Sensibilidade



Devo ir aonde a frota de estrelas está ancorada e os jovens capitães de estrelas brilham.

Herman Jaines Elroy Flecker
O Patriota Moribundo



- Sabe o que é curioso? - perguntou Harry, sentado à mesa de sua cabine, enquanto observava Dino servir o vinho com habilidade.

- O seu gosto para gravatas? - arriscou o amigo, olhando com ar duvidoso para a gravata florida de laço elaborado que Harry colocara para o jantar.

Ele o ignorou, prosseguindo:

- Quando eu estava na escola, não conseguia me lembrar de uma declinação de latim, nem da tabela dos elementos. Ainda assim, neste navio, eu consigo manter cada fato e número com toda a clareza em minha mente. Por que acha que isso acontece?

- Talvez porque declinações do latim não o ajudem em nada a lidar com estivadores desonestos.

Harry lembrava-se nitidamente das intermináveis horas de aulas enfadonhas em Albion.

- Por que não posso aprender algo apenas para aumentar meu conhecimento?

- Você está começando a falar como seu pai.

Harry sentiu um calafrio percorrendo-o. Era verdade. Lembrava-se de todas aquelas ocasiões humilhantes em que permanecera diante de James Potter, inquieto por dentro enquanto o pai o sabatmara exaustivamente a respeito de Horácio e o preço do tabaco em Richmond.

Se você viver com a cabeça nas estrelas, como vai manter os pés firmemente plantados no chão? o pai costumara lhe perguntar em tom severo.

- Não será necessário, se eu for para o mar - murmurou Harry.

- O que disse?

Ele sacudiu a cabeça.

- Nada. Você sabe, eu mantenho as estrelas aqui também. - Tocou a têmpora. - Desde que éramos pequenos, eu tenho sido capaz de ler as estrelas tão facilmente quanto a maioria dos garotos sabe ler suas lições.

Dino colocou a tampa na garrafa de cristal. O capitão anterior do Cisne de Prata fora um homem de excelente gosto e terríveis práticas comerciais. Quando Arthur Weasley descobrira a extensão das trapaças do homem, ele mandara prendê-lo, deixando no navio boa parte de seus ganhos ilícitos. Harry herdara alojamentos confortáveis, sem dúvida.

Embutido na parede da cabine, imperceptível por trás de um painel falso, achava-se um cofre de aço. Além do próprio Arthur, apenas Harry sabia a combinação. Quando vendesse a carga no Rio de Janeiro, receberia o pagamento em libras esterlinas. Tudo iria para o cofre, que não deveria ser aberto até que Arthur o fizesse, quando o Cisne de Prata regressasse.

- Eu me lembro - disse Dino, com um meneio de cabeça. - Quando éramos pequenos, costumávamos subir em nosso observatório nas noites claras e fazer de conta que estávamos navegando pelos oceanos, guiando-nos pelas estrelas.

Harry abriu um sorriso saudoso, lembrando-se dos dois deitados lado a lado sobre o chão de tábuas da casa na árvore, as mãos apoiadas sob a cabeça, os olhares fixos no céu. A brisa costumara agitar as folhas da árvore, mas para os ouvidos de menino de ambos aquele fora o som do imenso e profundo Atlântico passando junto ao casco de seu navio. O destino sempre fora um lugar tirado da imaginação dos dois. Haviam-no construído a partir de seus próprios sonhos de infância, idealizando-o como uma ilha perfeita, com tudo que um menino poderia querer: árvores frutíferas, lagoas de água fresca para se nadar, algumas repletas de peixes onde pudessem pescar. Nada de tarefas, nem de escola, nem de preceptora severa ou pai reprovador, ou ainda de mãe superprotetora.

- Algum dia chegamos àquele lugar com que costumávamos sonhar? - Harry verificou suas abotoaduras reluzentes. Estavam perfeitas. - Eu não me lembro.

Dino tinha uma expressão pensativa e distante no rosto.

- Ainda estamos procurando, capitão. Ainda estamos procurando.

Uma batida suave soou à porta, e Lily entrou na cabine, seguida de Fayette. Harry saudou-as com o cavalheirismo sulista que lhe fora incutido até os ossos: uma mesura galante, um sorriso charmoso, um aceno floreado na direção da mesa.

Então, avistou Hermione parada com uma expressão incerta no corredor. Uma onda de pertubação dominou-o. Se ela se sentia pouco à vontade, era por culpa própria. Afinal, usara sua influência com Arthur para assegurar um lugar para si mesma a bordo daquele navio. Ele estava determinado a usar sua posição como capitão para fazê-la arrepender-se do fato.

- Você é um membro da tripulação - disse-lhe. - É melhor comer no refeitório com os homens. - Começou a fechar a porta.

- Oh, Harry, por Deus! - exclamou a mãe, segurando a porta antes que batesse. - A srta. Granger é minha convidada. Não vou deixá-la fazer sua refeição no meio dos marujos.

- Não importa - murmurou Hermione. - Se o capitão está ordenando que eu vá fazer minha refeição em outro lugar, eu devo obedecer.

- Mas eu sou a mãe do capitão - declarou Lily, afastando Harry para o lado. - Entre, querida, e nós todos celebraremos nossa última noite antes da partida.

Hermione não olhou para Harry enquanto se adiantou pela espaçosa cabine.

Ele, por sua vez, não teve coragem de expulsá-la. O cabelo penosamente arrumado, o estilo ultrapassado do vestido preto, a maneira como ela apertava os olhos por trás das lentes grossas dos óculos, tudo aquilo o fez sentir uma espécie de. De quê? Aborrecimento, sim, e algo talvez próximo à compaixão.

Tentava descobrir por que seus pensamentos insistiam em girar em torno dela. Sempre fora um homem que atraía mulheres bonitas, e a srta. Granger não era bonita. Apreciava o charme feminino, e ela não era nem um pouco charmosa. Gostava de uma conversa leve e descontraída, e aquela mulher não era uma coisa nem outra.

Então, por que não lhe saía da cabeça?

Talvez fosse por causa dos segredos que ela guardava nas profundezas daqueles olhos castanhos. Sem poder evitar, ele queria saber que pensamentos eram guardados ali, que idéias. Que esperanças e sonhos.

Obviamente, não queria ouvir a respeito da paixão recolhida e equivocada por Ronald Weasley, mas outras coisas a respeito de Hermione, quem era e o que queria, o que amava e odiava, o que era capaz de surpreendê-la, o que a deliciava, o que a enfurecia.

Imediatamente, afastou tais pensamentos. A única razão para querer desvendar o íntimo daquela mulher era para poder passar a controlá-la, mantê-la na linha e longe de seus assuntos.

Tratou-a com zombeteira cortesia.

- Nossa primeira noite a bordo do Cisne - declarou. - Devemos fazer um brinde.

- Não tomo bebidas fortes - a voz dela soou rápida e nervosa.

- Então, eu lhe asseguro, serviremos apenas bebidas fracas - respondeu ele. Um olhar de aviso da mãe o impediu de prosseguir.

- Tem algum suco de frutas? - indagou Hermione.

- Não, não tenho nenhum suco de frutas - respondeu Harry, ainda sem poder conter o tom zombeteiro. - Lembre-se, isto é uma viagem marítima comercial, não um cruzeiro de lazer.

Ele e Dino conduziram as damas a seus lugares em torno da mesa comprida. Uma vez que a jornada tivesse se iniciado, refeições formais como o jantar daquela noite seriam raras e, portanto, Harry pretendia desfrutá-lo, mesmo com a presença da pertubante srta. Granger.

Enquanto Dino servia mais vinho da garrafa de cristal, Fayette encontrou-lhe o olhar.

- Acho melhor eu ir para o refeitório dos marujos - declarou ela, fitando-o com um ar de censura. - Não combino com nenhum apreciador de vinhos finos de nariz empinado.

Dino pousou as mãos nos quadris.

- Mulher, você me conhece desde pequeno. Não fique olhando para mim como se eu tivesse alguma doença.

- Talvez você tenha, garoto - disse Fayette num tom que Harry reconhecia de sua infância. - Está todo arrogante agora.

O momento poderia ter ficado impregnado de tensão, mas Dino soltou um riso divertido.

- Não, senhora, eu sou como qualquer outro homem.

A criada torceu os lábios.

- Arrogante.

- Todos os homens o são, Fayette - disse Lily. - Até o último deles.

Harry sabia que, quando as notícias da libertação de Dino tinham chegado a Albion, alguns dos trabalhadores das plantações tinham ameaçado se rebelar. A simples idéia de que um deles estava vivendo como um homem livre os insuflara. Lily, tendo acabado de ficar viúva na ocasião e prestes a partir para uma temporada na Inglaterra, adiara a viagem a fim de acalmar os ânimos e melhorar as condições de vida dos trabalhadores escravos.

Hermione observava a conversa, seu rosto empalidecendo. Lily cobriu-lhe a mão com a sua sobre a mesa.

- Terá que nos desculpar, minha querida. Somos todos uma família e não deveríamos estar discutindo dessa maneira na frente de uma convidada.

- Eu não sou uma convidada. Sou um “membro ocioso” da tripulação - declarou Hermione

Por alguma razão, todos riram, e a tensão se dissipou enquanto Fayette chamou Dino de lado e ambos subiram para o convés.

- Ele é o seu assistente - lembrou Lily ao filho. - Acha que deveria ficar?

- Deixe-os ir. Há coisas que ambos podem falar apenas um ao outro.

- Os dois não se vêem há um longo tempo. O que Fayette pode ter a lhe dizer?

Harry soltou um suspiro, sentindo o peso do olhar de Hermione.

- Mãe, eu sempre me considerei como um irmão de sangue de Dino, mas nunca vivi naquela pele. Fayette, sim. - Ele se compadecia pelo homem que tinha sido seu único amigo estável desde a infância. Compadecia-se por Delilah, a esposa de quem Dino sentia tanta falta que às vezes chorava secretamente à noite, contendo os soluços, cerrando os dentes. Mas quando amanhecia, ele sempre enfrentava o dia com forças renovadas, seriamente comprometido com o objetivo de ambos.

Se aquela viagem corresse bem, Dino estaria reunido a Delilah e às filhas em menos de um ano. Era a única coisa que importava na vida de Harry.

O Doutor e Timothy chegaram com o jantar numa grande bandeja. A última refeição antes do início de uma jornada era sempre farta. Peru assado com batatas, pão fresco e ainda quente, caçarola de legumes e um bom vinho tinto. A conversa girou em torno do momento em que zarpariam do porto de Boston, da longa temporada que Lily passara na Europa, do fabuloso Rio de Janeiro e da tia que Harry nunca conhecera. Ou mais especificamente, ele e a mãe conversavam, enquanto Hermione ouvia com atenção. Tia Rose tinha se casado com um próspero plantador, um barão do café como eram chamados, e agora, viúva, vivia numa mansão tão grandiosa quanto qualquer castelo dos livros de histórias. Ela e Lily não se viam havia vinte anos.

Depois do jantar, Lily desculpou-se para se recolher à sua cabine e dormir. Harry acompanhou a mãe e Hermione até o corredor.

Lily fez uma pausa diante da porta de sua cabine.

- Ainda é cedo. Harry, por que não leva a srta. Granger para uma volta pelo convés?

Por pouco ele não praguejou por entre os dentes.

- Uma volta pelo convés? - repetiu. - Como já disse, isto não é um cruzeiro. - Sem mencionar que ainda se ressentia da intromissão da srta. Granger naquela viagem.

Hermione piscou depressa e balbuciou.

- Eu acho que... - Apertava as mãos com força diante de si. - Capitão Potter, estou a seu serviço, e sei muito bem que não tem a menor obrigação de me escoltar pelo navio.

- E você não é obrigada a aceitar minha escolta. - Harry sentia a pertubação voltando. Notou o olhar de aviso da mãe. - Mas não há lei em terra firme ou no mar que proíba um passeio noturno.

Ela lançou um olhar na direção da escada, sua vontade de subir ao convés principal evidente. A mulher era mais fácil de decifrar do que uma charada de criança.

- Não, não há.

Lily murmurou um boa-noite e entrou em sua cabine. Resignado, Harry ofereceu o braço a Hermione.

- Vamos?

Ela meneou a cabeça, mas não lhe aceitou o braço, subindo na frente pela escada que levava ao convés. A anágua de crinolina e as botas rigidamente amarradas produziam ruído no silêncio da noite. Hesitou na metade da escada. Estava escuro demais para ver qual era o problema, mas de repente, Harry ouviu o som de algo se rasgando e uma exclamação mortificada.

- Você está bem? - perguntou.

- Parece que pisei na barra da minha anágua. Acho que vou... oh, céus!

Ela caiu para trás, colidindo com Harry, que, na posição em que estava, impediu-lhe a queda, mas foi jogado de encontro à parede. O ar deixou-lhe os pulmões e, por um momento, não pôde respirar. Num reflexo, abraçara-a pela cintura quando ambos haviam colidido. Continuou segurando-a, surpreso com a verdadeira couraça formada pelo espartilho dela. Como a mulher conseguia respirar?

- Por Deus! - exclamou Hermione, num sussurro mortificado. - Esmaguei você de encontro à parede!

- Estou bem - assegurou ele, soltando-a quando teve certeza de que recobrara o equilíbrio.

Hermione cambaleou de leve, mas logo se agarrou ao corrimão.

- Lamento profundamente, capitão Potter.

Ela era tão insegura, tão vulnerável. Aquela era a oportunidade perfeita para Harry extravasar sua raiva, para dizer-lhe que era totalmente inadequada para seus deveres e mandá-la deixar o navio. Hermione não argumentaria de maneira alguma agora.

Mas estudou-lhe a maneira como baixara a cabeça, como deixara os ombros caldos com um ar derrotado. Lembrou-se dela no jardim naquele dia, urna erva daninha obscura entre as flores resplandecentes de Beacon Hill, a solteirona com uma adoração secreta por um herdeiro que, apesar de desprovido de inteligência, devia ser cobiçado por boa parte das jovens da sociedade. Ele deu-se conta de que, com uma palavra, poderia esmagar Hermione.

- Tente erguer a barra das saias para afastá-las de seu caminho - sugeriu, um tanto brusco. - E, a partir de amanhã, use menos anáguas. Ah, e não se esqueça de afrouxar essa couraça.

- Como disse?

- A couraça. Esse maldito espartilho.

Vendo-a continuar a subir, Harry manteve-se alerta, pronto a ampará-la outra vez caso tornasse a cair. Mas não foi o caso. Quando ambos saíram para o convés, uma noite clara e brilhante saudou-os. A agradável brisa marítima soprou-lhes suavemente no rosto.

- Tudo está pronto para zarparmos amanhã - disse o corpulento Gerald Craven, a cabeça calva reluzindo sob as estrelas enquanto se aproximava da escada que conduzia ao refeitório. - Eu resolvi o problema de acondicionamento da carga.

- Excelente, Sr. Craven.

- Pelo que sei, carga e lastro mal distribuídos podem causar um problema de estabilidade no navio - comentou Hermione depois que o contramestre desceu do convés.

Harry estava surpreso que ela soubesse algo sequer a respeito de lastro.

- Andou lendo outra vez.

- Charles Dana. Ele explica por que é tão perigoso deixar a carga mal armazenada. Em mares revoltos, qualquer coisa deixada no convés pode se soltar e danificar o navio ou machucar alguém da tripulação. No porão, a carga solta, deslizando de lá para cá, pode desequilibrá-lo.

Quando Hermione falava sobre coisas que lia nos livros, libertava-se de parte de sua timidez. Enquanto ela se segurava na amurada, Harry pôde notar-lhe a força das mãos sobre a madeira envernizada, a linha reta dos ombros enquanto olhava para o porto escuro. Era evidente que queria fazer aquela viagem, desesperadamente. Não era preciso perguntar a razão. Ele sabia. Bastava pensar nos pais e irmãos de Hermione e na maneira como a família Granger se portava para saber.

Só gostaria que ela tivesse arranjado outro navio para escapar de sua atual realidade.

Hermione baixou os óculos pelo nariz e ergueu o olhar para o céu.

- Adoro as constelações no outono - disse. - Será que é o frio que as deixa tão claras?

- Talvez. – Ele estudou-a - Por que você usa óculos se sempre precisa olhar por cima deles para enxergar? - perguntou Harry, sem se importar com sua impertinência.

- Minha mãe temeu que minha vista tivesse enfraquecido de tanto eu ler e, portanto, insistiu para que eu os usasse. Para ser franca, acho que enxergo melhor sem os óculos.

Ele mordeu a língua para evitar dizer algo ofensivo a respeito da mãe dela.

- Só estamos à espera da maré - comentou, mudando de assunto.

- Pensei que os homens nunca fossem terminar de trazer a carga. Acho que eu nunca tinha visto tanto gelo.

- Ouro branco. O nosso êxito depende de conseguirmos levá-lo rapidamente ao porto do Rio. Se o consignatório ficar satisfeito e eu negociar uma boa carga para trazer de volta, a viagem inteira deverá deixar o Sr. Weasley satisfeito.

- Estou curiosa. - Hermione virou-se para fitá-lo. - Você me parece tão ambicioso, tão determinado a ganhar uma fortuna nesta empreitada.

- Com certeza, isso não fere a sua sensibilidade ianque - retrucou ele. Aquela viagem, no que lhe dizia respeito, tinha razões muito mais complicadas, mas sabia exatamente o que faria com seus ganhos.

- Céus, não. Mas você tem que admitir que é incomum para um cavalheiro sulista tornar-se um capitão de navio ianque.

Harry ainda estava aborrecido com a maneira como ela conseguira um lugar no navio, mas, ao mesmo tempo, igualmente curioso.

- Permite-me dizer-lhe algo bastante pessoal?

- Posso impedi-lo?

- Não.

- Então, prossiga.

- Srta. Granger, acho que ambos somos a ovelha negra de nossas famílias. Eu, porque me recuso a erguer minha fortuna nas costas dos escravos, e você porque... - Droga. Acabara colocando a si mesmo numa situação delicada agora.

- Porque sou a solteirona feia numa família de pessoas bonitas e sociáveis - completou ela. - Está totalmente certo, capitão Potter - acrescentou, começando a se afastar.

Ele segurou-lhe o braço.

- Não coloque palavras nos meus lábios. Não foi o que eu quis dizer.

Hermione observou-lhe a mão em seu braço por tanto tempo que o deixou pouco à vontade e o fez soltá-lo.

- Entendo. E o que quis dizer, afinal?

- Simplesmente que... maldição. Você é sempre assim tão sensível?

- Sim. É um dos meus grandes defeitos. - Hermione olhou na direção da proa. Podiam avistar as silhuetas de Dino e Fayette perto da ponte de comando, as cabeças inclinadas, parecendo absortos em sua conversa.

- Estão falando de casa – explicou Harry. - Fayette pode lhe dizer coisas que ninguém mais teria como saber.

- Por que ele quer ouvir noticias do lugar onde estava em regime de escravidão?

Harry hesitou e, então, concluiu que não haveria nenhum mal em lhe contar.

- Porque Dino deixou parte de si para trás.

- O que quer dizer?

- Sua esposa e filhas. Elas pertencem aos nossos vizinhos, os Beaumont.

Ela arregalou os olhos, parecendo perplexa e consternada.

- Céus - murmurou. - Então, a liberdade para ele é o exílio.

- Foi uma decisão difícil de tomar. - Harry lembrou-se de como ficara insone noite após noite, angustiado enquanto o dia de sua partida para Harvard fora se aproximando. - Se eu lhe desse a liberdade, ele nunca mais poderia ver sua família novamente. Mas se permanecesse um escravo, viveria como a sombra de um homem, preso a mim pelo resto de seus dias e seus filhos depois dele.

Hermione desmanchou-se em lágrimas. Desconcertado, Harry meteu a mão no bolso e encontrou um lenço limpo.

- Pelo que vejo, você tem sentimentos fortes em relação à questão da escravidão, não é?

- É exatamente isso. Eu achei que tivesse, mas até este momento eu nunca havia entendido de verdade o que significa. Você tomou a decisão certa. - Ela enxugou as lágrimas e amarrotou o lenço na mão. - Eu o lavarei para você - prometeu.

Ele quase sorriu, mas conteve-se. Não precisava da aprovação de ninguém, muito menos da admiração daquela empertigada mulher de Boston. Viviam em mundos completamente diferentes. Era apenas a proximidade da vida a bordo, causada pelas circunstâncias, que dava a ilusão de intimidade.

- Acho melhor eu me recolher à cabine - disse Hermione. - Sei que não conseguirei dormir, mas prometi a mim mesma que tentaria.

Afastou-se, caminhando na direção da escada. Os pés, confinados às pequenas botas de saltos, moviam-se, incertos, pelo convés. As botas, decidiu Harry, teriam que ser eliminadas. Assim como o traje de matrona de Beacon Hill. As volumosas saias pretas e anáguas, o rígido espartilho; enfim, todos os apetrechos do conservadorismo não se ajustavam a um navio mercante. O cabelo dela era um problema também, uma vez que insistia em prendê-lo em parte no alto da cabeça, deixando soltos aqueles incômodos e grossos cachos na frente. Portanto, o cabelo teria que mudar também, decidiu, junto com o vestido e as botas.

Abriu um sorriso diante da imagem que evocou. Fazer com que a sisuda srta. Granger andasse pelo convés feito um marujo descalço seria um grande desafio, sem dúvida.

Harry Potter sempre gostara de um desafio.


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