A última carta.



14. A última carta.


— Hermione! Aconteceu alguma coisa? O que faz aqui? Você nunca veio ao meu escritório...
— Papai, preciso falar com você.
— Mas, agora? Estou no meio do...
— Papai, eu nunca pedi nada para você. Estou pedindo agora.
— Bom, mas no domingo que vem...
— Não posso esperar pelo domingo, papai. Preciso de você já.
— Certo. Mas é que...
— Não pode me arranjar cinco minutos, papai?
— Oh, é claro que posso! Venha, filhinha. O trabalho pode esperar. Vamos até a lanchonete. Quer um suco? Um guaraná?
Só o pai falou, até chegarem à lanchonete. Mandou vir o suco de laranja que Hermione concordou em aceitar e pediu um conhaque, desculpando-se com o frio daquele fim de manhã.
— E então, minha filhinha? Você não devia estar na escola a uma hora dessas?
— Saí mais cedo, papai. Precisava falar com você.
— Oh, você sabe que pode contar comigo! E então? O que está havendo com a garotinha do papai?
— A sua garotinha já cresceu, papai. Cresceu sem nunca ter conversado com você.
— É... você sabe, eu e sua mãe...
— Mas agora eu preciso de você.
— Pois fale, meu amor. Sou todo seu, você sabe. Você sempre foi a queridinha do...
— Pare com esses diminutivos, papai. Por favor. Me trate como gente. Me trate como um ser humano!
— Oh, oh, minha querida está mesmo brava hoje. Mas eu vou lhe dizer o que fazer. Olhe!
Com um grande gesto, retirou a carteira do bolso. Pinçou teatralmente algumas notas, dobrou-as, pegou a mão de Hermione, colocou o dinheiro sobre a palma e fechou-lhe os dedos, mantendo sua mão a apertar o punho fechado da filha.
— Aí está. Eu entendo dessas coisas. Nada como uma tarde de compras para mudar o humor da minha garotinha. É um presente extra do papai. Procure uma loja bem elegante e compre alguma coisa bem bonita para você. Um vestido, ou um desses... desses blusões coloridos de que vocês tanto gostam. Ah, eu lhe garanto que vai sentir-se melhor! Ah, ah, nada como uma boa compra para tirar essas bobagens da cabeça da queridinha do papai. Está vendo? Eu também sei tratar você como gente grande, hein? Satisfeita?
Hermione olhava incrédula para o pai, procurando penetrar-lhe os pensamentos, como se tudo aquilo fosse um jogo prestes a acabar. O pai haveria de rir-se da brincadeira e depois ofereceria o ombro amigo que a filha viera buscar.
Nada disso, porém, aconteceu. O pai levantou-se, beijou-a apressadamente e jogou sobre o balcão o dinheiro para pagar a despesa.
— Agora eu preciso ir, filhinha. Foi ótimo você ter aparecido, mas o trabalho... você sabe, não é? Não vai tomar o suco?
— Não tenho vontade, papai.
— Então? Está mais aliviada, agora? - Hermione olhou o pai bem dentro dos olhos.
— Quer nota fiscal?
— Como? Não entendi...
— Nada, não, papai. Adeus.
— Tchau, filhota. Gostei da surpresa. Apareça outras vezes. Mas não vá cabular aula, hein? Olhe os estudos!

***


— Mas como, Hermione? Você não vai almoçar?
— Estou sem fome, mamãe. Tomei lanche na escola.
— Desse jeito você vai desaparecer. Vai ficar doente.
— Mamãe, hoje eu encontrei papai.
A mãe parou a colher de arroz entre o prato e a travessa.
— Seu pai? Mas hoje não é domingo!
— Foi um acaso, mamãe. Mas tome: ele lhe mandou isto. - E jogou as notas sobre a mesa.
— O que é isso?
— É dinheiro, mamãe. Ele disse que é um extra.
— Mas...
— Compre algo bonito com esse extra. Ele diz que faz bem. Você deve entender disso melhor do que eu.
Talvez, naquela tarde, a mãe melhorasse da enxaqueca.

***


— Boa noite, meu inimigo. Você sempre tem razão, não é?
A imagem rachada estava séria, rosto seco, sem uma lágrima.
— Aqui está. Está pronta a última carta de Gina para Draco.
— Como sabe que é a última?
— Eu digo que é a última.
— E depois?
— Depois... você me mostra o caminho.
O inimigo abriu-se revelando o armarinho de remédios. Vários vidrinhos, pílulas para enxaqueca, calmantes, estimulantes, comprimidos para o coração...
— Para o coração! Para o coração de Hermione, haverá algo? - Cuidadosamente, leu cada bula, cada recomendação, cada alerta sobre efeitos colaterais, sobre doses exageradas. Com decisão, escolheu um dos frascos e fechou o armário.
Lá estava de novo o inimigo. Olhando de frente, sorrindo com tristeza atrás da rachadura.
— A carta está pronta. Ouça. E não fale nada.

E o meu amado o que diria
Se eu partisse?
O que diria se estes versos
Não ouvisse?
O que teria em suas mãos
Senão um corpo dessangrado
Cheio de carne, de suspiros,
De delírio apaixonado?
Faltaria, porém, o recheio das idéias,
A loucura e a razão,
Que transforma um encontro sem graça
Em tremenda paixão!
Mas não tema o meu querido
Que esse amor desapareça,
Pois ele é amado ao mesmo tempo
Por um corpo e uma cabeça.
O corpo ele pode beijar, cheirar,
Fazer do corpo mulher.
Mas a cabeça o possui, manipula,
E faz dele o que quer!
Haja o que houver, do meu amor
Esse garoto foi o rei.
Digam a ele que com corpo e cabeça
Eu sempre o amarei.
A marca desta lágrima testemunha
Que eu o amei perdidamente.
Em suas mãos depositei a minha vida
E me entreguei completamente.
Assinei com minhas lágrimas
Cada verso que lhe dei,
Como se fossem confetes
De um carnaval que não brinquei.
Mas a cabeça apaixonada delirou
Foi farsante, vigarista, mascarada,
Foi amante, entregando-lhe outra amada,
Foi covarde que amando nunca amou!

***


A noite já caíra completamente quando Hermione voltou para casa. Enfiara a última carta por baixo da porta do apartamento de Draco. Agora, ela estava pronta.
O frio do começo de noite era cortante, e a menina apertou-se dentro da malhinha leve demais, apressando o passo em meio às sombras da rua mal-iluminada.
Mas uma das sombras não cedeu ao seu passo. Destacou-se, ao contrário, das outras e agarrou Hermione pelos braços.
— O quê?!
— Calada, menina. Não vai acontecer nada...
Gelada de surpresa e pavor, Hermione reconheceu o apertão, mesmo antes de erguer os olhos e deparar com aquela carranca assustadora:
— Brucutu!
E não era um sonho. E não viria um cavaleiro enlatado, de espada de prata, disposto a defender-lhe a honra. Aquela era apenas a realidade. Da qual nunca se acorda.
— Quietinha... Isso é só um aviso...
A cara brutal abria-se num esgar que pretendia ser um sorriso, enquanto as mãos enormes cravaram os dedos nos bracinhos de Hermione, no limite de quebrá-los como a um graveto.
— Um aviso, mocinha: tem gente que acha que viu coisas. Mas, vai ver, não viu nada, só quer causar confusão. E essa confusão pode prejudicar pessoas. Não é isso que você quer, é? Claro que não quer... Senão, o causador da confusão pode ficar muito mais prejudicado ainda, sabe? Pode até deixar de ver qualquer coisa... para sempre! Juízo... estou só avisando... Juízo! Senão...
Um carro entrou na rua cantando os pneus e jogou a luz dos faróis sobre os dois. Hermione sentiu-se empurrada e bateu contra um muro enquanto o agressor se encolhia. Em um instante, estava novamente sozinha.

***


Andou calmamente até sua casa. Não estava apavorada. Mas o ataque de Brucutu tinha significado muito mais que uma ameaça de morte. Significava que ela era mesmo uma testemunha importante. Alguém que podia desmascarar o assassino da diretora. Alguém que sabia demais. Alguém que tinha de morrer.
A mãe não estava em casa. Era a noite de jogar buraco com as amigas. Ultimamente, ela se enfeitava tanto para aquelas noites que, se Hermione não estivesse tão ocupada com o que tinha a fazer, pensaria que naquele jogo havia só um parceiro.
— Harry também corre perigo. Precisa ser avisado.
O telefone tocou demais, mas Harry não estava em casa. Tentou a livraria. Deixou recado.
— E agora? Adianta ligar para a polícia? Com quem eu falo? Vão dizer que estou louca...
Olhou para a janela fechada. Por um momento, pensou perceber o vulto enorme de Brucutu do outro lado dos batentes, pronto a estraçalhar os murros a veneziana.
— Pode vir, Brucutu. Eu não vou ter juízo.
Nem pensou em tentar localizar a mãe. Muito menos o pai. Quem, então? Quem acreditaria nela? Quem daria importância às fantasias malucas da menina sonhadora, metida a poeta?
— A professora Tonks! É isso!
A professora de filosofia era a mais jovem da escola. Uma das poucas a quem os alunos chamavam de você. Certamente não por ser jovem, mas por ser a mais amiga dos alunos. A mais jovem, a mais amiga e uma das mais brilhantes do corpo docente. Tonks acabara de defender brilhantemente uma tese de doutoramento em psicologia, na faculdade. Alguma coisa sobre educação por indução subliminar. A professora até já tinha conversado com a classe de Hermione sobre suas idéias e (naturalmente!) a menina discutira essas idéias, pois não podia aceitar isso de educar alguém por indução subliminar. Um método de enfiar idéias à força na cabeça dos alunos, sem compreensão nem aceitação. Uma traição pura ao direito de pensar e de escolher livremente. Pura traição. Algo com que Hermione nunca concordaria. Mas Tonks era maravilhosa. Era um charme. E apoiava as discordâncias com entusiasmo. Mesmo que fossem contra ela mesma.
Não foi fácil descobrir o telefone da professora, mas, com um pouco de jeito, a secretária da escola cedeu e informou o número a Hermione.
— Alô.
— Tonks? Sou eu, Hermione. Sua aluna. Lembra?
— Hermione? Claro que sim. A minha contestadora predileta e a minha companheira na descoberta de cadáveres. Oi, querida. Queria falar comigo?
— Eu preciso falar com alguém, Tonks. E tem de ser você.
— Bom, se é sobre a prova da semana que vem...
— Não é prova nenhuma, Tonks. É sobre o assassinato da dona Minerva...
— Assassinato? Você disse assassinato?
— É isso mesmo. Desde o primeiro momento eu não acreditei que aquilo fosse suicídio. Só que eu não ia falar nada. Mas o Brucutu...
— O Brucutu? O que tem o Brucutu?
— Ele me atacou, Tonks. Há alguns minutos. Me ameaçou...
— O Brucutu? Mas por quê?
— Eu acho que sei de uma coisa, Tonks. Eu acho que sou uma testemunha.
— Todos nós somos, Hermione. Eu, você, o Brucutu e o Harry. Nós entramos juntos na diretoria, lembra?
— Não é só isso. Eu acho que testemunhei outra coisa...
— Fique calma, minha querida. Assim, por telefone, não dá para conversar. Onde você está?
— Estou em casa. Estou sozinha. Minha mãe saiu.
— Onde você mora? Pego o carro e chego aí num instante...


***


Continua

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