Um sentimento precioso



Doumajyd se sentou no mesmo banco em que havia encontrado o irmão de Mary no dia em que fizera a prova. Agora que o sol já tinha saído e o ar começava a se aquecer, o lugar ia ficando cada vez mais movimentado. Pessoas indo trabalhar, crianças a caminho da escola, donas de casa indo às compras... Todos eles sem prestarem a mínima atenção ao dragão que aguardava sorridente. Ele prometera que iria esperar ali, e esperaria o tempo que fosse preciso, não importava o que acontecesse.
Então de repente viu Mary passar apressada, para ir ao seu trabalho, e ficou em pé com um pulo. Assim como as outras pessoas, ela também não se deu conta que o herdeiro do maior nome bruxo da sociedade mágica estava ali, a acompanhado com os olhos até ela virar uma esquina e desaparecer.
Doumajyd pensou em sair correndo atrás dela, mas no mesmo instante uma frase da sua irmã ressoou em sua cabeça: Se estiver com pressa, dê voltas. Isso fez com que ele se sentasse novamente no banco. Mais do que nunca, aquele conselho de Christy parecia fazer sentido.
Olhando para o céu, pensou em Charles e na sua Menina da Borracha. Mesmo o garoto dizendo que não sabia como agradecer pelo que o dragão havia feito por ele, Doumajyd sabia que, indiretamente, o Irmãozinho Trouxa lhe ajudara muito mais do que ele podia imaginar. Charles havia conseguido fazer com que o dragão lembrasse algo que ele se esforçara em esquecer durante o tempo em que ficara em Nova York.


***


Charles já havia cansado de esperar de pé em frente ao portão e se sentara em um muro baixo ao lado do jardim da escola. Era quase meio-dia e praticamente todos os candidatos já tinham vindo ver seus resultados, menos quem ele esperava. Ele próprio já vira as suas notas e a sua colocação, mas isso não aliviara nem um pouco o seu estado apreensivo.
Ele estava pensando em desistir e voltar para casa quando ouviu passos apressados vindos da direção oposta da rua. Levantou a cabeça para ver quem era e quase caiu de onde estava sentando: finalmente a Menina da Borracha aparecera. Em um pulo ele se colocou de pé e correu para barrar o caminho dela no portão.
Assustada por ter sido impedida de continuar a sua corrida desesperada para saber se tinha passado ou não, a garota o encarou sem entender.
- Você veio! – ele exclamou contente.
- Ah, oi. – cumprimentou ela sem jeito, tentando olhar para dentro da escola onde estavam fixados os editais com o resultado.
Vendo que teria que ser rápido para conseguir a atenção dela, Charles respirou fundo e disso:
- Posso falar com você um pouco?
Ainda mais confusa, ela concordou com um gesto de cabeça.


***


Mary subiu as escadas até o seu apartamento praticamente se arrastando. Tinha pegado um turno mais cedo no trabalho para poder chegar em casa e preparar algo especial para o irmão, tanto para festejar quanto para consolar. Mas não recebera nenhuma notícia de Charles durante todo o dia, e estava preocupada.
- SURPRESA!
Ela quase desceu rolando pelas escadas com o susto que levara. Quando pisara no último degrau, seus pais pularam na sua frente, fazendo a maior festa por vê-la.
- Pai! Mãe! – ela exclamou enquanto era sufocada por eles – O que estão fazendo aqui?
- Hoje é o dia do resultado do Charles! – explicou seu pai a soltando – Não poderíamos deixar de vir!
- Onde ele está? – perguntou sua mãe ao mesmo tempo em que relutava em soltar a filha do abraço apertado e procurava pelo outro filho, como se ele pudesse estar escondido atrás dela.
- O quê? – perguntou Mary – Ele ainda não voltou?
- Não estaríamos esperando aqui fora se tivesse alguém em casa. – disse seu pai – Aconteceu alguma coisa, Mary?
- Bem... Espero que não...


***


O sol já estava se pondo e voltava a esfriar. Mesmo Doumajyd tendo prometido que o esperaria pelo garoto, um dia inteiro já era mais do que tolerável. Porém, apesar da impaciência, ele continuava esperando.
Então o dragão o viu entrando no parquinho com a cabeça baixa e correu até ele. Mas diminui a velocidade ao se aproximar e ver a expressão do garoto. E quando esse o viu, deu um sorriso fraco.
- E a prova? – perguntou Doumajyd se contendo para não pegá-lo pelos ombros e fazer ele contar tudo de uma vez – Você passou?
Charles confirmou com a cabeça.
- Eu sabia que você conseguiria! – ele bagunçou o seu cabelo, como se isso fosse a recompensa de um bom trabalho.
Porém, depois disso, Charles não conseguiu mais continuar sorrindo. Percebendo essa reação, Doumajyd perguntou cautelosamente:
- E ela?... – como não recebera uma resposta imediata, ele tentou de novo – Como foi?
Charles não conseguiu falar nada, e limitou-se apenas a balançar a cabeça negativamente. Então encarou o dragão como alguém que estava prestes a cair no choro, por não ter conseguido alcançar as expectativas que colocaram nele.
Doumajyd se espantou com aquilo. Não porque o garoto estava mostrando toda a sua tristeza pela derrota na frente dele, mas porque ele já tinha visto aquela cara de choro antes. Era exatamente como ele vira Mary, quando ele estava indo para Nova York e ela correra atrás da carruagem da sua mãe para falar com ele.
Charles tirou a mão de dentro do casaco e mostrou para o dragão a carta que ele tivera tanto trabalho em escrever, toda amassada e parecendo não ter sido aberta.
- Ela... disse... – o garoto tentou contar, mas o choro veio antes que as palavras.
Então Doumajyd o abraçou forte e tentou consolá-lo:
- Tudo bem. Você fez o seu melhor, não? – o dragão o soltou e o encarou de frente – Você se esforçou como um verdadeiro dragão e me orgulho disso, Charles.
Mesmo chorando, o garoto sorriu, por ser a primeira vez que ouvira Doumajyd o chamar pelo nome.
- Obrigado, Chris. – agradeceu ele em um murmuro.


***


Mary saiu correndo pelos arredores do prédio procurando pelo irmão. Tinha intenção de ir até a escola, mas ao virar a esquina que dava para um bosque, geralmente usado para os bruxos que moravam na região aparatarem, ela o avistou vindo andando pela rua com Doumajyd ao seu lado. E, furiosa, ela correu para encontrá-los, gritando:
- Charles!
Eles pararam no mesmo instante e esperaram até ela chegar ofegando na frente deles.
- O que estava fazendo, Charles? Eu estava preocupada!
- Desculpa. – pediu ele em um resmungo.
- Ele passou. – contou Doumajyd, pensando que assim livraria o garoto de uma provável bronca da irmã.
- Verdade? – perguntou ela para o irmão e olhando desconfiada para o dragão.
- Sim.
- Por que não me avisou então? – vendo que o irmão apenas abaixou a cabeça em resposta, denunciando totalmente que tinha feito algo e escondera isso dela, Mary começou a interrogar Doumajyd – O que fez com o meu irmão? O que está planejando?
- Não estou planejando nada! – defendeu-se o dragão no mesmo tom.
- Como você pode ser tão inconveniente? Por que sempre consegue arranjar uma maneira de me atormentar?
Doumajyd limitou-se a encarar-la, como se estivesse processando a acusação e tentando buscar alguma lembrança de quando ele a atormentara. Diante disso, Mary puxou o irmão pelo braço, para tirá-lo do lado do dragão e falou:
- Não quero mais você perto dele! Você sempre machuca as pessoas que estão ao seu lado sem se importa com elas!
- Mary! – replicou o garoto com a voz rouca.
Foi então que ela percebeu como Charles estava triste e tinha os olhos inchados, e rosnou para o Doumajyd:
- O que você fez com ele?!
- Ele não fez nada, Mary! – Charles tentou defender o amigo.
- Charles, não escute esse cara! – ordenou ela – E não volte a falar com ele!
- Por que isso? – perguntou o dragão indignado.
- Por que você é imprevisível, Doumajyd! E justamente por isso você é horrível! Eu quero que saia daquele apartamento e sai das nossas vidas!
- Eu não vou sair. – disse ele calmamente.
- ...O que? – perguntou ela surpresa, pois esperava um ataque de fúria do dragão.
- Seu irmão me ajudou a lembrar de algo muito importante hoje. Um sentimento precioso que eu me esforcei a esquecer durante o tempo em que fiquei em Nova York. Charles me ajudou a lembrá-lo, e eu não quero esquecê-lo novamente.
- O que quer dizer? – perguntou ela.
- Mary, eu gosto de você. Não existe nada e ninguém capaz de me fazer esquecer disso. Porque eu não consigo tirá-la de nada do que eu faço na minha vida.
O impacto do que o dragão dissera quase fizeram com que ela perdesse todas as suas forças em manter-se de pé ali, e se não estivesse segurando seu irmão, com certeza teria caído. Mas não podia deixar que ele percebesse isso, então reuniu tudo o que tinha e disse:
- Você está sendo egoísta!
- Desde que eu nasci sou egoísta, você sabe disso. Posso ser imprevisível, horrível e egoísta, mas mesmo assim ainda sou apaixonado por você!
Aquilo fora demais para Mary. Sem conseguir dizer mais nada, ela agarrou o irmão pelo casaco e o arrastou de volta para o prédio.
Doumajyd os deixou ir sem reagir. Tinha falado tudo o que precisava dizer, e o que já deveria ter dito há muito tempo. Charles realmente lhe ajudara muito. Vendo a determinação do garoto com os seus sentimentos, ele decidiu que deveria fazer o mesmo. Não importava mais Summer Vanderbilt e o seu noivado que poderia salvar o nome dos Doumajyds da ruína. Não importava mais o fantasma do que acontecera em Nova York. E não importava mais o quando sua mãe lhe atormentasse com isso. Ele tinha tomado uma decisão egoísta, e sendo um egoísta, seguiria com ela até o final.
Então, decidido, ele deu meia volta e seguiu para o lado contrário do prédio. Não havia mais necessidade de ficar ali, agora que dissera aquilo para Mary.
Por estar pensando em tudo isso, o dragão não reparara que, durante todo o tempo, desde que vira Mary correndo até Charles e ele, havia alguém presenciando toda a cena. Escondido em um beco mal iluminado, Richardson soltou um suspirou, também tomando uma grande decisão.

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