O Dom Negro



Parte 2. O Dom Negro

Na manhã do dia seguinte, o jovem Riddle acordou em sua cama. Usava ainda as roupas com que saíra a noite. Estava sujo. O lenço no colarinho era a única prova de que algo anormal poderia ter acontecido. Duas gotas de sangue. Nada mais. Mas ele logo perceberia que sim, havia mais. Uma dor de cabeça lacerante o atingiu assim que tentou se sentar na cama. Não suportava sequer a idéia de se mexer, de sair do quarto, sentia como se o corpo todo estivesse sendo rasgado, puxado em todas as direções por forças invisíveis até que partisse em pedaços.

Ficou enrolado no cobertor, sentindo um frio que jamais pensara poder sentir. Parecia não haver ar suficiente no quarto. Por volta das onze da manhã, a senhora Chaworth veio vê-lo. Assustou-se com seu rosto pálido e quis abrir as cortinas, mas Tom disse que não suportava a luz.

“Sarampo.Vou chamar o doutor”, concluiu. Tom ouviu um farfalhar de tecidos e a porta sendo encostada de leve e soube que fora deixado sozinho. Estava exausto, mas tinha um enorme receio de cair no sono. Não sabia se fora enganado por Katherine. Ela poderia ter simplesmente se alimentado e partido, ainda mais com a proximidade do amanhecer – se é que era verdade que os vampiros não podiam se expor à luz do sol.

Foi quando ouviu um barulho ritmado, como se alguém tamborilasse com os dedos numa mesa de madeira. Depois sentiu uma depressão no colchão e, quando finalmente se convenceu da necessidade de abrir os olhos, deu com dois orbes castanhos, brilhando na penumbra. Uma pequena mão tateou seu rosto no escuro, os dedos descrevendo caminhos ao redor de seus olhos até chegarem à ponta do nariz e depois percorrem o contorno dos lábios, quase como se os reverenciasse em silêncio. Foi talvez a sensação mais intensa que Tom já tivera até então, o calor dos dedos de Virginia percorrendo sua pele. Nunca sentira tão claramente seu perfume doce, suave, como o de flores recém-desabrochadas após uma violenta tempestade.

“Virginia...”

“Você está gelado”, ela murmurou baixinho, os dedos se enroscando nos cabelos escuros de Tom. “Não vou mais deixar você sair à noite, não sabe se cuidar sozinho”, ela ralhou, e sua voz tinha um nítido tom de ordem. Era uma coisa difícil de acontecer, Virginia realmente mostrando preocupação com qualquer coisa. Geralmente era de uma frieza inatingível, uma pestinha que gostava de atormentá-lo, brincando com ele como se Tom fosse o espécime de laboratório em que ela fazia suas primeiras experiências.

Tom tentou se desvencilhar da menina, sabendo que ela se aproximava cada vez mais, mas Virginia prendeu-se a ele com mais força, agarrando com as mãos pequenas as mangas de seu pijama.

“Virginia, pare”.

Tom fechou os olhos com força e sentiu os dedos da menina relaxarem. Depois percebeu que ela se levantava. Havia algo reticente no ar, como se ela esperasse permissão para falar alguma coisa.

“Olhe para mim, Tom”, ela falou, a voz tremendo quase imperceptivelmente.

“Virginia, eu estou doente...”

“Se você não olhar agora, vai se arrepender quando eu for embora!”

Com um esforço descomunal, Tom conseguiu abrir pequenas frestas nas pálpebras, a cabeça doendo como nunca. Virginia estava pálida, muito mais que o normal, os cabelos ruivos desgrenhados. O vestido parecia não se ajustar direito ao seu corpo estreito de criança, como se fosse grande demais. Ela lhe estendia a mão e Tom foi capaz de ver com uma nitidez incrível para a escuridão do quarto o caminho que as linhas roxas das veias percorriam sob sua pele clara, suave tal qual tivesse sido moldada em uma nuvem. Por um instante, Tom não percebeu o que ela queria que ele visse, até descer os olhos para seus dedos miúdos e perceber, no dedo anular, um brilho vítreo, como de uma estrela que tivesse despencado do céu e se instalado ali.

“Lorde Fletcher me pediu em casamento ontem à noite. Sabe por que ele fez isso!”, ela falou, as palavras pareciam ser cuspidas de sua boca com desprezo. “Porque você resolveu sair, foi por isso. Nunca vou te perdoar, nunca!”

Tom fechou os olhos. Não conseguia suportar os gritos dela. Ou não conseguia suportar o que ela dizia. Não tinha muita certeza. Não ouviu os passos de Virginia se dirigindo para a porta, mas soube que ela tinha saído quando ouviu a senhora Chaworth entrando no quarto e dizendo que ia chamar uma criada para que ele não ficasse sozinho.

No início da tarde, o médico veio. O doutor Hobhouse cuidava de toda a família Chaworth há muitos anos e se gabava de ter sido o primeiro a examinar o pai de Virginia logo depois de nascer. Primeiro ele insistiu em abrir as cortinas, mas Tom pediu que não o fizesse. O exame não foi dos mais fáceis. No escuro e sem poder identificar nenhum tipo de lesão na pele ou na boca do rapaz, o médico não conseguiu constatar se era ou não sarampo. Acabou chegando a uma conclusão quando soube que Tom passara a noite fora.

“Intoxicação por álcool”, explicou à senhora Chaworth. “Não está acostumado a beber, deve ter se excedido ontem à noite. Apenas façam com que se alimente e tome líquidos e ele ficará bem”.

As criadas da casa fizeram isso com uma eficiência indiscutível, mas Tom não se sentia nem um pouco disposto a colocar qualquer coisa na boca. Nem água. Fingiu comer um pouco de sopa, só para que o deixassem em paz. Ele calculava que já era fim da tarde quando finalmente começou a se sentir melhor. As forças começaram a voltar, devagar, mas continuamente, até que ele se sentiu bem o bastante para abrir os olhos. Não entrava mais nenhum facho de luz amarela através das cortinas. Já devia ser completamente noite.

Tomado por uma excitação súbita, o rapaz levantou-se da cama e correu as cortinas, abrindo as vidraças para sentir o perfume da noite. A lua crescente pulsava no céu, cercada de estrelas cintilantes – e ele teve a impressão de que nunca conseguira antes distinguir tantas estrelas. A lua também parecia muito mais brilhante e maior, como se estivesse muito mais próxima que o usual. Olhou para baixo e a grama verde-escura iluminada em alguns pontos pela luz dos postes lhe pareceu mais cheia de vida. Ele quase podia ver as formigas andando em fila perto do tronco de uma sequóia. Ouvia o barulho de grilos saltando e o uivo do vento. O leve farfalhar das folhas nas árvores soava como uma sinfonia inteira.

Ele tinha que sair. Estava encantado com a noite, fascinado com a beleza que o mundo de repente ostentava. Abriu o armário e todas as cores das roupas pareciam tão vivas, como se tivessem acabado de sair da loja. O cheiro do sache que a criada deixava para perfumar as gavetas era quase forte demais para ser suportado. Vestiu-se rapidamente, tentando não ficar muito tempo olhando para o prateado da fivela do cinto.

Desceu as escadas e, pela primeira vez, conseguiu fazê-lo praticamente sem nenhum som. Não foi notado pelos Chaworth, que comiam na sala de jantar. Era como se fosse um fantasma, sem peso sobre as taboas do piso. Saiu da casa e passou alguns minutos junto à porta, os olhos fechados, concentrado no aroma renovador que o vento gelado trazia. Seguiu pelo caminho do jardim, ainda olhando espantado para tudo. As ruas, antes parcamente iluminadas pela fraca luz dos postes, agora lhe pareciam tão claras, tão claras quanto costumavam ficar ao meio dia. E a lua. Essa era a mais encantadora, com seu brilho quase hipnótico se derramando sobre tudo. Tom nunca fora capaz de ver tantas cores sob a luz do sol. Tudo agora saltava aos olhos, vivo e intenso como se o mundo todo fosse novo em folha.

Andava ao longo de uma comprida avenida comercial. Poucas lojas estavam abertas, mas o rapaz estava satisfeito em admirar as cores das vitrines. Foi quando estava saindo de baixo de uma marquise para reencontrar o céu estrelado que seu caminho foi interrompido. Um vulto passou voando diante de seus olhos, vindo de cima para baixo, como um disforme borrão vermelho. No segundo seguinte, Tom caminhava ao lado de Katherine Boufleurs. A vampira lhe sorriu, mas não muito, de modo que ele não pôde ver suas presas. Mas sabia que estavam lá e essa consciência o fez recuar ante a um passo de Katherine em sua direção.

“O que ficou fazendo o dia inteiro?”, perguntou ela, inquisidora.

“Acho que fiquei delirando”, respondeu Tom, fingindo estar tentando se lembrar e, em seguida, olhando com raiva para a vampira. “O que pensou que estava fazendo? Você quase me matou!”.

“Não era isso que você queria? Não queria morrer?”, Katherine sorriu mais largamente e dessa vez seus dentes apareceram, brancos como marfim, ainda mais luminosos do que Tom podia recordar. Brilhavam mais que seus dourados cabelos, que caíam em cachos por cima das mangas diáfanas do vestido vermelho.

“Sim, mas não estava nos meus planos passar um dia inteiro esperando pela morte e de noite me sentir como se nada tivesse acontecido”, Tom arrumou o lenço de seda no pescoço, aprumando-se com dignidade.

Katherine aproximou-se em passos rápidos. Seus olhos verdes o miravam através da escuridão e Tom sabia que ela podia enxergá-lo perfeitamente, com aquela mesma riqueza de cores que ele experimentava. Ela o tocou na testa com a ponta do dedo indicador.

“Eu já sabia, só queria confirmar”, concluiu, pensativa. “Você está morto e mal percebeu. Por que acha que o mundo parece agora tão diferente? Você saiu da correnteza, garoto. Está livre das garras do tempo”. Ela deu uma volta completa ao redor de Tom antes de continuar: “É óbvio que não dormiu o bastante. Tolo! Ninguém nunca disse que vampiros dormem de dia?”, reclamou ela, sacudindo a cabeça como quem vê uma criança errando pela décima vez a mesma lição de gramática.

Tom se virou subitamente, cansado da vampira e disposto a seguir seu caminho. O som da risada de Katherine o acompanhou e, quando ele ia revidar com um insulto qualquer, ela surgiu à frente dele, a pele pálida como uma estatueta de gesso.

“O que pensa que está fazendo, garoto? Acha que vai conseguir fazer qualquer coisa sem mim? Você é um vampiro recém-criado, não sabe de nada”, advertiu. Depois, num tom de deboche, acrescentou: “Você parece o tipo que desmaia quando vê sangue!”. E riu novamente daquele seu jeito irritante e irônico que fazia Tom perder a paciência.

“Eu não preciso de você”, falou o jovem, com convicção. Ele continuou andando e Katherine não voltou a segui-lo, embora o som da risada dela continuasse a ecoar nos ouvidos de Tom há muitas quadras de distância.

Ele não diminuiu a velocidades dos passos até atingir uma parte da cidade onde predominavam prédios habitacionais, a maioria ocupada pela pequena classe média e a crescente população de artistas. Escritórios de pequenos jornais da cidade ocupavam o térreo de alguns prédios e era possível, ao passar perto deles, ouvir o trabalho interminável das máquinas de impressão. O som, por sinal, era um atrativo a mais naquele lugar. Uma interessante mistura de vozes alegres, copos se enchendo de vinho e, ao fundo, harmônicos acordes musicais de piano lembrando uma romântica valsa de Chopin. Tom parou diante de uma casa que tinha todas as janelas abertas, o interior vivamente iluminado. Acontecia ali um sarau e o número de expectadores era tão grande que havia pessoas amontoadas na porta, erguendo-se nas pontas dos pés a fim de ver alguma coisa.

Tom aproximou-se em passos lentos, como se estivesse enfeitiçado pela música. Mas logo percebeu que não era exatamente a música. Sentia-se efetivamente atraído pela vida. Seus sentidos pareciam estar passando por uma nova modificação. Sua visão ficou ainda mais nítida e os ouvidos se aguçaram. Podia ouvir facilmente as batidas dos corações de cada uma daquelas pessoas, a despeito da música alta e do som das palmas. Instintivamente seu andar tornou-se silencioso, e ele se escondeu na sombra lateral da casa, a respiração tão calma quanto a de um predador preparando tocaia para a caça. Não sabia exatamente o que ia fazer, mas todos os gestos pareciam automáticos, como se sempre tivesse feito aquilo.

Viu quando uma morena se separou do grupo, tonta, foi cambaleando de leve e caiu logo abaixo de uma janela, o rosto vermelho e a aparência lívida de quem estava prestes a vomitar. Ela se sentou abraçando as pernas, a longa saia do vestido estendendo-se ao seu redor como uma moldura. Respirava fundo de olhos fechados. Os olhos de Tom fixaram seu pescoço, encontrando ali as conhecidas linhas roxas que agora lhe pareciam tão fascinantes. Aproximou-se dela devagar a passos elegantes, do mesmo tipo que nunca conseguira aprender na escola. A leveza com que se movia dava a Tom a impressão de que facilmente poderia levantar vôo.

Foi estranha a forma como os olhos negros da mulher se ergueram para ele. Parecia estar admirando, como se ele tivesse algo de extremamente encantador. Não tirou os olhos dele um único instante, e Tom gostou da sensação. Estendeu a mão para a mulher e ela imediatamente aceitou sua ajuda para se levantar e o acompanhou para as sombras. Também não reagiu quando ele puxou para longe do pescoço as mechas dos cabelos e sentiu com a ponta dos dedos o calor e a suavidade de sua pele. Dirigiu os lábios para lá e o sangue jorrou em sua boca – quente e vivo – e sentiu algo como um formigamento tomar conta de seus lábios, espalhar-se pelo rosto e descer pelo pescoço em direção aos braços e às pernas, dando ao seu recém-transformado corpo a força que ele sempre ansiara desde que tinha começado a estudar. A força de poder agir acima de qualquer dogma ou preconceito, a satisfação de ter o que precisava, de ter poder e de nunca ser vencido nem mesmo pela morte.

O corpo dela amoleceu rapidamente em seus braços, primeiro os joelhos cedendo, depois o corpo inteiro tombando contra a parede quando ele finalmente a soltou. A sensação de satisfação fora subitamente substituída por um gosto amargo na boca e sentiu repulsa do sangue. Não conseguia pensar no que poderia ter dado errado e lembrou-se das palavras de Katherine sobre ele ser do tipo que desmaiaria quando visse o sangue. Sentia realmente uma estranha vertigem acompanhada de um zumbido nos ouvidos.

Tom fez um esforço para caminhar para longe do corpo. Seus pés pareciam pesar como se estivesse calçando sapatos de ferro. A luz da lua fez com que se sentisse um pouco melhor e ele se concentrou em respirar enquanto saía dos limites do jardim e voltava a andar na calçada, bem junto aos muros para que, se perdesse o equilíbrio, tivesse onde se segurar. Ao virar uma esquina, novamente o vulto vermelho de Katherine lhe surgiu como se tivesse vindo do céu, em vôo rasante, para pousar ali como um corvo vermelho, aprumada em seus modos orgulhosos.

“Devia ter me ouvido, garoto”, sibilou a vampira. Tinha os lábios vermelhos como se neles tivesse espalhado tinta, mas ao que ela passou a língua sobre eles com um sorriso de prazer, Tom compreendeu que era sangue. “Como eu disse, é um tolo. Aprendeu do modo mais difícil sua primeira lição de vampiro: sempre parar de beber antes que morram”.

Tom apoiou o corpo numa caixa de correio, sentindo os olhos cansados. Via a imagem dupla de Katherine se aproximar dele. Ela tocou seu queixo e ergueu sua cabeça. Passou um lenço branco por seus lábios e depois o enfiou no bolso do colete do rapaz, como que para deixar uma lembrança de seu primeiro erro como vampiro.

“Mas devo dizer que estou impressionada”, ponderou. “Você tem instinto. Pela forma como dominou a mulher, poderia dizer até que tem prática nisso. Não é muito comum, ainda mais para um bebê...”

“Pode dizer o que quiser. Você sabe, Katherine Boufleurs, que tenho o que é preciso para me tornar um vampiro muito mais poderoso que você”, riu Tom, sem saber muito bem como tinha certeza de que a vampira pensava nisso. Apenas olhava para ela e sabia. A vampira arregalou os olhos, o usual sorriso em seu rosto se desfazendo.

“Isso”, resmungou Katherine, “se você sobreviver”. Então ergueu o corpo, e Tom observou seu perfil recortado contra a luz da lua. Seus olhos verdes lhe pareceram estranhamente amarelados, como se antes fossem folhas recém-criadas e agora estivessem secando com o outono. “Não esqueça que agora sou a dona dela. Sou a dona de sua vida, Tom Riddle, posso tirá-la no momento que eu quiser”.

Katherine abriu os braços de modo gracioso e, assim como tinha aparecido, foi-se como um borrão que subia aos céus em alta velocidade. Tom ficou ainda junto à caixa de correio tentando colocar os pensamentos em ordem. As ameaças de Katherine lhe soavam perigosas, mas ele já sabia o quanto ela era boa com as palavras para não se deixar impressionar. Porém, ainda restava a questão: ele devia uma coisa à vampira e não sabia o que era. Supunha que fosse apenas perder sua vida através dela, mas aparentemente não fora isso que ela quisera dizer.

Tom esforçou-se para voltar a andar. Precisava de força. Mas também não queria ser indiscreto. Se estivesse num bairro não-iluminado seria fácil, bastaria ficar sob a sombra de uma árvore para não ser notado por quaisquer olhos humanos e poderia surpreender qualquer passante mais distraído. Não conseguia localizar ninguém andando sozinho na rua e não achava que teria energia para subjugar mais de uma pessoa. Katherine estava certa em dizer que aquela seria uma lição que ele jamais esqueceria. Já tinha se convencido a chamar uma charrete que o levasse para casa quando suas forças finalmente se esgotaram. Deu um passo em falso na calçada e, no instante seguinte, estava caído na sarjeta, sua vista escurecendo rapidamente. Não conseguia acreditar que sua sede de poder e seu sonho de vencer a morte terminariam daquela maneira – como se fosse nada mais que um bêbado.

Seus ouvidos aguçados perceberam o som ritmado dos cascos dos cavalos talvez há mais de um quilômetro de distância. Quando a charrete fez a curva e entrou na rua onde Tom caíra, o rapaz soube que era sua última chance. Era isso ou o fim. Enfiando as pontas dos dedos nas frestas entre os paralelepípedos, Tom arrastou-se até o meio da rua, onde sabia que a charrete dificilmente poderia desviar dele. Torceu para que o condutor estivesse atento o bastante para não atropelá-lo.

Tom Riddle ficou aliviado quando o ritmo dos cascos diminuiu. Ouviu a ordem do condutor para parar. Depois percebeu passos em sua direção, e sabia que não eram passos do condutor. Era um andar mais leve, o som de sapatos finos, acompanhado do barulho de um tecido arrastando no chão. Sentiu o calor da pessoa muito antes dela tocá-lo e soube pelo perfume que se tratava de uma mulher. Mas foi quando ouviu o som da voz que Tom realmente se deu conta do que estava acontecendo.

“O que você...? Eu quase não consegui acreditar quando Lorde Grey disse tê-lo visto andando na direção desse lugar”, falou a voz feminina exasperada, ao mesmo tempo em que virava Tom de barriga para cima. O rapaz então fixou os olhos castanhos de Ju Ruthyn, seus cabelos escuros caindo ao redor do rosto com uma expressão assustada, as estrelas brilhando logo atrás como pequenos diamantes bordados num fundo escuro. Ela devia ter saído para procurá-lo assim que soube pelos Chaworth que ele, doente, tinha saído de casa.

Tom tentou sentir alguma culpa, tentou sentir qualquer coisa que parasse seu instinto, procurou dentro de si qualquer vestígio moral que impedisse o que estava prestes a fazer. Mas não havia nenhum. Não havia porque ele agora era um predador, não apenas agia como um. Parecia incrível como o mundo poderia tê-lo ludibriado por todos esses anos fazendo parecer que existia algo mais que a luta pela sobrevivência. E, para ele naquele momento, a sobrevivência dependia apenas do sangue, não importava de quem fosse.

Seus dentes brancos afundaram na pele macia do pulso de Ju, a mesma mão que ela estendia para ajudá-lo a se levantar. Tom sentiu o sangue quente verter para dentro de sua boca e logo em seguida sentiu-se revigorado, as articulações voltando a ficar firmes, a vista rapidamente ficou clara de novo e ele viu nitidamente o terror no rosto da moça, à medida que seu rosto perdia a cor, até chegar a um branco adoentado. Dessa vez, Tom aguçou os ouvidos e se concentrou para perceber o momento exato em que o coração de sua vítima começasse a diminuir o ritmo.

Ju caiu ao seu lado na rua, o rosto voltado para os paralelepípedos, a boca levemente aberta de surpresa. O condutor aproximou-se, sem entender o que tinha acontecido. Tom apenas olhou para ele e seus olhos automaticamente guiaram-se para o pescoço, identificando precisamente as linhas roxas das veias sob a pele. Movendo-se com uma velocidade antes desconhecida, o rapaz ergueu-se. Seus braços envolveram o homem de uma maneira serena e os olhos aquosos do condutor o fixaram, vidrados, a boca aberta a meio caminho de dizer alguma coisa. Os dentes do vampiro rasgaram o colarinho da camisa para chegarem à pele. Dessa vez Tom conseguiu saber exatamente quando soltar o homem, que rolou para o lado de Ju, seus rostos pálidos adquirindo a coloração azulada da noite.

Tom admirou a cena, sentindo-se intimamente satisfeito. Ria-se da liberdade de culpas que sua nova existência poderia agora lhe proporcionar. O que era vida diante daquilo tudo? Para ele nada, verdadeiramente nada. Olhou para cima e pensou que poderia tentar voar como vira Katherine fazer. Mas ainda era cedo. Faltavam várias horas para amanhecer e a noite novamente parecia fantástica. Uma chama tinha se acendido dentro dele, queimando mais e mais a cada inspiração. Sentia novamente o calor da vida, agora mais intenso que jamais sentira quando efetivamente era vivo. Cada sombra na rua era um convite à transgressão. Não existira nada, absolutamente nada, na sua vida de mortal comparável ao vigor e à liberdade de sua nova natureza.

Tom nunca soube quanto tempo passou admirando a noite, andando por aquelas avenidas como se nunca as tivesse visto antes, até pressentir que o amanhecer se aproximava. Voltou andando para casa com toda a agilidade que sua nova condição lhe permitia. A casa dos Chaworth estava mergulhada em silêncio e o jovem estranhou o fato de a luz da varanda não estar acesa. Badaladas distantes anunciavam a primeira missa da manhã. Um barulho de rodas rangendo prenunciava a chegada do leite.

A sala estava vazia, como era de se esperar, mas havia ali uma desordem fora do comum. O piano jazia aberto, havia um livro sobre o console da lareira e uma xícara de chá pela metade na mesinha redonda ao lado de um vaso de porcelana cheio de rosas vermelhas. Um jogo de xadrez interrompido no meio ocupava a mesa de centro. O jovem Riddle percebeu quando seus sentidos voltaram a ficar alertas. Sentiu um cheiro conhecido no ar, mas não pôde identificar exatamente o que era.

Seus olhos de vampiro identificaram a luz cinzenta que precede o amanhecer atravessar as cortinas da sala. Ele sabia o que tinha que fazer. Precisava dormir. Mas sentia que algo terrível havia acontecido na casa. Mirou mais uma vez as rosas vermelhas, as enormes corolas abertas como se lhe sorrissem. Foi quando ele se deu conta do que seu instinto estava tentando lhe avisar.

Subiu correndo as escadas e encontrou o corredor escuro, exceto por um fio de luz que surgia sob a porta do quarto de Virginia. Tom Riddle sentiu a espinha gelar enquanto seus ouvidos se apuravam para divisar o que se passava no quarto. Aproximou-se rapidamente da porta, mas assim que tocou a maçaneta ouviu um som farfalhante, como um pássaro que levanta vôo. Sabendo perfeitamente o que significava aquilo, Tom sentiu os joelhos cederem e caiu de mau jeito, seus dedos deslizando na maçaneta o suficiente para que uma fresta se abrisse de modo que ele pôde ver o interior do quarto. A cabeleira flamejante espalhada no chão lhe deu a certeza de que seu instinto mais uma vez acertara. O vampiro desviou os olhos da cena; queria ir embora, não queria tirar aquela prova, mas não podia.

Reuniu todas as forças que tinha para erguer o corpo e avançar em direção à luz dentro do quarto. Virginia parecia estar dormindo, o vestido rosa espalhado no chão como se fosse uma nuvem – e a menina era um anjo que descansava sobre ela. Mas estava morta e Tom já sabia disso antes mesmo de tentar despertá-la. Seus cabelos emolduravam o rosto gracioso, pálido como cera, e entre seus pequenos dedos havia uma rosa vermelha.

O vampiro não pensou muito no que fez depois. O vento entrava pela janela aberta, sacudindo as frágeis cortinas de renda. Não pensou que poderia morrer fazendo aquilo, apenas saltou e sentiu seus cabelos serem puxados para trás pelo vento à medida que seu corpo adquiria velocidade. Não era capaz de raciocinar direito. Tom Riddle apenas guiou-se pelo cheiro das rosas de Katherine, pousando no teto de um luxuoso hotel em Westbourne Terrace, provavelmente a parte mais fina de Londres naquele tempo. Esgueirou-se pelo telhado até chegar à calha, onde se agarrou para olhar, de cabeça para baixo, o interior do quarto.

Katherine usava uma camisola branca de seda. Estava sentada diante do espelho da penteadeira, penteando os longos cabelos dourados. Tinha no rosto um sorriso de incomensurável satisfação. Quando terminou, tirou os brincos e a gargantilha, colocando-os ao lado da escova sobre a penteadeira. Levantou, e a brisa que entrava pelas janelas abertas inflou o tecido leve da camisola, fazendo com que parecesse efetivamente um fantasma. Ela caminhou até a parede a fim de fechá-las, ainda tinha na mão a rosa vermelha que Tom tinha farejado para encontrá-la. Estendeu o braço pálido para puxar uma das vidraças e seus olhos verdes pareceram sair de foco quando deram com Tom Riddle pendurado como um morcego.

Recuou assustada para o interior do quanto, as mãos cruzadas no peito como se temesse que Tom pudesse atingi-la ali. O vampiro saltou agilmente para dentro. Ela tentou abrir os lábios para murmurar alguma coisa, mas a voz não saiu. Os olhos dele, exageradamente negros, a fixavam, não transparecendo ódio, apenas frios e ausentes, efetivamente mortos porque, como a vampira prometera, tirara dele sua vida. Os olhos dela, verdes e suaves, demonstravam um sentimento contraditório, talvez uma mistura de medo e desejo de mostrar superioridade.

Ela gritou quando os dentes dele penetraram em seu ombro, o sangue saindo com uma velocidade anormal, escorregando pelo tecido alvo da camisola até que a linha vermelha se estendesse quase até o joelho. A vampira não conseguiu reagir, ficou apenas de olhos fechados enquanto sua força se perdia. Seu rosto adquiria aos poucos uma tonalidade acinzentada. Tom ficou sentado no caixão branco que ocupava o centro do quarto, o queixo apoiado no dorso da mão direita, observando enquanto o sangue empoçava no tapete cor de pêssego.

“Espero que aprecie a sua morte tanto quanto aprecia a dos outros, Katherine Boufleurs”, murmurou Riddle, bem junto ao ouvido da vampira caída no chão, antes de saltar novamente pela janela, correndo para chegar em casa antes que os primeiros fachos amarelados surgissem no horizonte.

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