Ruídos



Ruídos


 


            A densa fumaça de cigarros baratos se espalhava por todo o ambiente, como peças de decoração fantasmagóricas.A música ecoava alta e abafada nas paredes do pequeno café, que à noite travestia-se de casa de shows.


           


            Todo esse ambiente enevoado me subia em um arrepio pela espinha.As lembranças atropelavam meu juízo e razão.


           


            Todas aquelas pessoas se apertando e dançando ensandecidas davam uma saudade imensa.


           


             Mas era uma saudade diferente, uma saudade do que poderíamos ter sido.Só nós dois, usando os velhos e desbotados jeans, jaquetas de couro e camisetas de algodão. Você, com um sorriso na boca e dois dedos de sacanagem no olhar. Você e seus dedos, sempre zombando do meu auto-controle.E essa sua voz, que me dizia coisinhas bobas e bonitas, e que me cantava canções de ninar às avessas, porque éramos jovens e acreditávamos que dormir era morrer aos poucos, e não queríamos morrer. Queríamos permanecer acordados para entender que tudo era mais do que um sonho.


           


            Ah, o tempo!


 


            O tempo elucidava o que eu não queria ver. Todo esse tempo confirmou meu pior temor, o de que eu me tornaria passado. Passado feito,cumprido e apagado. Passado morto.


 


            Faziam treze anos desde a última vez que ouvi você cantando.Me lembro vagamente da melodia: era doce, açucarada, falava de amor e balinhas drops. Você me prometeu uma música nova, que havia composto para mim.E eu aguardei.


 


            Aquela noite veio com gritos, lágrimas e imprecações. Mas a minha música não veio.


 


            No princípio, eu vinha todos os dias aqui, acreditando que você viria cantar a minha música. Eu acreditava mais na sua palavra do que nas circunstâncias. E não importava o quão preso você estivesse.Você viria cantar para mim.


 


            No fim, eu passei a vir menos frequentemente. Você nunca veio. Mas hoje eu sabia que você viria.


 


            Saiu no Profeta Diário, em letras escandalosas, que você havia fugido de Azkaban. E não importa o que você tenha a fazer ou o grau de insanidade no qual se encontre .Eu sei que você vai se lembrar que me deve um pequeno pedaço de melodia.


 


            Um sujeito de feições árabes, com longas barbas e olhar cansado sobe no placo com seu violão e já nos primeiros acordes eu sei que meu momento chegou.


 


            Por trás de toda aquela barba e trajes muçulmanos, eu reconhecia Sirius. Seus olhos azuis, mesmo que opacos, sempre te trairiam. Ou talvez fosse sua boca, que desenhava aquele seu sorriso de anjo torturado.Sim, era meu sorriso preferido, talvez pelo fato de que ele sustentasse um pouco de liberdade e um pouco de maldade, ou porque revelasse seu lado dubiamente sombrio e passional.


 


            Seus dedos dedilhavam o violão fervorosamente e você parecia dominado por um desvario, como se acreditasse poder arrancar mais do que notas musicais do velho violão.


 


            Internamente, eu sonhava que fosse eu quem você queria arrancar das cordas, com as mãos ásperas.


 


            Cada nota me lembrava um momento.


 


            Cada célula do meu corpo buscava você.


 


            Sua voz melodiosa me arrancou dos meus devaneios. E cada verso me remetia a uma lembrança.


 


            There was a time


            I had nothing to give


 


          -Havia um tempo em que eu não tinha nada para dar. –eu me lembrava do dia em que Sirius me dissera isso. Ele se referia aos tempos na mui nobre casa dos Black.


E naquela época eu apenas assenti, pondo a mão por sobre seus ombros retesados e afirmei, risonha, que ele só precisava me dar a mão e assim nós daríamos um passo e depois outro, e depois do outro, o próximo passo, até que estivéssemos preparados para dar nossos corações um ao outro.


 


            I needed shelter from the storm I was in


 


            Nós dois caminhávamos apertados em um guarda-chuva xadrez sob a chuvosa Londres.


 


            Sirius havia atirado no chão o Profeta Diário, onde as manchetes sobre um novo ataque de comensais, liderado por Regulus Black, eram apagadas pela água.


 


            Sutilmente, Sirius tomou uma das minhas mãos e beijou o nó esbranquiçado dos meus dedos.E as palavras pareciam doer para saírem em um sussurro: Eu preciso de um abrigo contra essa tempestade.


 


            Eu olhei,sem entender, para o guarda-chuva.E ele sorriu um sorriso torto, dizendo:


 


            -Não essa tempestade. –seus olhos focalizaram a notícia do jornal e eu entendi que Sirius falava daqueles tempos,da guerra, de Regulus...


 


            -Bem...Eu só posso oferecer meu coração. Se você quiser se esconder nele...


 


            -Não seria um incômodo?


 


            -Ele já é seu, de todo modo.


 


            Esse foi o último dos passos.O indício de que estávamos prontos para amar.


 


            And when it all got too heavy


            You carried my weight


 


            A notícia veio dolorosa e frustrante.


Frank e Alice. Bellatrix os havia torturado até a insanidade. Sirius mal pode conter a sua magia que fluiu espontaneamente, estourando todas a vidraria da casa.Ali, no meio dos cacos, a guerra pareceu terrivelmente próxima.Ali, eu me dei conta de que não éramos tão imortais quanto pensávamos.Foi precisamente naquele momento que mais desejei não ter amigos tão bons,porque os bons se vão cedo.


            And I want to hold you


            And I want to say


            That you’re all I need


 


Era o dia do casamento do James e da Lil. Sirius estava em elegantes vestes cinzas. Ele ergueu-se e começou seu discurso de padrinho:


 


            -Bem...Eu nunca acreditei em vocês.Cheguei a apostar que Prongs nunca conseguiria levar a ruivinha para um encontro. Na verdade, o único que apostou em vocês foi Moony, que ganhou uma bolada. Mas hoje eu vejo que vocês são perfeitos um para o outro.Lil, sempre cortando a onda do Prongs e Jamesito sempre irritando a ruiva. Uma relação explosiva, se vocês querem saber. Mas é assim que o amor deve ser.


 


            Todos o aplaudiram, rindo. Sirius me puxou para perto dele, sussurrando em meu ouvido:


 


            -Hey Kinnon. Acho que eu realmente te amo.


 


Eu ri, perguntando:


 


            -Sério, garotão? Eu provoco explosões em você?


 


            Ele assentiu,dizendo “você é como fogo McKinnon . Fascina, dá vontade de segurar, se espalha por tudo, mas não se deixa prender.”


 


            -E talvez você seja meu combustível,Black. A razão pela qual eu ainda brilho. Tudo de que eu preciso.


 


Podia jurar ter visto o lampejo de uma lágrima em seu rosto.Mas ele logo se recompôs, e a malícia revestiu seu rosto.


 


            -Então, vamos nos consumir, babe.


 


 


            For you, I give my soul to keep


 


            Minhas lembranças desvaneceram.A realidade se chocou duramente sobre mim. Sirius estava ali, exposto, quando todos os dementadores procuravam por ele, salivando por um pedaço de sua alma.


 


            Sufoquei-me de medo e de consternação. Sirius arriscava sua vida para cantar a minha música, mesmo pensando que estou morta.


 


            You see me,love me


            Just the way I am


 


            As memórias voltaram a vir.Uma sobrepondo-se à outra. Elas pararam no dia que eu perguntei a ele porque ele me amava.


 


            -Eu te amo porque você vê mais do que o Black irresponsável e inconseqüente  em mim, mas não espera que eu salve o mundo ou me torne um santo. Porque você me ama quando eu acordo de mau humor e quando estou bêbado e não somente quando estou feliz e ordinariamente normal. Porque eu não tenho que me esforçar para ser outra pessoa perto de você. Porque você ri de um jeito idiota que torna tudo mais simples. Porque você passaria dias falando besteiras no meu ouvido para eu esquecer meu passado sombrio. E porque você é você demais para que eu consiga não te amar.


 


            I said you’re the reason


            For everything I do


 


            -Sirius Black! O que o senhor pensa que está fazendo?


 


Eu nunca havia visto a Tia Minnie tão brava em toda a minha história em Hogwarts.


 


            -Não é minha culpa professora.Quero dizer...A McKinnon falou que só sairia comigo quando a lula-gigante cantasse o hino de Hoggy. Eu só estava tentando faze-la cooperar com a minha vida amorosa.Nunca imaginei que a lula fosse ficar roxa.


 


Nós dois conseguimos uma detenção. E Sirius conseguiu um beijo e uma tapa.


 


            I’d be lost, so lost without you


 


Sirius disse, certa vez, que sem mim estaria perdido. Eternamente perdido.


 


E quando aqueles acontecimentos nos atropelaram, eu só pensava em um modo de ficar nele para sempre.Mas eu acabei fazendo tudo errado.


 


            Under the starts


            At the edge of the sea


 


Sétimo ano. Havíamos saído da Festa de Formatura. Sirius disse que tinha uma surpresa para mim. E na minha mente de adolescente apaixonada, eu sonhava secretamente que ele fosse me pedir em casamento.Mas foi melhor do que isso.


 


Na verdade, foi algo bobo. Mas Sirius sabia que eu gostava de coisinhas bobas e simbólicas.


 


Ele fez uma mesura exageradamente pomposa e me segurou. A boca em meus ouvidos cantando uma música qualquer, enquanto nossos pés dançavam descoordenados e sem ritmo.


 


            -Dizem que quem dança sob a Constelação do Cão Maior, na beira de um lago, fica junto para sempre.


 


            -Você inventou isso, né Six?


 


            -Talvez eu tenha inventado.Mas eu acredito nisso.Se você acreditar ,pode ser verdade.


 


            -Se a gente dançar duas vezes, será que a gente fica junto pelas próximas encarnações?


 


            -A gente pode tentar. – E ele me pegou nos braços e seguimos dançando até o nascer do sol.


 


            There’s no one around


            No one but you and me


 


            As coisas meio que deram muito errado naquela noite. Nos saímos apressados do café antes que você cantasse a minha música.Havia uma agitação em Godric’s Hollow.


James e Lil tinham sido assassinados. E eu queria não ter sido a única testemunha de que você não era quem os matara. Porque eu sou fraca e aceitei resignada sua ordem de que eu deveria desaparecer.


 


            We’d talk for hours


            As time drifts away


            I could stay here forever


            And hold you this way


 


Sirius acabou a música, pegou o violão e desceu do palco. Eu entrei em seu campo visual, sabendo que ele não poderia me reconhecer. Eu havia envelhecido, mudado a tonalidade e o corte do cabelo, colocado lentes de contato verdes e emagrecido consideravelmente. Além de que ele tinha certeza de que eu estava morta.


 


Eu me encaminhei para a Jukebox, nostálgica. Escolhi a minha música predileta. A que dizia o que eu sentia no momento. Segurei firmemente as lágrimas que se precipitaram quando os acordes de Spanish Guitar soaram no ambiente.


 


Tomei toda a coragem que passei reunindo nesses treze anos e me aproximei de Sirius, que sorria para todos, que queriam autógrafos e fotos. Ah, se eles soubessem quem ele realmente era... Eu abri caminho na multidão e segurei um de seus ombros.Ele olhou para trás. E nós ficamos assim. Ele, assustado. E eu, absorta em suas orbes azuis.


 


Ele me puxou para fora do café, esfregou as mãos e suspirou.


 


            -Você não pode ser você.


 


            -Você também não poderia ser você.Mas você está aqui não é mesmo? E eu também estou.


 


            -Mas eu fiquei sabendo que você estava morta.


 


            -E eu fiquei sabendo que você estava preso.


 


            -É totalmente diferente.


 


            -E toda a história das estrelas e do lago.Você não me disse que ficaríamos juntos para sempre?


 


            -Eu sou um bobo.


 


            -E eu, uma morta. Eu acreditei naquela historinha.


 


            - Eu também acreditava.Antes dos dementadores...


 


            -Bom...Eu tenho que te contar algo...E espero que você me perdoe.


 


            -Por fazer todos acreditarem que você estava morta?


 


            -Não.Por fazer você acreditar que eu estava morta.Não me importa o que os outros pensam.


 


            -Pode falar.Não que eu ache que você tenha uma desculpa convincente.Uma desculpa que me faça te perdoar por todos os anos que sofri, pensando que você havia sido assassinada com toda a sua família.


 


            -Six... Eu fui absurdamente egoísta. Mas eu não soube, no momento, como agir.. Eu fiquei sabendo que você havia sido levado para Azkaban. Você me fez prometer que não falaria que estava com você naquela noite e que você não era responsável pelas mortes de Lil e James.


 


            -Porque você seria considerada cúmplice, Kinnon.


           


            -Eu teria aceitado essa acusação para estar com você. Mas não é essa a questão. Eu sei que os dementadores sugam toda a felicidade das pessoas e todos os seus pensamentos e memórias felizes. E eu não queria que você me esquecesse Sirius. Eu não aceitava que você me perdesse, porque assim eu também perderia você. Por isso eu fingi que havia morrido com toda a minha família. Para que essa notícia chegasse a você. Porque os dementadores não conseguiriam tirar de você a minha imagem, a minha essência, se estas te causassem sofrimento. –eu abaixei o meu olhar. Não suportaria ver o desprezo nos olhos de Sirius.


 


Mas ele segurou meu rosto firmemente e o levantou.


 


            -Eu não te culpo. A propósito, você, James e Lil foram os motivos porque não enlouqueci. Porque eu sairia para me vingar pelas suas mortes. Mas agora que você não está tão morta como pensei que estivesse, as coisas parecem ter um sentido mínimo, porque antes elas não tinham sentido algum.


 


Meu coração palpitou. Ele me envolveu nos braços como quem pede uma dança.Meus pés se moveram, desconcertados. E eu sussurrei, com minha voz aguda e desafinada, em seu ouvido:


 


            -Sabe de uma coisa? Eu fiquei com uma puta inveja desse seu violão... – eu raspei minha unha cortada assimetricamente pela superfície gasta do instrumento.


           


            -Posso saber por quê?


 


            -Porque ele esteve em seus braços a noite toda.


 


Ele me sorriu um sorriso distorcido, um meio termo entre hedônico e sardônico.


 


            E subitamente eu estava no espaço das suas mãos. E sutilmente meu juízo me abandonava.


            Aquela noite se concluiu. Minha música, os dedos ágeis de Sirius, sem mortes nem celas frias e abandonadas.


 


            -Quer saber? Eu gostei e muito dessa música. –comentei casualmete.


 


            -A que eu compus para você?


 


            -Essa também... Mas especialmente essa outra...Da sua respiração contra meu ouvido.


 


            Ele sorriu e dessa vez eu vi um lampejo do sorriso na boca e dos dois dedos de sacanagem no olhar.


 

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