Sorte



Engraçado como as coisas acontecem, pensou.
Em outra ocasião teria preferido ir para o Novo México de avião, mas havia alguns dias decidira ir de carro para Angel Fire. A longa viagem lhe daria tempo para relaxar antes de chagar a seu refugio nas montanhas.
Quando estava em casa, em Dallas, ela se movia a velocidade da luz, sempre trabalhando em cima de prazos. Ela já tinha adiado aquelas férias ter vezes.
-Use-os ou perca-os - dissera Arthur sobre os dias de férias que ela havia acumulado.
Ele lhe dera um sermão sobre como seu desempenho, assim como sua disposição, melhorariam bastante se ela tirasse uns dias para descansar. E quem dissera aquilo fora um homem que não havia tirado mais do que alguns dias de férias nos últimos quarenta anos. Quando Hermione lhe lembrava disso, ele olhava para ela de cara feia.
-Certamente. Você quer acabar feia, enrugada e patética como eu?- então ele acertava em cheio. –Tirar férias não ira colocar em risco as suas chances. Seu emprego ainda estará disponível quando você voltar.
Zangada com ele por tocar na verdadeira razão por traz de sua objeção em se ausentar do trabalho por qualquer periodo de tempo, Hermione concordou, de má vontade, em ficar fora uma semana.

Hermione segurava o fio pegajoso de telefone entre o polegar e o indicador, evitando toar na superfície mais do que o necessário.
-Sim, Arthur, estou aqui. Bem perto. Na verdade, estou perdida.
Ele gargalhou.
-Muito agitada para se concentrar no caminho? – perguntou.
-Você mesmo disse que o lugar nem esta na maioria dos mapas.
Seu senso de humor havia desaparecido. Depois de ligar para ele, havia parado uma única vez e só por necessidade. Sentia fome, sede, estava cansada, mal-humorada, dolorida e não muito asseada. Tomar um banho seria uma alegria.
-Como você conseguiu se perder?
-Perdi meu senso de direção depois que o sol se pôs. A paisagem parece a mesma de todos os ângulos. Estou ligando de uma loja de conveniência em uma cidade com a população de 823 habitantes, de acordo com a placa. A cidade se chama Rojo alguma coisa.
-Flats.Rojo Flats.
-Você vai me dar essa tarefa misteriosa ou não?
-O que aconteceu com seus planos de férias?
-Nada. Ainda estou de férias. Estou apenas adiando o inicío, só isso.
-O que o novo namorado vai dizer?
-Eu já disse mil vezes, não há nenhum namorado novo.- Ele deu aquela sua risada de fumante viciado, indicando que ela estava mentindo, e que Hermione sabia que ele sabia.
-Está com o bloco de anotações?- Perguntou ele de repente
-Estou.- Ela tirou um bloco e uma caneta de sua sacola e os apoiou na base estreita de metal debaixo do telefone preso à parede.- Fale.
-O nome do garoto é Ronald Weasley- começou Arthur
-Ouvi isso no rádio.
-É conhecido como Rony. Está no último ano do segundo grau, como a filha de Lúcio. Nunca se meteu em encrencas, até hoje. Esta manhã, depois da aula ele deixou rapidamente o estacionamento dos estudantes em sua picape Toyota junto com Luna Malfoy, que segurava uma espingarda de caça.
-A filha de Lúcio Malfoy.
-Sua única filha.
-O FBI já entrou no caso?
-OFBI, os policiais do Texas, o que você disser. Todos estão reivindicando a jurisdição e querem tomar parte da ação.
Hermione levou um instante para absorver as amplas implicações daquela história. O pequeno corredor onde se localizava o telefone público levava aos banheiros. Na porta de um deles avistou a figura de uma vaqueira vestindo uma saia franjada. No outro lado, como era esperado havia um cowboy com calças e chapéu de vaqueiro, girando um laço acima da cabeça.
Olhando de relance no corredor, Hermione viu um autêntico cowboy entrando na loja. Alto, esbelto, com um chapéu de vaqueiro sobre a testa. Ele fez um aceno com a cabeça e cumprimentou a caixa da loja, cujos cabelos frisados, após excessivos permanentes, haviam sido pintados com tom de amarelo que não lhe caia bem.
Mais próximos de Hermione, um casal idoso procurava mantimentos, aparentemente sem pressa de voltar à motocasa. Pelo menos Hermione supôs que a motocasa lá fora pertencesse a eles.
O casal então se juntou a Hermione no corredor, indo em direção a seus respectivos banheiros.
-Não demore, Mimi- disse o homem cujas pernas brancas, já quase sem pêlos, pareciam absurdamente finas no largo short caqui e tênis esportivo.
-Cuide de sua vida e eu cuido da minha.- retrucou ela rapidamente. Em outra ocasião, Hermione teria achado o casal engraçado e cativante. Mas estava lendo com atenção suas anotações quase ao pé da letra do que Arthur lhe dizia.
-Você disse “segurando uma espingarda”. Uma estranha escolha de palavras, Arthur.
-Você consegue guardar um segredo?- perguntou ele, abaixando a voz sugestivamente.- Porque minha cabeça vai rolar se isso vazar antes de nosso próximo noticiário. Demos um furo de reportagem antes de qualquer outra emissora ou jornal.
O couro cabeludo de Hermione formigava, como sempre acontecia quando ouvia algo q nenhum outro repórter sabia, quando descobria o elemento que diferenciaria sua hitória das demais, quando esse elemento exclusivo tinha o potencial de fazê-la ganhar um prêmio jornalístico, ou de garantir-lhe o cobiçado lugar em Nine Live.
-A quem eu contaria? Estou cercada por um cowboy comprando cerveja, uma vovozinha atrevida e seu marido, e dois mexicanos que nem falam inglês.- Os dois tinham entrado na loja havia pouco tempo. Ela os ouvira falando em espanhol enquanto esquentavam em um forno de microondas burritos embalados.
Arthur continuou:
-Rita...
-Rita? Ela pegou a história?
-Você está de férias, lembra-se disso?
-Férias que você insistiu para que eu tirasse!- exclamou Hermione.
Rita Skeeter era repórter-uma maldita boa repóter- e rival não-declarada de Hermione. Ela ficou ofendida por Arthur ter designado Rita para cobrir uma história tão especial.
-Você quer ouvir isso ou não?- perguntou ele irritado.
-Continue.
O homem saiu do banheiro masculino. Dirigiu-se ao fim do corredor para esperar a mulher. Para passar o tempo, pegou um câmera de vídeo em uma bolsa de náilon de uma companhia aérea e começou a mexer nela.
Arthur disse:
-Rita entrevistou a melhor amiga de Luna Malfoy esta tarde. Não se assuste ao ouvir isto: a garota está grávida de oito meses de Rony Weasley. Eles contaram a notícia aos pais ontem a noite e Lúcio Malfoy ficou doido.
A mente de Hermione já estava mais à frente, preenchendo as lacunas.
-Então isso não é um seqüestro. É uma espécie de Romeu e Julieta contemporâneo.
-Esse é o meu palpite. E a amiga de Luna tem a mesma opinião: ela afirmou que Rony é louco por Luna e não sequer a um fio de cabelo dela. A garota disse que Lúcio Malfoy vem se opondo ao namora há um ano. Ninguém é bom o bastante para sua filha, eles são muito jovens, ir pra faculdade é indispensável e assim por diante. Você entendeu?
-Entendi. Vou voltar essa noite, Arthur.
-Ouça-me, Hermione. Nós já estamos cobrindo. Colin já está cobrindo a perseguição e o cumprimento da lei. Rita está com os amigos, professores e família de Rony e Luna. E o principal, esses dois provavelmente vão aparecer antes de você conseguir estar de volta a Dallas.
-Então, o que estou fazendo aqui no meio do nada?
-Ouça, a amiga de Luna disse que a garota e Rony deveriam ir para o México.
-Onde no México?
-Ela não soube dizer. Ou não quis dizer. Mas disse que o pai de Rony, o pai verdadeiro; sua mãe casou novamente- compreende a situação difícil em que os dois estão. Há um tempo ofereceu sua ajuda caso eles precisassem. Agora, quando eu disser onde ele mora, você vai se sentir muito mal por ter gritado comigo.
-Hera.
-Satisfeita?
Ela deveria ter se desculpado, mas não o fez.Arthur compreendeu.
-Quem mais sabe sobre isso?
-Ninguém. Mas saberão. Para nossa vantagem, Hera é uma cidade muito pequena e sem importância, não está em nenhuma rota regular. Quando a notícia se espalhar, todos levarão um bom tempo para chegar até lá, mesmo que seja de helicóptero. Definitivamente, você tem uma vantagem inicial.
-Arthur, eu amo você!- disse ela com empolgação.- Tire-me daqui.
A mulher saiu do banheiro feminino e voltou para junto do marido. Repreendeu-o por ficar brincando com a câmera e mandou que ele a guardasse novamente na bolsa antes que a quebrasse.
-Como se você fosse especialista em câmeras de vídeo.- respondeu o homem.
-Aproveitei para ler o manual de instruções. Você não.
Hermione enfiou o dedo no ouvido para ouvir Arthur melhor.
-Qual é o nome do pai? Weasley, suponho.
-Tenho o endereço e o número do telefone.
Hermione anotou.
-Já tenho um encontro marcado com ele?
-Ainda estou tentando. Vou enviar um helicóptero com um fotógrafo.
-Kip, se estiver disponível.
-Todos vocês podem se encontrar em Hera, você fará a entrevista amanha assim que tudo estiver combinado com o Sr. Weasley. Então, poderá continuar sua alegre viagem.
-A menos que haja mais historia por lá.
-Uh-uh. Esta é a condição, Hermione. Você cobre essa parte depois parte para Angel Fire. Ponto final. Fim da discussão.
-o que você disser.- Ela podia facilmente concordar naquele momento e argumentar sobre o assunto mais tarde, se os acontecimentos justificassem sua atitude.
-Certo, vejamos. Saindo de Rojo Flats...você deve levar algum tempo para chegar lá. Não está com sono, está?
-Vou compra cafeína para tomar no caminho.
-Ligue para mim assim que chegar. Reservei um quarto para você no único hotel.-Mudando de assunto, o novo namorado vai ficar zangado?
-Pela ultima vez, não existe nenhum novo namorado.
Ela desligou e fez outra ligação-para seu novo namorado.
Vitor Krum era tão viciado em trabalho quanto ela. Hermione imaginou que ele estava trabalhando no escritório ate tarde, colocando as coisas em ordem antes de se afastar por alguns dias. Estava certa. Ele atendeu a ligação no segundo toque.
-Você recebe pelas horas extras?
-Mione? Oi, que bom que você ligou.
-Já passou do horário do expediente achei que não ia atender.
-É reflexo. Onde você está?
-No fim do mundo.
-Está tudo bem? Não teve problema com o carro, não é?
-Não, está tudo ótimo. Liguei por dois motivos: primeiro, porque estou com saudades.
-Você me viu ontem.
-Mas foi muito rápido, e hoje estou tendo um longo dia. Segundo, liguei para lembrá-lo de colocar roupa de banho em sua mala.
Depois de uma pausa ele disse:
-Na verdade, Mione, foi bom você ter ligado. Precisamos conversar.
Algo no tom de voz dele impediu que ela continuasse. Hermione parou de falar e esperou que ele preenchesse o silêncio que se instalara entre eles.
-Eu poderia ter ligado no seu celular hoje, mas não é o tipo de coisa... O fato é que...acho que não poderei ir amanhã.
Hermione estava segurando a respiração. Ao ouvir aquilo, soltou-a, aliviada. A mudança de planos de Vítor amenizava sua culpa por ela mesma ter de muda-los.
-Sei o quanto você estava esperando essa viagem. E eu também- apressou-se em acrescentar.
-Deixe-me tornar isso mais fácil pra você-confessou ela gentilmente- A verdade é que eu liguei para dizer que eu precisava de mais uns dois dias antes de ir pra Angel Fire. Sua programação permitiria que nos encontrássemos, digamos, na quinta-feira em vez de amanhã?
-Você não entendeu, Mione. Não posso mais me encontrar com você.
-Ah, entendo. É decepcionante. Bem...
-As coisas muito tensas aqui. Minha mulher achou meu bilhete de avião e...
-Como? Você é casado?
-Bem...sim. Pensei que soubesse.
-Não.-os músculos do rosto de Hermione pareciam duros e inflexíveis.- Você esqueceu de mencionar que havia uma sra. Krum.
-Porque meu casamento não tem nada a ver com você, com nós dois. Não é um casamento de verdade há algum tempo. Quando eu explicar a minha situação em casa você entenderá.
-Você é casado.-Dessa vez era uma afirmação.
-Mione, escute...
-Não, não vou escutar nada Vítor.
Hermione agora segurava com força o fio do telefone- que antes estava relutante em tocar.-, mesmo depois de tê-lo colocado no gancho. Apoiou-se no aparelho.
Casado. Ele parecia bom demais para ser verdade. Bonito, charmoso, companheiro, inteligente, atlético, bem-sucedido e financeiramente estabilizado, Vítor Krum era casado. Se não fosse por um bilhete de avião, ela teria tido um caso com um homem comprometido.
Hermione engoliu uma sensação repentina de náusea e precisou de um instante para se recompor. A revelação de Vitor a fizera cambalear de descrença. Estava magoada, porém, mais do que tudo, estava envergonhada por sua credulidade. Depois ela massagearia seu ego, amaldiçoando-o e mandando-o para o inferno. Mas, naquele momento, tinha um trabalho a fazer. Não iria permitir que o canalha afetasse seu desempenho profissional.
O trabalho era o apoio de sua vida. Quando estava feliz, trabalhava. Quando estava triste, trabalhava também. Trabalhar era a cura para todos os seus males...até mesmo para oração partido, uma dor tão profunda que chegava pensar que ia morrer.
Ela recolheu seu orgulho, junto com as anotações sobre a historia de Malfoy e as instruções de Arthur para chegar a Hera, no Texas, e ordenou a si mesma que se concentrasse.
Em comparação à falta de claridade do corredor, a iluminação fluorescente da loja parecia excessivamente brilhante. O cowboy havia saído. O casal de idosos estava percorrendo a banca de revistas. Os dois homens que falavam espanhol comiam seus burritos e conversavam calmamente.
Ao passar por ele em direção aos freezers, Hermione percebeu seus olhares fixos e ardentes. Um disse ao outro alguma coisa, e este abafou uma risada. Era fácil adivinhar a natureza do comentário. Felizmente, seu espanhol estava “enferrujado”.
Ela deslizou a porta do freezer, escolheu um pacote com seis latinhas de bebida energética para tomar na estrada e ficou pensando se compraria ou não um saco de caramelos cobertos com chocolate. Só porque o cara com quem estava saindo havia algumas semanas revelara ser casado não significava que ela deveria usar aquilo como desculpa para comer e beber excessivamente. Por outro lado se precisasse se distrair...
A câmera de segurança posicionada no canto do teto explodiu, fazendo pedaços de metal e vidro voarem.
Instintivamente, Hermione recuou com o barulho. Entretanto, a câmera não havia explodido sozinha. Um jovem havia entrado na loja e disparou uma pistola em direção ao aparelho. Então, o atirador apontou a arma para a moça no caixa, que solou um berro antes que o som congelasse em sua garganta.
-Isto é um assalto!- disse o rapaz em tom melodramático e um tanto desnecessário, já que estava óbvio que era aquilo que estava acontecendo. Ele dirigiu-se para à jovem que o acompanhava na entrada da loja: -Luna, vigie os outros. Se alguém se mover, me avise.
-Certo Rony.
Bem, posso ate morrer agora, pensou Hermione. Mas pelo menos terei minha história.
E ela não precisaria ir à Hera.

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