—Quer um pedaço? —Disse Pedro, oferecendo o sanduiche para a prima. A garota balançou a cabeça negativamente, sem desviar o olhar do primo. —Bem...eu andei estudando algumas coisas no tempo que fiquei na mansão. Talvez eu consiga desarmar os feitiços de proteção.


—Esse “talvez” não te assusta? —Sophia sentou-se ao lado do primo e fitou ele com uma expressão preocupada. Pedro mastigou lentamente seu sanduiche, olhando para frente como se ponderasse o que a prima falava, antes de dar de ombros sutilmente.


—Provavelmente. Mas, pra ser sincero, tudo aqui me assusta. —Olhou para a prima por um instante antes de morder o sanduiche mais uma vez.


—Não seria humano se não tivesse medo. —Disse Sophia, rindo meio de lado, enquanto desviava o olhar para a cortina que fechava a janela. —Só espero que a Dorah não fique chateada.


—Dorah? —Murmurou Pedro, franzindo a testa de leve.


—É...Dorah...Dorah Lestrange...é uma amiga minha...você conheceu ela. Já bebemos juntos. —Disse Sophia, fazendo um gesto com a mão, como se quisesse indicar muito tempo atrás. —Fico pensando se ela está em casa.


—A casa está vazia, não precisa se preocupar. —Murmurou Pedro, jogando o resto do sanduiche para dentro da boca e mastigando antes de voltar a falar. —Soh, se não fosse pedir muito, será que você pode ficar aqui?


—Sentada? —Disse Sophia, franzindo a testa sem entender. —Claro, mas...por que?


—Não sentada. Digo...ficar aqui...no quarto... —Começou Pedro, parecendo bastante atrapalhado com as palavras.


—Ah. Sim. —Disse Sophia, cruzando os braço sobre o peito, com uma amargura súbita em sua voz. —Você também.


—Eu o que? —Perguntou Pedro, coçando a nuca, olhando confuso para a prima.


—Você também acha que eu só atrapalho. Que eu sou uma inútil. —Prosseguiu Sophia, ainda com aquela amargura na voz. —A ovelha negra Sophia. Só sabe beber e causar problemas.


—Não! Não é nada disso! —Apressou-se em dizer o garoto, sentando novamente ao lado da prima. —Você sabe que eu não penso isso de você, Soh.


—Então me deixe ir! —Disse Sophia, um tanto exasperada. —Eu não sou inútil! Eu sou tão Ravenclaw quanto você!


—Eu não posso arriscar que algo aconteça com você... —Começou Pedro, medindo bem cada palavra. —por minha causa. Pela minha vingança.


Sophia encarou o primo por um instante, parecendo ponderar as palavras dele. Por fim, suspirou parecendo resignada. Debruçou-se sobre a mesa e inclinou na direção dele.


—Eu não me importo. —Murmurou convicta, antes de levantar-se da cadeira.


Pedro ficou olhando para onde a prima estava, parecendo envolvido num conflito mental. Não podia negar que Sophia era uma excelente bruxa e, com certeza, seria uma grande ajuda. Por outro lado, se algo desse errado, ele poderia colocar a vida de sua prima em risco por SUA vingança.


—Colocar sua vida em risco não vai te deixar mais perto dele, Sophia. —Murmurou Pedro, num tom de voz meio seco. A garota parou com a mão na maçaneta do quarto, um passo em suspenso. —Nem trazer-lo de volta.


O silêncio que caiu entre os dois era carregado de uma tensão que não seria surpresa ver descargas elétricas surgindo nos cantos do quarto. Sophia agarrou a maçaneta com mais força, o braço tremendo de leve. Depois de quase um minuto parada, abriu a porta com força e bateu-a ainda mais forte. Pedro ficou olhando para onde a prima fora, antes de desabar o corpo sobre os joelhos, apoiando a cabeça entre as mãos.


 


 


 


Já havia anoitecido quando Sophia voltou. Sem falar uma única palavra com o primo, pegou sua mochila, retirou uma muda de roupas e foi até o banheiro comunitário da estalagem. Pedro observou aquilo com certa ansiedade, como se esperasse que ela esquecesse a pequena discussão de horas atrás, antes de soltar um suspiro pesado, voltando aos pergaminhos.


O vilarejo, à noite, era realmente pacato. As luzes dos lampiões iluminavam as ruas com uma claridade branca aconchegante. As famílias se recolhiam em suas casas, sentando todos em frente à TV enquanto devoravam seus jantares. Um grupo ou outro de adolescentes passava andando de skate ou sentava na praça, conversando de forma animada.


Não muito ao longe, menos de um quilometro do vilarejo, podia avistar a enorme forma negra, recortada contra a luz da lua, da enorme Mansão Lestrange. Assim como ele esperava, não havia luz nas janelas ou movimentação. A casa seguia no mais completo silêncio, como um gigante adormecido.


Uma série de feitiços protegia a Mansão Lestrange. Desde feitiços para esconder-la dos trouxas ou para tornar-la imapeavel, quanto feitiços ofensivos, que poderiam causar imensa dor ao invasor. A grande maioria se localizava no imenso jardim. A cabeça de uma esfinge protegia à porta para o Hall principal e só deixava passar quem respondesse um enigma.


Dentro da casa era o problema. Nenhum Auror atreveu-se à entrar na Mansão Lestrange, mesmo durante o tempo em que Bellatrix e Rodolphus estiveram presos. Se a parte de dentro era guardada de alguma forma, só havia uma maneira de descobrir...


O rangido da porta abrindo-se mais uma vez chamou sua atenção. Por um instante considerou em não erguer o olhar. Sabia que era sua prima. Mas, depois de toda a discussão de antes, achou que poderia soar como desprezo. Ergueu lentamente o olhar, com as sobrancelhas ligeiramente erguidas. Sophia estava de costas para ele, apoiando a mochila em uma de suas pernas enquanto procurava alguma coisa em meio à seus pertences. Seus cabelos estavam ligeiramente molhados, caindo de qualquer maneira sobre os ombros.


—Estão oferecendo um jantar lá em baixo. —O comentário casual da garota sobressaltou Pedro. Olhou para as costas dela, meio sem reação por um instante, antes de murmurar de volta.


—Não estou com muita fome. —Encolheu os ombros, antes de recolher todos os pergaminhos com um aceno simples da varinha. Abriu a mochila com uma mão e apontou a varinha para o lado de dentro, fazendo os documentos se acomodarem rapidamente dentro.


—Não queria ter que descer sozinha. —Disse Sophia, com um tom displicente. Pegou uma escova em meio à suas roupas e começou a pentear os cabelos distraidamente. —Não sabemos o tempo que vamos ficar aqui. Vamos parecer dois psicopatas se ficarmos trancados nesse quarto o tempo todo.


Pedro franziu a testa e ficou encarando as costas da prima com um ar pensativo. Ponderava bem suas palavras. Não queria envolvimento com outras pessoas. Não queria ter que deixar rastros. Por outro lado, ficar trancafiado no quarto ia levantar suspeitas. E se, por acaso precisasse, precisasse voltar mais de uma vez até a mansão Lestrange, seria melhor permanecer incólume.


—Você tem razão. —Murmurou Pedro. Apoiou as mãos nos joelhos e levantou-se. —E o que pode haver de mal num jantar?


 


 


 


O térreo da estalagem era um bar bastante movimentado. A arquitetura simples e um tanto medieval mantinha-se ali, lembrando bastante um bar temático. A única coisa que destoava do ambiente era a televisão que pendia do teto, presa por ferros e o grande fogão industrial visível por trás do balcão.


As pessoas, a grande maioria eram turistas ou trabalhadores cansados, sentavam-se ao redor das mesas, olhando atentamente para o jogo de futebol, fazendo comentários ocasionais com seus companheiros, bebendo cerveja em grandes canecos.


Pedro estava sentado de costas para a TV e de frente para a prima. Diante dos dois, uma grande travessa com carne frita e batatas. Pratos menores estavam mais próximos à eles, ladeadas por duas grandes canecas de cerveja.


—Então... —Disse Sophia, um pouco alto para tentar sobressair-se à barulheira geral enquanto torcedores exaltados bradavam seus gritos de guerra. Cortou um pedaço da carne e colocou no próprio quarto, puxando algumas batatas com a faca. —quando pretende ir à Mansão?


—Amanhã... —Disse Pedro, num tom meio vago, enquanto espetava uma batata com o garfo, comendo distraidamente. —pela manhã. Não quero arriscar ser surpreendido à noite.


—Faz sentido. —Murmurou Sophia, mexendo distraidamente na comida.


Pedro ficou encarando a prima, sem também tocar na comida. A briga que tiveram mais cedo rolava diante dos seus olhos, como uma cena projetada na tela de um cinema. Por fim, deixou um suspiro escapar por entre seus lábios e pousou os talheres sobre a mesa.


—Eu quero que você venha me ajudar. —Murmurou seriamente, abaixando um pouco as sobrancelhas. Sophia ergueu o olhar até ele, ligeiramente confusa. Pedro quase podia ver o grande ponto de interrogação sobre sua cabeça. —Você tem razão em tudo o que disse. O sangue de Rowena corre tanto em minhas veias quanto nas suas. Eu só...


—Teve medo de eu estragar tudo. —Concluiu Sophia, fazendo um gesto com a mão. —É natural. Nunca dei motivos para ninguém confiar em mim.


—...tive medo de você se machucar por minha culpa. —Terminou Pedro, abaixando um pouco mais as sobrancelhas. —Essa vingança é minha. E eu me sentiria péssimo se alguma outra pessoa se machucasse por uma obsessão minha.


Sophia ergueu o olhar e fitou o primo, parecendo ligeiramente desconcertada. Desviou o olhar para a mesa e mexeu no cabelo, sem jeito, evitando o olhar do primo. Pigarreou suavemente antes de beber um gole demorado da cerveja.


—Você também não estava errado. —Murmurou Sophia, sem olhar para o primo. Foi a vez de Pedro fitar a prima, com um ar de curiosidade. —Eu meio que...tento me meter em situações assim...como se isso fosse me deixar mais próxima à ele.


O garoto inclinou a cabeça meio para o lado e tentou lançar um olhar compreensivo em direção à prima. Esticou a mão e colocou sobre a dela, como se quisesse passar algum conforto.


O momento fraternal foi interrompido por um grito de gol que estremeceu o bar enquanto os torcedores entusiasmados comemoravam à plenos pulmões.


 


 


 


O dia nem bem amanhecia e duas figuras já eram vistas caminhando pela longa estrada de terra, ladeada por uma grama alta. Os dois se encolhiam em baixo dos pesados casacos que usavam devido ao intenso frio naquele inicio de manhã.


A cada passo que davam, o pequeno vilarejo ia tornando-se uma mancha borrada em meio à nevoa que cobria o local. Diante deles ia agigantando-se o grande edifício que formava a Mansão Lestrange.


—Onde começam os feitiços de proteção? —Perguntou Sophia, encolhendo-se ainda mais dentro do pesado casaco.


—No portão. Uma série de feitiços de alarme. —Murmurou Pedro, soprando uma nuvem de ar condensado por entre os lábios. Apesar disso tudo, não parecia sentir tanto frio quanto à prima. —Depois alguns feitiços defensivos nos jardins. E o enigma na porta.


—E do lado de dentro? —Sophia virou o olhar e fitou o primo com as sobrancelhas erguidas.


Pedro permaneceu em silêncio por um bom tempo. Seu olhar era fixo na  por enorme mansão que crescia lentamente por trás da densa névoa, ganhando contornos mais definidos. Encolheu-se mais dentro da capa e quando falou sua voz soou um tanto sombria.


—Não sei. Ninguém teve coragem de entrar mesmo depois da prisão dos Lestrange.


Sophia ainda olhou para o primo por um instante, antes de voltar a olhar para o edifício que formava a grande Mansão Lestrange. Uma grande muralha de pedra negra, coberta por uma hera densa cercava a construção. Alguns minutos depois e a névoa já havia dissipado-se o suficiente para poderem divisar o imponente portão de ferro com lanças bem afiadas em seu topo.


Venceram os últimos metros no mais completo silêncio. O sol já erguia-se à suas costas e a névoa e o frio haviam sumido, de modo que, ao parar diante do grande portão, já não usavam os pesados casacos e capas.


Por trás das grades que compunham o portão, podiam ver a mansão. Suas paredes de pedra negra erguiam-se imponentemente. Parecia um gigante adormecido e bastante ameaçador. Uma espécie de fosso separava a casa do restante do terreno, ligando-se apenas por uma ponte de madeira. O restante do terreno era composto por árvores de aparência antiga, com suas copas altas e largas, formando uma espécie de bosque. Entre ás árvores haviam estatuas,bustos e fontes do mais puro ônix.


—Muito bem. —Murmurou Pedro, tirando a mochila das costas e pondo no chão. Como se fosse iniciar um pesado trabalho braçal, arregaçou as mangas e puxou a varinha do bolso interno das vestes.


Sophia sentou-se no chão e esperou. Durante quase uma hora Pedro fiou de frente para o portão, murmurando feitiços. As vezes, quando fazia um movimento mais brusco com a varinha, Sophia levantava-se atenta, mas ele logo retornava aos murmúrios.


Passava das sete quando, por fim, Pedro largou-se ao lado da prima. Sophia puxou um sanduiche da mochila e passou para ele, que aceitou sem cerimônias.


—Acho que consegui. —Murmurou Pedro, entre uma mordida e outra.


—E depois do portão? —Perguntou Sophia, abraçando as pernas junto ao corpo enquanto observava o primo comer.


—Tem o jardim. —Disse Pedro, indicando a casa com um movimento de cabeça. —As árvores exalam uma substância mágica que confunde a mente, ativa o sistema límbico e cria uma ilusão prazerosa para atrair sua vitima.


—Vai demorar muito para desarmar esse ou vamos chegar na mansão antes do almoço? —Perguntou Sophia, com uma leve nota de ironia em sua voz.


—Não. —Respondeu simplesmente o garoto, olhando a prima com as sobrancelhas erguidas. —Não tem como desarmar.


—E como vamos atravessar? —Perguntou Sophia, parecendo um tanto surpresa.


—Temos que manter a mente focada. —Pedro olhou para a prima mais sério do que nunca. —Nossa cabeça vai mostrar exatamente o que queremos ver. Nosso desejo mais intenso, o que nos deixaria mais feliz.


A intensidade do olhar do primo fez Sophia abaixar o próprio. Sabia o que ele estava pensando. Mordeu o lábio inferior antes de jogar os cabelos para trás, tentando mostrar-se indiferente.


—Não se preocupe. Eu já entendi.


Pedro permaneceu olhando para Sophia por quase um minuto, antes de apoiar as mãos nos joelhos e levantar-se. Bateu o pó da roupa e pegou a mochila, jogando-a sobre os ombros. Parou de frente ao portão fechado e apontou a varinha para o grande brasão da família Lestrange talhado no meio.


Alohomora! —E, com um clique e um rangido alto, o portão foi abrindo-se.


Os dois trocaram um breve olhar antes de atravessarem o grande portão.


Do lado de dentro, o calor que começava a aumentar do lado de fora era substituído por um frescor primaveril. Uma brisa gostosa sacudia a copa das árvores suavemente, fazendo-as balançar e estalar alegremente. Aqui e ali algum animal silvestre passava por entre as raízes das árvores, sumindo rapidamente entre as sombras.


O caminho era curto. Não devia ter mais de duzentos metros, mas o efeito causado pelas sombras fazia o bosque parecer maior do que realmente era.


Tentando não olhar para os lados, Pedro seguiu a trilha. Sentia sua cabeça mais leve e uma sonolência gostosa apoderar-se de seu corpo, junto com uma sensação de topor, semelhante à de um forte porre.


“Só mais um pouco...” forçava-se à pensar, cada vez que passava por um convidativo pedaço de grama, perfeito para uma boa soneca.


O estalar de um galho chamou sua atenção. Virou-se bruscamente para o lado, a varinha já apontada para frente.


—Pedro? —Murmurou uma voz doce e melodiosa. Pertencia à uma bela mulher de seus trinta anos, cabelos castanhos e olhos incrivelmente familiares. Olhava com uma curiosidade que chegava a misturar-se com um estarrecimento. —O que está acontecendo aqui?


Com o queixo ligeiramente caído, Pedro abaixou a varinha lentamente. A mulher aproximou-se em passos lentos e cuidadosos, quase que sem fazer barulho.


—Vamos, meu filho. —Murmurou Selene Ravenclaw, docemente. Passou a mão suavemente pelo rosto do garoto. —Vamos para casa.


E envolveu-o num abraço carinhoso. Pedro permanecia estarrecido, sem reação. Sua mãe apertava cada vez mais aquele abraço, enquanto, lentamente, ia puxando ele para onde ela viera. Sentia cada vez mais a cabeça leve e o peito pesado. Uma névoa já se formava em sua mente...


—Não! —Bradou o garoto, afastando-se bruscamente dos braços da mãe.


—Pedro! —Exclamou Selene, horrorizada. —Não me desobedeça!


—Não ouse usar a imagem da minha mãe. —Disse Pedro, uma cólera crescente, subindo desde seu peito até sua garganta.


—Do que você está falando? —Perguntou Selene, ligeiramente zangada. Adiantou-se em sua direção mais uma vez, esticando o braço para segurar o dele. —Vamos, deixe de besteiras!


Antes que a mão de Selene tocasse seu braço, o garoto puxou a espada que estava em sua bainha. Sentiu um aperto no peito ao ouvir o grito horripilante de sua mãe, quando seu braço decepado caiu com um baque surdo no chão. Porém, soube que estava fazendo a coisa certa quando viu o braço ganhar os contornos de uma raiz.


—Me perdoe mamãe. —Murmurou Pedro, antes de erguer a espada. Deixou a ponta espetar seu dedo e o sangue percorrer lentamente a lâmina que emitiu um brilho azulado. Girou-a no ar antes de descer a lâmina com força na direção do chão.


Um forte deslocamento de ar disparou da lâmina e cortou a imagem de Selene ao meio. Antes mesmo que as duas metades de seu corpo caíssem no chão, o rosto apavorado tornou-se a mais pura madeira. Logo, restava no chão apenas o que antes eram as raízes e uma das árvores.


—Essa foi por pouco. —Murmurou Pedro, aliviado, apoiando a espada no chão e apoiando o próprio peso sobre ela. Ficou um instante ali, sentindo-se um tanto orgulhoso de si, quando algo estalou em sua mente. —Sophia!


Olhou em todas as direções na tentativa de achar a prima, mas não encontrou-a em canto nenhum. Atravessou os arbustos num único pulo e voltou à estrada.


Ainda nenhum sinal dela. Sentindo um aperto doloroso no peito, começou a fazer o caminho inverso. Tentava lembrar o exato momento onde começara a perder noção do que acontecia ao seu redor, mas tudo não parecia passar de um borrão difuso que confundia-se em sua mente.


—Sophia!! —Gritou Pedro, na esperança de que a garota ainda pudesse lhe ouvir. —Sophia!!


Parou ofegante entre duas grandes árvores, girando o corpo em todas as direções. Não havia sinal dela. Nem um rastro, nem pegadas. A adrenalina que corria em suas veias encarregava-se de não deixar sua mente entorpecer novamente.


O arrastar de folhas vindo de sua esquerda chamou sua atenção. Num salto rápido, atravessou novamente os arbustos e começou a correr por entre as árvores. Usava os braços e a espada para proteger-se dos galhinhos que se colocavam de frente para ele, como se quisessem impedir que ele chegasse.


Por fim, com o rosto bastante arranhado e sujo, chegou à uma grande clareira. A luz do sol incidia no local de uma maneira quase mágica. Sophia estava parada no meio da clareira. Seu olhar era vago, assim como o sorriso em seu rosto. Raízes e galhos das árvores se esticavam na direção dela, envolvendo seus pulsos e tornozelos, mas ela não parecia ligar para isso. Na verdade esticava a mão na direção de um galho, como se tentasse segurar uma mão.


—Não, Soh!! —Gritou Pedro, correndo em sua direção. Parou ao seu lado e desceu a espada fortemente sobre os galhos que se partiram. A parte ligada à árvore retorceu-se antes de retornar às sombras.


—Não... —Balbuciou Sophia, esticando a mão para o nada, como se ainda tentasse alcançar algo. —Não...Josh...o que você fez? Cadê  Josh?!


—Soh...calma...era tudo uma ilusão. —Disse Pedro, tentando acalmar a prima.


—O QUE VOCÊ FEZ COM O JOSH?! —Gritou Sophia, partindo contra o primo.


Largando a espada no chão, Pedro ergueu os braços para segurar os braços da prima que tentava socar cada parte que pudesse alcançar.


—Soh...Soh...calma...me escuta... —Tentava argumentar o garoto entre as investidas da prima. —Me escuta!! —E com esse grito, conseguiu a atenção dela para si. —Soh...não era o Josh...era apenas uma ilusão.


Sophia olhou estarrecida para o primo, como se estivesse vivendo em uma mentira por anos e finalmente alguém lhe contara a verdade. A luz voltou à seus olhos opacos, como se tivesse sido tirada de um transe profundo. Viu a tristeza e a agonia em seus olhos antes de abraçar-la.


—Eu sinto muito...


 


 


 


Era um pouco mais de oito e meia quando saíram do bosque. O sol agora refletia sua luz num lago de água bastante cristalina. Uma elegante ponte de madeira servia de passagem, ligando o jardim à imensa mansão que se erguia imponente diante deles. De perto, o edifício parecia ainda maior e mais intimidante. Suas grandes janelas estavam fechadas e vedadas por grossas cortinas negras.


—E agora? —Disse Sophia, o olhar fixo nas grandes portas do outro lado da ponte.


—Logo vamos saber. —Murmurou Pedro, olhando na mesma direção que ela.


Trocaram um breve olhar receoso antes de voltar a olhar para a porta. Com um pesado suspiro, Pedro adiantou-se, a varinha em mãos, enquanto a outra mão segurava firmemente o cabo da espada. Ergueu o pé e colocou-o lentamente sobre a ponte, com medo que ela talvez desabasse.


Um silêncio tenso pairou sobre eles como uma nuvem de tempestade. Sophia tinha as sobrancelhas ligeiramente erguidas, com uma expectativa queimando em seu peito, fazendo seu coração bater mais forte.


—Bem...acho que esse falhou. —Murmurou Pedro, com um sorriso meio receoso. —Acho que podem...


Mas antes que pudesse concluir a frase, um forte golpe atingiu seu peito, lançando-o ao chão. Caiu aos pés de Sophia, sentindo o peito pesado e uma ligeira falta de ar.


—Mas o que diabos...? —Ofegou enquanto arrastava-se para trás. Sophia ajudou-o a levantar, o olhar fixo à frente.


Materializando-se lentamente à frente deles, como se estivesse sendo formado por uma poeira colorida, um enorme cavaleiro com armadura negra e o rosto oculto por um elmo que não possuía abertura para os olhos ou para respirar. Carregava em uma das mãos um bastão com uma pesada bola espinhada preso à ele por uma corrente. Girava-o habilmente na mão, como se não tivesse peso algum.


— Argh. —Resmungou Pedro, ainda passando a mão pelo peito. —Odeio estar enganado.


O grande cavaleiro seguiu olhando para eles, postando-se diante deles de modo a tampar toda a passagem. Pedro entregou à varinha para Sophia e puxou a espada da bainha, posicionando-a diante do corpo.


—Se me acontecer alguma coisa. —Murmurou o garoto, com um ar ligeiramente irônico. —Corra.


—Pare de falar besteira. —Disse Sophia, empurrando o ombro do primo de leve. —Você vai voltar inteiro.


Com uma risada tão irônica quanto sua voz, Pedro novamente avançou até a ponte. Parou diante do cavaleiro que posicionou a massa em posição de combate.


—Está com fome? —Murmurou Pedro para a espada, enquanto espetava mais uma vez a ponta do dedo. Deixou a lamina absorver seu sangue antes de brilhar intensamente. Afastou a ponta do dedo enquanto, lentamente, o corte ia sumindo envolto por aquela aura alaranjada.


Abaixou a espada lentamente, apoiando a ponta no chão. Ficou um instante encarando o elmo negro e brilhante do cavaleiro antes de, num movimento rápido, golpear o ar de cima para baixo.


O forte deslocamento de ar partiu da espada na direção do cavaleiro, despedaçando parte da ponte. O cavaleiro esticou a mão para frente e segurou o ataque, sendo arrastado um pouco para trás. O suficiente para Pedro ter espaço para subir na ponte.


—Engole ferro, fantasia de dia das bruxas! —Exclamou Pedro, girando um golpe rápido contra o elmo do cavaleiro.


O impacto da lamina contra o capacete emitiu um tilintar alto que espalhou-se pelo local como o badalar de um sino. O corpo do cavaleiro pendeu ligeiramente para o lado com o golpe. Toda sua armadura rangeu quando ele deu dois passos para trás. Pedro saltou para o lado, satisfeito.


Mas antes que pudesse comemorar, o cavaleiro girou rapidamente e acertou o braço em seu ombro. Sentiu o corpo girar no próprio eixo antes de cair para o lado, a cabeça para o lado de fora da ponte. A vista ainda um pouco zonza pelo golpe, via seu próprio reflexo um pouco distorcido e fora de foco logo à sua frente.


Quando já começava a apoiar o corpo para levantar-se, sentiu uma mão forte segurando sua cabeça, como uma garra pegando um brinquedo numa máquina. Girou, fazendo encara, novamente, a própria imagem refletida no elmo negro. Podia sentir as ondas maldosas emanando por seu corpo, quase na personificação de um sorriso tenebroso.


A massa ergueu-se no ar pesadamente, fazendo sua corrente tilintar e logo iniciou o movimento de descida em direção à sua cabeça. Pedro fechou os olhos e virou um pouco o rosto, como se quisesse desviar o máximo que pudesse do impacto.


Estupefaça!! —Gritou uma voz logo atrás deles. Um jorro de luzes vermelhas explodiu na armadura negra e reluzente, espalhando fagulhas para todos os lados.


A armadura negra não tombou de borco como aconteceria com uma pessoa normal. Mas ao menos tirou a atenção dele. O enorme cavaleiro abaixou a massa e virou para encarar Sophia, que estava parada um pouco atrás deles, segurando firmemente a varinha na mão direita, apontando para o cavaleiro. Depois do que pareceram dois minutos de confusão, a armadura prendeu a massa ao cinto e começou a andar na direção dela, a mão livre estendida em sua direção.


—Ah, pensa Sophia, pensa. —Murmurava a garota para si, dando passos para trás, as vezes tropeçando em algumas pedras soltas no terreno.


Por ter pernas maiores, o cavaleiro aproximava-se dela mais rápido do que ela conseguia se afastar. Os dedos dele já quase tocavam seu rosto, quando sentiu algo empurrar-la pela barriga, fazendo-a cair.


Pedro havia empurrado-a com o pé, tirando-a do alcance temporário do cavaleiro. Num movimento rápido, aproveitando-se de sua surpresa, pegou impulso e prendeu-se em seu braço, como se fosse uma preguiça.


—Eu cheguei longe de mais pra ser atrapalhado por uma ilusão mal feita como você! —E, girando em torno do braço dele, livrando-se da mão dele, acertou o pé no lado do elmo, que deslocou para o lado. Sem esperar o revide, girou outra vez, dando um chute mais forte, fazendo o elmo voar, caindo pesadamente no lago.


Como já se esperava, não havia cavaleiro por baixo da armadura. Ainda assim, ao perder o elmo, a pesada armadura cambaleou para trás. Pedro saltou para o chão e observou enquanto o cavaleiro cambaleava na direção do lago.


Porém, antes que atravessasse o batente e caísse na água, a armadura aprumou-se. Ignorando o fato de estar sem cabeça, virou na direção de Pedro mais uma vez. Pegou a massa no cinto e girou-o no ar novamente, correndo na direção do garoto.


Riddikulus!


Com um “puf” seco, a enorme armadura deu lugar à um palhaço sem cabeça, montado num monociclo. Pedalando descontroladamente, foi em zigue-zague até cair no lago, sumindo numa nuvem de fumaça.


Pedro permaneceu parado, olhando para frente, o queixo caído do choque. Seus olhos piscavam constantemente, como se não acreditasse – ou apenas não entendesse – o que havia acontecido.


—Quando você falou em ilusão... —Murmurou Sophia, aproximando-se lentamente dele, guardando a varinha no bolso da calça. —eu lembrei do bicho-papão e...bem...resolvi arriscar...


—Um bicho papão... —Murmurou Pedro, ainda estarrecido, sem olhar para a prima. —e domesticado pelo visto...


—Essa família é bizarra. —Disse Sophia. —Que a Dorah me perdoe por isso.


Pedro riu de leve e olhou para a prima. Abraçou-a de lado, murmurando um “obrigado” antes de afastar-se. Ficou olhando para a ponte parcialmente destruída, antes de começar a subir lentamente para cruzar a ponte.


—O que vai fazer quando entrar na mansão? —Perguntou Sophia, olhando o primo de canto, com curiosidade.


—Eu não sei ainda... —Admitiu Pedro, o olhar fixo na porta à frente.


A garota seguiu fitando o primo com um questionamento mudo dançando em seus olhos. Pedro seguia olhando para frente, sentindo um nervosismo que descia de seu peito, tornando-se borboletas em seu estomago.


A porta da mansão era imensa. Devia ter uns sete metros, feita de madeira escura, com detalhes metálicos. Um pesado puxador posicionava-se justamente no meio. Tinha o formato de um rosto humano, envolto por uma coroa faraônica.


Pedro encarou o rosto da esfinge demoradamente, como se os olhos lisos e metálicos possuíssem vida. Sentia um aperto no peito que parecia jogar todo o fluxo sanguineo em seu corpo, rapidamente. Olhou para o lado, como se buscasse o apoio da prima, antes de voltar o olhar para frente. Ergueu a mão lentamente e bateu três vezes com força.


 

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