Outra chance



- E você não disse nada para o Cavalheiro de Olhos Frios? – perguntou Vicky assim que Mary terminou de lhe relatar o que havia acontecido na noite anterior, no seu intervalo do último dia de trabalho.
- Eu não poderia dizer nada naquele momento, Vicky...
- Ei, Mary? Já pensou sobre o Dia do Encanto?
- O quê?
- Seria uma boa oportunidade, não? Para encarar direito os seus pensamentos!
Mary compreendeu o raciocínio da amiga. Entre os feriados do calendário bruxo, havia um totalmente criado por razões comerciais, mas que ficara muito famoso com o passar dos anos.
Era um dia criado pelas lojas de doces para faturarem em uma época em que o movimento ficava mais baixo. Com o tempo, virou quase uma tradição que nesse dia, as bruxas apaixonadas entregassem doces para os seus amados, e isso geralmente implicava em uma declaração. O problema para os comerciantes foi que os doces caseiros, feitos com toda a dedicação, prevaleceram sobre o que poderia ser comprados prontos. Entregar algo para alguém nesse dia era um desafio e, segundo as crendices criadas em torno da data, era a melhor oportunidade de se mostrar seus verdadeiros sentimentos.
- Dia do Encanto... – repetiu Mary, não muito certa daquilo.
- Eu decidi que vou encarar um desafio nesse dia! – anunciou Vicky.
Essa frase da amiga fez com que Mary lembra-se de algo que há tempos queria perguntar, mas sempre esquecia:
- Vicky?... Você já andou na moto do Simon?
- Não. – respondeu ela com um tom de quem realmente adoraria fazer isso.
- Esse lugar já está reservado! – disse a cabeça da professora Karoline surgindo ao lado de Vicky.
- Professora! – exclamou Mary, feliz por vê-la depois de tanto tempo.
- Reservado? – perguntou Vicky surpresa e ao mesmo tempo desapontada.
- Não é lógico? Ele só deixará alguém especial montar nela!
- Especial?! – perguntou Vicky novamente, mas dessa vez se maravilhando com a possibilidade.
- Uma vez ele me disse que não levava qualquer pessoa na moto. – comentou Mary.
Com isso, a professora se empolgou em contar o que sabia:
- A professora de Astronomia me contou que o professor de poções contou que ficou sabendo de alguém que trabalha para a família Nissenson, que a pessoa desse lugar especial existe. E ainda, que é uma pessoa que ele não consegue esquecer.
- Existe? – perguntou Vicky dessa vez chocada.
- Até mesmo o estudioso e arrogante Dragão da Corvinal deve ter tido o seu primeiro amor. – explicou a professora.
- Aaaaahhh, um primeiro amor! – quase chorou Vicky – Será que ele realmente não consegue esquecê-la?
- Não desista, Vicky! – se empolgou a professora e começou mais um dos seus discursos sobre como a garota deveria ser forte e determinada em conseguir alcançar seus objetivos.
Mary sorriu para acena, mesmo não participando dela. Com certeza, essas conversas com a amiga e com a professora nas estufas era a coisa que ela mais sentia falta em Hogwarts.


***


- Vão embora agora? – perguntou Mary depois do jantar, quando os pais começaram a arrumar apressados as coisas que trouxeram.
- O trem da madrugada é mais barato. – explicou seu pai.
- Se algo acontecer, nos avisem imediatamente, ok? – pediu sua mãe.
- Ok... E vocês poderia nos mandar algum dinheiro no final do mês? – perguntou Mary sem graça.
Aquele fora seu último dia em seu trabalho temporário, e ela queria ter ao menos alguma certeza para aquele mês, caso não conseguisse arranjar outro emprego. Mas assim que ouviram a pergunta, seus pais os encararam assustados.
- Não podem? – perguntou ela, lembrando que, em momento algum da visita, seus pais havia lhe dito como estavam indo as coisas no litoral.
- Cla-claro que dá! – respondeu seu pai de cabeça baixa se apressando em sair com a mala.
- Se-seu pai é um grande homem do mar! – tentou ajudar a sua mãe, com uma risada nervosa.
- Se cuidem! – disse o senhor Weed já saindo do apartamento.
- Sempre tranquem a porta e lembrem de verificar se não está vazando gás! – alertou-lhes a sua mãe, se enroscando com as sacolas na porta ao tentar sair, ainda rindo de uma forma nervosa.
- Eles estão agindo de um modo muito suspeito, não? – comentou Charles depois que o barulho de passos ligeiros indicaram que seus pais havia fugido pelas escadas.
- Estão. – Mary suspirou indo para fechar a porta.
Mas no instante em que ela pegou na fechadura, Doumajyd surgiu na frente dela segurando um quebra-nozes.
- O que foi? – perguntou ela assustada, vendo a agitação dele.
- É que... que... eu... Acabou... o açúcar! – ele mostrou o quebra-nozes – E eu es-estou procurando por... algum vizinho... que... empreste... açúcar.
- Mas isso aí é um-
- Nós temos açúcar! – disse Charles aparecendo na porta e cortando a irmã.
- É mesmo? Que coincidência! – exclamou Doumajyd feliz – Eu estava pensando em fazer uma... um... ‘burê’!
- Purê? – perguntou Mary com uma careta de incompreensão.
- Ah! Era o que a Mary estava dizendo que iria fazer para o jantar, não é Mary?! – contou Charles feliz.
- O quê?! Mas nós já-
- Janta conosco! – Charles convidou o dragão mais uma vez cortando a irmã, e então abriu caminho – Entre, por favor. Mary, vá preparar o burê!
- Mas é pu-
- Ah, mas eu tenho que estudar! – disse Charles como se tivesse acabado de lembrar e então pediu para Doumajyd – Nesse caso, você poderia me emprestar o seu apartamento?
- O que está dizendo?! – perguntou Mary abobada com as atitudes do irmão – O seu teste já passou!
- Acontece que um homem de verdade usa todas as suas forças até o último momento. – ele citou o conselho do dragão – E é por isso que estamos sobre o mesmo céu!
Doumajyd entendeu a mensagem do garoto, de que era a sua vez de ajudar o dragão, e exclamou, um tanto escandalosamente:
- Aaahh! É mesmo! Vou aceitar o convite!
E então ele entrou correndo para dentro do apartamento de Mary, não dando chances para que ela barrasse o seu caminho, e Charles foi contente para o apartamento vizinho.
- ... Inacreditável. – foi tudo o que Mary conseguiu resmungar diante da situação.


***


Ainda inconformada, Mary praticamente massacrava as batatas que estava descascando para fazer o purê. Ela podia adorar o seu irmão, mas depois dessa, definitivamente ele iria ter só pão seco e água por uma semana como castigo. Porém, seus pensamentos sobre como torturaria Charles por colocá-la naquela situação logo cedeu espaço para a sua consciência de que ela estava ali, sozinha com Doumajyd.
Entre se concentrar no que estava fazendo, para não perder um dedo, e pegar outra batata, ela olhava de esguelha para o dragão, sentado no chão na mesinha de centro. Esse também fazia o mesmo, e mais de uma vez os olhares furtivos dos dois se encontraram e ambos disfarçavam, fingindo estar interessados em outra coisa.
Mary pensou que, se isso houvesse acontecido na noite anterior, ela provavelmente já o teria expulsado a vassouradas, ao invés de estar preparando novamente o jantar para ele. Mas agora, já não poderia fazer isso. Não que o que o secretário da senhora Doumajyd havia lhe contado a fizesse esquecer de tudo o que tinha acontecido desde a sua ida para Nova York. Mas era diferente estar com ele sabendo por tudo o que ele passara.
‘Ele não conseguiu mais enganar a si mesmo e mentir para seus próprios sentimentos’, o que o secretário dissera ainda ressoava em sua cabeça.
Assim, sem ela perceber por estar perdida em pensamentos sobre o que faria, o dragão se aproximou dela sem jeito, visivelmente querendo falar algo, mas não sabendo por onde começar. E então, tomando um impulso, ele a abraçou.


***


Do lado de fora do apartamento, Charles tentava ouvir através da porta o que acontecia lá dentro.
Depois de um longo silêncio, em que somente se podia escutar sua irmã trabalhando na cozinha, ele a ouviu dizendo assustada:
- Ei!
E o barulho de uma batata caindo e rolando pelo chão e da faca caindo tilintando na pia.
- O que eu disse ontem, – ele ouviu Doumajyd falar – foi de verdade, Mary. Se você me desse mais uma chance, eu-
- Onde-pensa-que-está-pegando?! – ouviu a irmã sibilar furiosa – ME SOLTA!
E então ruídos de Doumajyd se afastando aos tropeços enquanto tentava se desculpava:
- Ah! Não foi isso! Eu não queria pegar no seu peito! Foi sem-
Mas ele não pôde terminar de falar. Charles ouviu os passos raivosos da irmã avançando.
- Ah, não! – Charles ofegou, prevendo um desastre, e entrou correndo no apartamento, em tempo de ver Doumajyd sendo jogado pela irmã em cima da mesinha de centro.
No mesmo instante em que o dragão caiu, um ‘CRAK’ ressoou pelo apartamento e o chão cedeu, levando Mary e o Dragão com ele.
Charles avançou com cuidado para o buraco, de onde subia uma nuvem de poeira e espiou o apartamento do andar inferior, onde dois bruxos idosos estavam encolhidos contra a parede, ainda segurando seus pratos com a sopa que estavam tomando, enquanto olhavam espantados para os dois seres que acabaram de despencar em cima da sua mesa.
- Pessoas caíram do teto! – exclamou a bruxa para o marido, como se esse não tivesse percebido o que havia acontecido.
Ainda tossindo com a poeira dos escombros, Mary e o dragão tentaram se erguer para pedir desculpas para os velhinhos, mas no mesmo instante um lado da mesa cedeu e os dois escorregaram para o chão, caindo um em cima do outro.
Doumajyd, esfregando a parte de trás da cabeça onde havia batido com a queda, olhou assustado para Mary, esperando outro ataque de fúria da sangue-ruim. Mas essa o olhava do mesmo modo, o que foi o suficiente para que os dois caíssem na gargalhada.
- Inacreditável. – disse ela se erguendo e oferecendo a mão para ajudar o dragão a se levantar também – E agora o que vamos fazer, senhor proprietário?

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