Correndo atrás



Uma raça dura, mas nervosa, tenaz, mas inquieta [os ianques]; materialmente ambiciosa. Uma raça cujo membro típico está eternamente dividido entre uma paixão pelo que é certo e um desejo de se aventurar no mundo.

Samuel Eliot Morison
História Marítima de Massachusetts


- Esta gola coça - queixou-se Dino. - E o casaco está apertado debaixo dos braços.

- Pare de reclamar - retrucou Harry. - Tenho uma dor de cabeça terrível e nem sei bem o que estamos fazendo aqui.

- Perdendo tempo, quando deveríamos estar tentando salvar essa sua pele - observou Dino, passando a mão sob a gola de seu casaco. - E estes sapatos estão me matando - acrescentou.

Harry virou-se para ele com um olhar faiscante, e o movimento súbito causou-lhe um latejo imediato na cabeça. Mas, após alguns segundos, seu olhar entrou em foco e viu que, sim, estava realmente ali, a meio caminho de Beacon Hil, numa missão tão absurda que se perguntava se ainda estaria embriagado com o que bebera na noite anterior.

- Não é a minha pele que precisa ser salva - respondeu.

Dino, que era incrivelmente alto, baixou o olhar para Harry, cuja estatura não deixava nada a desejar em comparação à sua, mas era um pouco menor.

- Então, explique por que tive que despistar os seus credores nesta manhã.

- Que credores? E como diabos me encontraram?

- A nossa chegada foi anunciada numa festa num destes palacetes - declarou Dino, fazendo um gesto amplo com a mão. As sólidas mansões de tijolos enfileiravam-se pela elegante e ampla alameda, suas fachadas imponentes e gramados impecáveis parecendo querer negar peremptoriamente que algo tão desagradável quanto à pobreza existia no mundo.

Harry estivera ali com freqüência na época em que estudara em Harvard. Comparecera a jantares entediantes e bailes pomposos naquele verdadeiro reduto da elite. Mas quando, ingenuamente, tentara buscar amizade baseado em algo mais profundo do que riqueza ou habilidades atléticas, encontrara um esnobismo tão arraigado que simplesmente não pudera suportar.

- Os credores desta manhã eram o Sr. Lucius, do Fundo de Harvard, e seu assistente, o Sr. Keith - explicou Dino. - Aparentemente, a generosidade deles termina quando um homem deixa Harvard.

- E, para piorar tudo, minha mãe decidiu voltar da Europa.

- Sim. E você sabe do que mais? Ela irá para o Rio de Janeiro conosco.

Harry parou de caminhar abruptamente, a incredulidade ainda maior que sua dor de cabeça.

- O quê?

- Ela e a criada pessoal, Fayette, incluíram-se como passageiras. Sua mãe quer ir ver sua tia no Rio.

- Excelente. Sempre sonhei em passar semanas no mar na companhia de minha mãe. - Com passos lentos, Harry retomou a caminhada. Amava a mãe, mas ambos pertenciam a mundos diferentes. Lílian Evans Potter era como uma gardênia de estufa... bonita, delicada e dominante quando em seu auge.

Ela não fazia idéia do que ele planejara para aquela viagem e por que era tão importante. Esperava muito que não interferisse em seus planos.

- Acha que sua mãe dirá ao Sr. Weasley que você mentiu a respeito de suas credenciais de comandante de navio? - arriscou Dino.

Harry lançou-lhe um olhar atravessado.

- Você está conseguindo piorar minha dor de cabeça. E o dinheiro que ele ganhou graças a mim deverá deter quaisquer perguntas.

Uma luxuosa carruagem preta passou por ambos, a parelha musculosa esforçando-se para vencer a ladeira à frente revestida de tijolos. Parecia estranho andar por aquelas ruas, aquele lugar de ostentação. Os residentes prosperavam no comércio; ainda assim, a fortuna que possuíam era herdada, construída solidamente no tráfico de ópio e escravos. Não eram muito diferentes de seu próprio pai, pensou Harry, embora em vez de traficar escravos ele apenas os tivesse possuído.

Harry era considerado um traidor de sua gente por ter ingressado na radical instituição ianque conhecida como Harvard. Quando deixara a universidade, jamais pensara que retornaria a Beacon Hil outra vez. Certamente, não achara que seria bem-vindo, tendo “desgraçado” a si mesmo fugindo para o mar.

- Não sei por que está fazendo isto - resmungou Dino. - Você deveria ter escrito uma mensagem para a estranha mulher e recusado a oferta.

Harry examinou as discretas plaquetas de latão identificando cada casa enquanto passavam. Greenwood, Appleton, Kimball, Lowell... eram conhecidas como as Primeiras Famílias de Boston, sendo clãs dos mais fechados.

- Algumas coisas exigem uma resposta que seja dada pessoalmente - explicou. - Além do mais, estou curioso a respeito dessa estranha mulher, como você mesmo se referiu a srta. Granger. - Ele deu um tapinha na carta guardada no bolso do casaco. - Que tipo de mulher me faria uma oferta peculiar dessas?

Dino abriu um largo sorriso, os dentes alvos brilhando em contraste com a pele escura.

- Você deve tê-la impressionado a valer, capitão.

- Uma idéia assustadora.

Ambos caminharam ao longo de uma fileira de arbustos cuidadosamente aparados, aproximando-se de uma imponente mansão entre as ruas Chestnut e Beacon. A casa dos Granger. Harry conhecera alguns Granger na universidade... Thomas e Peter. Seriam parentes de Hermione?

Parou de caminhar, a cabeça pendendo para trás enquanto olhava para o alto da majestosa mansão. O sol intenso incomodou-lhe os olhos, aumentando sua dor de cabeça.

- Acho que podemos concluir - disse a Dino - que ela não fez essa oferta porque está precisando de dinheiro.

- Provavelmente não. - Dino abriu o portão de ferro preto e reluzente, e os dois entraram, atravessando um jardim meticulosamente cuidado, de ar rigoroso e estilo grego, com elegantes pedestais de mármore e estatuetas em pontos estratégicos entre os arbustos bem-aparados.

A aldrava de bronze da porta personificava um Netuno de cenho franzido. Harry apanhou-a, mas antes que batesse à porta, o amigo disse:

- Tenho uma pergunta, capitão.

- E qual é?

- Você já arranjou um intérprete para a próxima viagem?

Harry soltou um suspiro, a cabeça ainda latejando, o gosto de rum parecendo não ter se dissipado de sua boca.

- Se quer saber, eu já considerei uma façanha ter encontrado o chão debaixo dos meus pés quando me levantei da cama nesta manhã.

Dino estudou-o, os olhos negros avaliando-o com a intensidade de quem já o conhecia bem após longos anos de amizade.

- Por que você bebe dessa maneira? - perguntou, num tom gentil. - Por que bebe até o ponto de enlouquecer?

Harry bateu à porta com a pesada aldrava.

- Porque é mais fácil do que manter a sanidade - resmungou. Sua vida, refletiu, não deveria ter tomado àquele rumo. Segundo as convenções, àquela altura deveria estar sentado na sua varanda da frente no sul, bebericando um chá gelado, com um solícito criado parado ao lado, abanando-o. Em vez daquilo, tornara-se um capitão do mar no comando de uma tripulação rude. Um sulista comprometido com uma causa que ia contra os interesses de sua família.

A porta abriu-se de repente sem ruído e um mordomo de ar formal e uniforme impecável saudou-o. Parecia estar bem familiarizado com os trajes socialmente aceitáveis, pois com um breve olhar avaliou-lhe o casaco caro como adequado.

- O que deseja, senhor?

- Sou Harry Potter. Estou aqui para ver a srta. Granger, se fizer a gentileza de me anunciar.

O mordomo afastou-se para o lado, dando-lhe passagem. Ele e Dino adiantaram-se por um tapete oriental em tons de vermelho e azul. Um espelho de moldura dourada adornava uma parede, e a um canto achava-se um suporte para planta, mas estava vazio.

- Irei verificar se a srta. Susan está em casa - disse o mordomo.

O nome não soou familiar a Harry, nem a Dino, a julgar pela discreta cotovelada que lhe deu.

- Na verdade, seria a srta. Hermione, certo?

O mordomo permitiu-se arregalar os olhos. Se diante de seu sotaque sulista ou a menção a srta. Hermione. Harry não fez idéia.

- Está aqui para ver a srta. Hermione?

Ele abriu um sorriso paciente.

- Exato. Ela está em casa?

- Eu... - O homem franzino hesitou, em seguida respondeu: - Irei verificar. Se desejar, pode aguardar no salão de visitas. O seu criado pode dar a volta até a entrada de serviço nos fundos.

Harry já esperara o erro.

- Este é o Sr. Dino, e não é um criado, mas meu sócio.

O mordomo calmo, distinto, pareceu conter-se a muito custo para não perder a compostura.

- Entendo. Com sua licença?

- Claro. - Seu sujeitinho esnobe, acrescentou Harry silenciosamente enquanto o empertigado mordomo desaparecia pelo corredor.

- Você deveria ter me deixado dar a volta até os fundos - declarou Dino. - A comida e a conversa costumam ser bem melhores lá, de qualquer modo.

- Você não é um criado, droga! - Harry adiantou-se sem cerimônia pelo amplo vestíbulo até o luxuoso salão de visitas. Um imenso lustre de onde pendiam gotas de cristal reinava acima de uma elegante disposição de mobília cara e objetos de arte. Um serviço de chá de prata e um conjunto de garrafas de cristal adornavam um aparador.

- Eu não quis soar ingrato - respondeu Dino, apoiando-se no console azul e dourado da lareira. - Você mudou sua vida inteira para que eu não fosse um criado.

- É verdade, não resta dúvida. E não pense por um minuto que eu me arrependo.

Uma sensação peculiar tomou conta de Harry. Gostava de seu amigo e com um fervor como nunca sentira por seu próprio irmão. Ele e Dino haviam enfrentado tudo juntos, desde os meninos travessos de sete anos do passado até os homens que haviam se tornado agora.

O fato de que um fora senhor e o outro escravo não havia interferido na amizade, ao menos não no princípio.

Harry verificou sua aparência no espelho acima do apa¬rador. Levando em conta a noite que tivera, parecia surpreendentemente bem, os cabelos negros tendo sido aparados naquela manhã por Timothy Datty, o aprendiz do navio. Sua camisa branca e casaco azul-celeste estavam limpos e impecáveis, graças a Luigi Conti, o marujo que confeccionava velas e que era meticuloso em relação àquelas coisas.

Ele tivera sete anos de idade e estivera formalmente vestido no primeiro dia em que Dino lhe era levado, lembrou-se. O pai o fizera esperar no abafadiço salão de visitas de Albion num dia de verão e, exatamente ao meio-dia, Purdy surgira com um garotinho magro e de olhos imensos.

- Este é o meu sobrinho, Dino - dissera Purdy, o olhar baixo à maneira da maioria dos escravos. - Ele é um bom menino, não é, Dino? Um bom menino, sim, senhor.

E Dino surpreendera Harry. Em vez do jeito submisso e deferente dos demais, fitara-o diretamente nos olhos e falara numa voz alta e clara:

- Sou o melhor menino que existe.

Aquele fora o começo. Ambos haviam brincado juntos, feito pescarias e passeios de barco na baía de Mockjack. Harry dormira numa cama confortável de mogno, Dino num colchão de palha no chão; mas, com bastante freqüência, quando Purdy levara a bandeja com o desjejum pela manhã, encontrara a ambos esparramados na grande cama. Sempre que Harry fora à igreja, Dino esperara na carruagem do lado de fora. Quando ele quisera aprender a ler, escrever e fazer contas, Harry o ensinara em segredo.

Quando o pai de Dino fora vendido para pagar dívidas de seu próprio pai, Harry chorara e ficara furioso com ele.

Na época em que os dois garotos tinham completado dezesseis anos, Dino já se casara. Harry havia seduzido um bom número de garotas locais, e debutantes de todas as melhores famílias haviam começado a notá-lo.

A vida teria prosseguido daquela maneira se duas coisas extraordinárias não houvessem acontecido. A primeira, Harry tendo sido aceito para freqüentar Harvard, com ianques radicais e tudo. E a segunda, a sua insistência em ter levado Dino junto. Ele se opusera o máximo possível. Adorara sua esposa e filha, que viviam numa plantação vizinha. Mas Harry persistira demais, fora até autoritário em relação àquilo.

Nenhum cavalheiro que se prezasse matriculava-se numa universidade sem o seu criado, argumentara. Dissera-lhe ser seu dever acompanhá-lo. Não lhe dera escolha. Harry tivera um plano. Não pudera nem sequer contar a Dino a respeito, porque a revolta e a dor de escravo tivera que ser convincente.

Harry sorriu para sua imagem no espelho, lembrando-se do dia em que atravessara a divisa de Mason Dixon e dera a liberdade a Dino. Ele segurara a carta de alforria junto ao peito, emocionado, incapaz de falar enquanto as lágrimas haviam rolado por sua face.

Agora, o empreendimento náutico de ambos os deixara a mais um passo de seu objetivo final. Comprar a liberdade da esposa e das filhas de Dino e levá-las para o norte.

- Deve haver algo errado com ela - comentou o amigo, despertando-o das reminiscências.

- Com quem?

- Com essa mulher. - Dino correu o olhar por uma parede que era inteiramente tomada por prateleira após prateleira de livros de encadernações em couro. - Por que alguém iria querer deixar uma casa como esta?

- Deve haver algo neste tipo de vida que ela não consegue suportar - sussurrou Harry, pensando em suas próprias razões para ter deixado Albion. - Talvez devêssemos perguntar.

- A srta. Granger irá recebê-los no jardim - anunciou o mordomo da soleira da porta. - Acompanhem-me, por favor.

Os dois seguiram-no por um corredor alto e estreito, por onde se enfileiravam quadros de molduras trabalhadas. Retratos da família, concluiu Harry, notando que cada pessoa na tela parecia extraordinariamente bonita. Ou os pintores tinham sido galanteadores demais, ou aquele clã nascera para ostentar beleza.

Passaram por uma ampla varanda envidraçada e saíram para um extenso jardim. O paraíso em miniatura, pensou Harry, notando as videiras, as árvores frondosas, os arbustos em flor. Na extremidade oposta, havia um coberto elegante e abobadado, sustentando por colunas trabalhadas. Num dos bancos ao centro, estava sentada uma mulher de preto, a cabeça baixa enquanto lia um volumoso livro em seu colo.

- Srta. Granger? - chamou-a ele.

Ela ergueu o olhar, piscando várias vezes como se tivesse saído de um lugar escuro para a luz. Um par de óculos escorregara-lhe até a ponta do nariz, e parecia enxergar melhor espiando por cima das lentes.

- Sim. - Como sua voz falhasse, limpou a garganta. - Sim - repetiu. - Capitão Potter. Fico feliz que tenha vindo.

Ele aguardou, observando-lhe as mãos, esperando que ela lhe estendesse uma para que a beijasse polidamente. Em vez daquilo, viu-a segurando o livro com força, exibindo unhas roídas. Hermione tinha, acima de tudo, o olhar indireto, subjugado, de um escravo. Como se temesse que poderia apanhar a qualquer momento.

Inquieto com o pensamento, Harry optou por fazer-lhe uma mesura formal.

- Este é o Sr. Dino, meu sócio e assistente pessoal no Cisne.

Ela segurou o livro com mais força ainda junto a si.

- Eu estava esperando uma mensagem, não dois homens! É uma satisfação conhecê-lo.

Harry jamais conhecera uma mulher mais socialmente desajeitada do que aquela.

Hermione tornou a limpar a garganta e empurrou os óculos até o alto do nariz. O referido nariz estava muito vermelho, indicando uma indisposição, ou que o livro a levara às lágrimas.

Vendo-a espirrar violentamente junto a um lenço amassado, concluiu que estava indisposta mesmo.

- Perdoem-me - disse ela, guardando o lenço no bolso da saia. - Estou com um terrível resfriado.

- Costuma tê-los com freqüência?

- Constantemente. Exceto na primavera, quando é uma febre persistente que me atormenta, embora eu raramente possa dizer a diferença entre as duas enfermidades - Hermione interrompeu-se, parecendo horrorizada. - Perdoem-me por eu ter-me estendido tanto em assunto tão desagradável.

- Não acho nada desagradável um assunto que lhe diga respeito - declarou Harry, forçando sua veia galante ao máximo. Estava ali para recusar a oferta dela e, portanto, era melhor que o fizesse com polidez.

Hermione finalmente pareceu lembrar-se do livro que estava segurando e tornou a se desculpar, fechando-o e pousando-o numa mesinha de mármore ao lado.

Harry lançou-lhe um olhar para ver o título. Os símbolos na capa pareceram apenas vagamente familiares. Ele fizera questão de dormir durante os clássicos na universidade.

- Ptolomeu - disse ela.

- No original grego - presumiu ele.

- Sem dúvida. Eu não iria querer ler Ptolomeu de nenhuma outra maneira. Ele tem uma autoridade tão distinta no original.

- Concordo plenamente - respondeu Harry e teve certeza de poder ouvir um riso querendo escapar da garganta de Dino. - Pelo que entendi, tem grande facilidade com idiomas.

- Sim, sim, tenho. Fui agraciada com a sorte de ter como tutora a minha falecia tia-avó, que foi uma grande letrada em sua época, e também freqüentei o internato de Monte Holyoke. Falo espanhol, francês, italiano, português e tenho boa leitura em latim, grego e hebraico.

Ela era provavelmente mais culta do que a maioria dos graduados de Harvard, imaginou Harry. Curioso... Por que os pais ricos iriam permitir a uma garota tamanha erudição?

- Srta. Granger - começou - eu vim pessoalmente porque qualquer outro meio de contato não faria jus à generosa oferta que me fez.

Hermione apertou as mãos diante de si como se estivesse em grande expectativa.

- Então, irá me levar? Irei para o Rio de Janeiro no seu navio?

- Não. - Harry respondeu rapidamente para dissipar o ar esperançoso que lhe surgia no rosto. - Não é que você não esteja apta de algum modo a fazer a viagem - apressou-se a acrescentar. - O problema é comigo e com minha tripulação. O Cisne é um navio de carga, repleto de trabalhadores. Jamais poderíamos estar à altura dos padrões de uma dama de classe como você.

Ela contraiu o semblante de leve e baixou o olhar. Submissa, derrotada. Harry sentiu-se como se tivesse afogado um animalzinho, e tal sensação deixou-o zangado.

- Achei que me deixaria julgar isso por mim mesma - respondeu Hermione timidamente.

Ele fez um gesto amplo ao longo do esplêndido jardim e em direção à mansão.

- Nada no Cisne de Prata pode se comparar a isto. Não pode trocar o paraíso por meses confinada a espaços apertados na companhia de rudes marujos.

- Posso, sim, se você me permitir.

Que mulher exasperante e complexa era aquela! Harry andou de lá para cá sob o coberto, tentando controlar sua impaciência.

- Senhorita, parece achar que o seu serviço como tradutora e intérprete é tudo o que será requerido de você durante essa viagem. Rivera, nosso antigo tradutor, também era um hábil navegador.

- Usando instrumentos ou observações astronômicas?

- Ambos.

- Ótimo. Também conheço ambos os sistemas. Estudei o Bowditch e fiz cursos de trigonometria esférica. - A timidez dela dissipou-se enquanto falava.

Um assobio baixo ecoou dos lábios de Dino, que se achava no gramado perto do coberto.

- Não uso Bowditch - respondeu Harry, esforçando-se para ocultar a sua surpresa.

- Não é necessário. A posição pode ser determinada sem seu uso - concordou ela.

Na verdade, as fórmulas da trigonometria eram um mistério para Harry, mas não estava disposto a admitir algo assim àquela mulher tão culta.

- Então, você entende alguma coisa sobre navegação. Mas isso não a qualifica para essa jornada.

- Eu diria que entendo mais do que “alguma coisa”.

Hermione ergueu o queixo em desafio. Desafio. Harry imaginou-a em seu navio, desafiando suas ordens.

- Qual a posição adequada para a verga real?

- Trinta e seis graus a bombordo, até que se chegue ao equador. Então, muda para estibordo.

- Conhece outros nomes de vergas?

- Sim, há a verga de sinais, de pendão, redonda, seca, entre outras.

Ele desviou o rosto para esconder a surpresa.

- Saberia me explicar para que serve cada uma delas, suponho?

- Claro. A de sinais é uma pequena verga que agüenta adriças para...

- Está bem, já estou vendo que sabe isso. E o que são adriças?

- São cabos utilizados para içar determinadas vergas e velas.

Harry recusou-se a olhar para Dino, sabendo que o encontraria sorrindo de orelha a orelha.

- Admito, srta. Granger, que você me surpreende e impressiona com o seu conhecimento. Mas para se entender os pontos mais intrincados da navegação é necessário...

- Pelos céus, Harry, é você mesmo? - indagou uma voz da varanda envidraçada.

Hermione soltou um suspiro um tanto trêmulo. Harry protegeu os olhos do sol com a mão enquanto um grupo de pessoas vestidas de branco adiantava-se em sua direção.

Reconheceu os homens de seus tempos de Harvard:

Thomas Granger, famoso por sua habilidade no tênis e infame por seu estômago fenomenal, capaz de conter vastas quantidades de bebida. Seu irmão, Peter, de uma beleza tão extraordinária que chegara a irritar, fora bastante estudioso e benquisto por todos. Achavam-se ali também Neville, um sujeito tolo, dado a intrigas e maledicência e Draco Malfoy, cuja única qualidade memorável era a fortuna de sua família. E, finalmente, Ronald Weasley, o filho e herdeiro de Arthur. Era agraciado com uma beleza de deus grego e uma cabeça assustadoramente oca.

O grupo se aproximou numa onda de sorrisos e apresentações, e Harry cumprimentou as damas, Luna Lovegood e a irmã de Hermione, Susan, que o fazia lembrar de um manequim na loja de uma modista.

- Que prazer revê-lo, Harry - declarou Thomas em seu tom descontraído e confiante de um universitário de longa data. - Você causou um alvoroço e tanto quando deixou Harvard.

- As pessoas em Harvard ficam alvoroçadas facilmente. - Harry fez um gesto na direção de Dino. - Gostaria de lhes apresentar meu sócio, o Sr. Dino.

O grupo apenas olhou para ele. Enfim, Neville deu um passo à frente, fazendo uma mesura.

- O prazer é nosso - gritou, pronunciando cada palavra devagar. - Tenho certeza.

Dino abriu um largo sorriso.

- Eu sou africano, senhor. Não surdo.

Os risos que ecoaram pelo grupo foram um tanto tensos, mas Thomas conseguiu desviar a atenção de Dino para Hermione. Estava sentada feito uma estátua, o rosto pálido, os olhos baixos. A vivacidade que a dominara minutos antes enquanto estivera falando sobre seus conhecimentos dissipara-se por completo.

- Os meus olhos me enganam? - perguntou Thomas, com um riso. - Ou é mesmo verdade? Encontramos minha irmã realmente conversando com um cavalheiro em vez de estar com o nariz metido num livro?

Os demais riram. Hermione conseguiu forçar um sorriso tenso, desconfortável.

- Oh, pare - protestou Susan graciosamente, sacudindo um leque de renda branca. - Não vê que está deixando a pobre Mione constrangida?

Hermione respondeu espirrando violentamente de encontro ao lenço.

- Saúde - murmurou Ron automaticamente.

Ela lançou-lhe um sorriso trêmulo, tímido e curiosamente doce. A julgar por sua expressão, Ron não fazia idéia do que ficava de imediato evidente para qualquer um com um mínimo de inteligência, a pobre garota estava apaixonada por ele.

- Como foi o jogo de croqué? - perguntou ela, num tom gentil, a voz tremendo um pouco.

- Excelente - respondeu Ron. Polidamente, acrescentou - Embora todos tenham sentido a sua falta, é claro.

- Sim, com certeza. – Luna sacudiu uma pequenina folha de seu vestido branco. - É sempre tão divertido ter você por perto, Mione.

- Obrigada. Mas, como acabei informando a Ron, estou indisposta. Eu estou... - Hermione foi interrompida por um novo espirro.

- Por que os criados estarão demorando? - perguntou-se Peter em voz alta. - Pedi que nos servissem limonada aqui. Vou verificar.

As mulheres reuniram-se sob o coberto, e os homens caminharam pelo gramado, Draco e Neville acenderam seus cachimbos. Começaram a conversar, nenhum assunto dos mais interessantes. Harry deu-se conta de que tivera mais entretenimento conversando com Hermione sobre navegação. Mal prestava atenção ao que os rapazes diziam. Até o momento em que Draco lhe falou diretamente.

- Ouvi dizer, embora, é claro, eu não possa falar por experiência própria, que tão logo um homem deixa a universidade, ele se vê numa verdadeira calamidade.

Harry arqueou uma sobrancelha.

- Tenho me saído bem.

- Mas não é verdade que todos os seus alfaiates e amigos de jogo, tão generosos com os homens de Harvard, tomaram-se logo credores implacáveis? - persistiu Draco, os olhos estreitando-se com malícia. - Ou talvez não. Talvez enviem as contas para a sua querida mãe.

Harry cerrou o punho e avançou um passo na direção do outro. Dino colocou-se no seu caminho.

- Calma, Harry - disse-lhe, num tom manso. - Lembre-se da razão de termos vindo até aqui. Lembre-se do que é importante.

Harry respirou fundo. Tinha que se manter concentrado em suas metas de negócios.

Ignorou a conversa até que ouviu o nome de Hermione sendo mencionado.

- Há uma anedota na nossa família - disse Thomas, numa voz baixa - A de que nossos pais tiveram que amarrar um peixe no pescoço de Mione para conseguirem fazer com que o gato brincasse com ela.

Draco Malfoy conteve uma gargalhada.

- Pois eu lhe digo que eu cobraria um preço bem mais alto que um peixe pela tarefa.

- Limonada - anunciou Peter, ajudando o mordomo a empurrar um carrinho de rodas pelo gramado.

A conversa não demorou a ser retomada, mas a limonada teve um gosto amargo para Harry. Ficando um tanto afastado dos demais, observou o sorridente grupo de croqué em suas roupas brancas e Hermione, sentada como um corvo negro em seu banco, e desejou nunca ter ido até ali.

- Ela vive num inferno - disse num murmúrio a Dino.

- Há muitos tipos de inferno. Alguns piores do que os outros.

Harry sabia que o amigo estava pensando na mulher e nas filhas, ainda escravas na Virgínia, sua única esperança de liberdade repousando no desempenho do Cisne de Prata. Ainda assim, Hermione Granger sofria à sua própria maneira, aquilo era evidente o bastante. Enquanto as famílias sulistas institucionalizavam sua desumanidade, alegando um direito moral para manter escravos e justificando aquilo no estilo mais estranho, aquela empertigada sociedade ianque tinha às suas próprias maneiras sutis de torturar.

Era uma crueldade calculada, implacável, dirigida aos mais vulneráveis. Ela não tinha defesas contra a esperteza ferina dos que a cercavam. Tímida socialmente, ainda assim dotada de um extraordinário intelecto, era considerada como uma aberração. Diferente e, portanto, alguém em quem não se podia confiar.

Era designada como a “pobre Mione”. Mas Harry já se dera conta de que ela não era tão tola quanto queriam fazê-la.

Ronald Weasley, com sua tacanha inteligência, obviamente não se dera conta de que Hermione o venerava. Talvez aquele fosse o par perfeito, pensou Harry, com cinismo, recostado numa árvore e observando enquanto Hermione espirrava de novo e, depois que Ron lhe dizia a “saúde” outra vez, fitava-o como se tivesse acabado de lhe oferecer o mundo numa bandeja. Os dois eram opostos e se completavam, podendo formar uma pessoa inteira. Talvez até uma pessoa interessante.

Com a exceção de que era evidente que ambos não formavam um casal. Luna Lovegood exigia a atenção do rapaz com toda a determinação de um general numa batalha. Era como se ele lhe pertencesse, seguindo-a pelo gramado feito um cãozinho treinado e deixando Hermione a espirrar desajeitadamente junto a seu lenço.

- Precisamos ir – anunciou Harry. - Srta. Granger - prosseguiu, pegando-lhe a mão e fazendo uma mesura ao levá-la aos lábios - a sua oferta foi mais do que generosa e, por isso, fico-lhe muito grato. Bom dia.

- Mas nós não... Você não pode...

Sentindo-se terrível, ele a deixou balbuciando. Ouviu uma das outras mulheres suspirando. Acompanhado de Dino, encontrou a saída sozinho e foi com imenso alivio que deixou para trás a sufocante atmosfera da mansão Granger.

- Está pensando o mesmo que eu? - perguntou Dino.

- Nem se atreva a sugerir isso - respondeu Harry, acrescentando em sua melhor imitação do sotaque de Boston - Caro amigo.

- Mas ela fala vários idiomas...

- Não.

- Ela está sofrendo demais neste lugar...

- Não.

- Ela é muito mais interessante do que as mulheres que você já levou a bordo e...

- Droga - Harry quase gritou. - Não


Hermione, entretanto, recusou-se a aceitar um não como resposta. O que haveria demais se Harry Potter acabasse se revelando tão vazio e zombeteiro quanto Thomas e seus amigos? Ele tinha algo que ela queria: um meio para deixar Boston. E estava determinada a conseguir aquilo.

Enquanto esperava no interior do prédio elegante que abrigava os escritórios da companhia de comércio marítimo de Arthur Weasley, permitiu-se um breve e satisfatório momento de triunfo. Embora ele não soubesse, o próprio capitão Potter lhe dera a chave para a obtenção do posto.

- Olá, Hermione! - Deixando seu escritório, Arthur saiu para a sala de espera e cumprimentou-a com um sorriso caloroso. - Bem-vinda a bordo.

- Não vou tomar muito de seu tempo, sei quanto é ocupado.

Ele conduziu-a ao interior do escritório e indicou-lhe que se sentasse no sofá de couro a um canto. Pinturas de navios e faróis imponentes adornavam as paredes revestidas de madeira, e pilhas de livros contábeis preenchiam as estantes. Hermione pousou as mãos enluvadas no colo, inalando os odores de tinta de escrever, tabaco e papel, o cheiro do comércio.

- Tem um escritório esplêndido - comentou, sacudindo a cabeça de leve quando Arthur lhe ofereceu um cálice de xerez.

- Está na família há três gerações. Um dia, isto tudo será de Ron.

Uma onda de entusiasmo percorreu Hermione. Se Arthur concordasse com seu plano, poderia finalmente conquistar a estima de Ron. Na época em que ele assumisse os negócios do pai, ela pretendia ser indispensável para a empresa. Com o seu conhecimento sobre o negócio, seria de grande valia para Ron. Talvez até o bastante para se tornar sua espo...

Interrompeu tal pensamento de imediato. Um passo de cada vez, disse a si mesma.

- Teve a chance de pensar sobre minha proposta, senhor?

- Sim, tive. As suas credenciais são impecáveis, extraordinárias, Porém, o que está pedindo é impossível. Não posso permitir que você tome parte do Cisne de Prata como um membro da tripulação.

Ela manteve o queixo erguido, a despeito da vontade de se encolher em derrotismo.

- Posso lhe perguntar por quê?

- Não é lugar para uma mulher.

- Oh, mas é, sim. - Hermione relaxou, satisfeita em ter-se preparado para aquele argumento. - O Fairacre, por exemplo, não apenas tem uma mulher que ajuda nas tarefas como qualquer marujo, mas uma que é cozinheira também.

- A cozinheira é esposa do capitão - argumentou Arthur.

- Mas não era quando arranjou o emprego.

- Tenho que dar o assunto por encerrado. Não posso permitir que você faça uma jornada dessas num navio repleto de rufiões. Não quero nem pensar na possibilidade de você voltar casada com um deles.

Hermione sorriu da ironia da situação.

- Acredite-me, Sr. Weasley, não haveria o menor risco de algo assim acontecer. - Pensou na mulher voluptuosa e sorridente que Harry Potter tivera em seu colo na noite em que o conhecera. Se aquele tipo era a sua preferência, não olharia duas vezes para alguém como ela. - E o senhor sabia - prosseguiu - que o Pandora tem três mulheres a bordo e que o navio teve um lucro de cem mil dólares no ano passado?

- Está certo, eu admito que algumas tripulações incluem mulheres. Mas Harry é um inconseqüente, como acabamos vendo naquela noite. E ele não facilitará em nada as coisas para você.

- É exatamente por isso que o senhor precisa de mim. Eu sei muito bem quanto essa viagem ao Brasil lhe é importante. Posso ser os seus olhos e ouvidos naquele navio. Posso fazer relatórios regulares sobre o comportamento do capitão Potter e a maneira como conduz seus negócios.

O comentário pareceu minar parte da relutância de Arthur.

- Não seria mal ter alguém de olho nas coisas para mim durante essa viagem até o Rio - admitiu ele. - Mas não seria certo enviar uma dama feita você. Ele poderia constrangê-la.

- A mãe do capitão estará lá como passageira.

- É provável que ele a humilhe também.

- Eu lhe asseguro, a Sra. Potter e eu, podemos olhar por nossas próprias reputações. Quem precisa que alguém fique de olho nele é o capitão.

- Isto não vai acabar bem, posso sentir.

- Ao contrário. Será uma viagem tranqüila, e eu pretendo me assegurar de que tudo correrá da melhor maneira possível, para o seu próprio beneficio. Use a habilidade do homem para comandar um navio, mas não o deixe prejudicar a sua reputação como um líder no comércio.

As palavras exerceram o efeito desejado sobre o orgulho do bondoso velho. Sentindo-se perto da vitória, ela acrescentou:

- Sr. Weasley, sempre esteve à frente dos outros neste ramo, com suas idéias arrojadas e competência. Contratar meus serviços é o próximo passo lógico a dar.



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