O Garanhão



Agora, nosso navio chegou e ancorou no Estreito. Beberemos, brindando às prostitutas que ao nosso navio cercam. Então, no barco elas sobem e vão se aproximando.
- Waterman, chame meu marido, pois amaldiçoada serei se souber o nome dele.

“Um Homem de Canção de Guerra”

(tradicional)




- Como foi mesmo que disse que se chamava, doçura? - perguntou Harry à mulher sentada em seu colo. Aquela e as demais prostitutas haviam se aproximado em botes antes mesmo do Cisne de Prata ter chegado ao ancoradouro. Elas conduziam seus negócios rapidamente, subindo a bordo das embarcações que baixavam âncora depois de meses no mar.

Daquela maneira, o Cisne atracara, guiado por um experiente prático, com meia dúzia de botes de garotas do porto já acompanhando-o.

- “Doçura” está ótimo para mim - respondeu a prostituta com um riso e o fez beber um generoso gole do rum que ele comprara em Havana.

Harry não fez objeção quando ela deslizou a garrafa pequena de bebida ao longo da perna, metendo-a sob o alto da meia. Nada poderia estragar o seu bom humor naquela noite. Usando seu casaco verde-claro favorito, sem camisa por baixo, estava sentado no convés principal do navio mais veloz de Boston, sua tripulação celebrava o êxito da viagem enquanto a lua se erguia acima do porto, e uma vasta quantidade de bebida percorria suas veias. A vida para ele era boa, sem dúvida.

- O rum é todo seu, doçura - disse-lhe, sua voz pastosa. - Todo seu.

- Obrigada, capitão - respondeu a garota, com um risinho.

Harry inclinou-se para frente de modo que seu rosto quase afundasse no vão entre os seios dela. Então, fechou os olhos, a cabeça rodopiando, ecoando o movimento constante do navio nas águas, o navio que fora seu lar durante os nove meses anteriores. Que vida melhor poderia ter um homem do que aquela? Perguntou-se. Haviam feito uma viagem de grande êxito e tinha em seus braços uma mulher de deliciosos encantos, que ansiava por agradá-lo.

O que importava se aquela mulher não tinha nome, se estava vendendo seus serviços e, ainda por cima, roubando dele? Afinal, ela possuía a única coisa que o interessava no momento. Seria necessário um homem melhor do que ele para fazer julgamentos morais. Com gentileza, beijou-lhe a curva de um seio e, depois, a do outro, pressionando os lábios de encontro à maciez produzida pelo espartilho.

- Oh, capitão... - Sem pudor, ela circundou-lhe a cintura com uma perna esguia. - Eu vim aqui para mais do que provocação.

Ele abriu os olhos e observou-lhe vagamente o rosto de pintura excessiva, perguntando-se se ainda estava sóbrio o bastante para, de qualquer modo, tentar tratá-la como uma dama e levá-la até sua cabine.

Recostando-se na cadeira, pôde avistar um canto escuro do convés. Um homem e uma mulher balançavam numa rede, num ritmo familiar, as saias dela erguidas e revelando boa parte das pernas. Outro casal dormia por cima de um amontoado de cordas, uma garrafa quase vazia de bebida entre ambos. Na parte do meio do convés, Chips e Luigi Conti faziam música com uma gaita e um apito, enquanto Dino, seu amigo e assistente, dava sua contribuição, tocando um tambor revestido de pele. Casais dançavam e riam, esbarrando em barris e caixas de madeira. Alguém abrira o cercado das galinhas, e algumas aves corriam de lá para cá em hilariante confusão.

Um pensamento sério conseguiu penetrar de repente pelo torpor na mente de Harry. Pela primeira vez em sua vida errante, tinha conseguido êxito. E não em algo insignificante, mas de uma maneira que todo mundo notaria. Fizera uma viagem marítima em tempo recorde e entregara uma fortuna ao dono do navio.

Se seu pai ainda estivesse vivo, talvez tivesse reconhecido sua façanha. Teria sido a primeira vez.

Sentiu um estranho nó na garganta. Fora bem-sucedido. Gostaria de poder eternizar aquele momento em seu coração. Gostaria de ter outro alguém em vez de uma prostituta sem nome para partilhá-lo com ele.

Afastando os pensamentos melancólicos, resolveu desfrutar seu triunfo.

- Um brinde! - gritou, exultante, erguendo a mão da mulher como se fosse a de um lutador campeão. - Ao Cisne e a toda sua valente tripulação!

- A nós! - exclamaram os homens, suas canecas de bebida tilintando.

Harry abriu um sorriso malicioso à sua acompanhante, que começara a se mexer de maneira sugestiva em seu colo.

- Doçura, minhas pernas estão adormecendo.

Ela soltou uma sonora gargalhada.

- Espero que isso não afete o restante de você.

- Veremos quando tivermos descido até a minha cabine.

- Quem precisa da cabine? - indagou ela, inclinando-se para beijá-lo.

Harry pensou vagamente em buscar privacidade, mas o rum e as mãos da prostituta começando a acariciá-lo arrancaram-lhe um riso repleto de lascívia. Lentamente, começou a correr a mão sob as saias dela. Deparou com a garrafa roubada metida no alto da meia, mas ignorou-a, pretendendo prosseguir em sua exploração.

Não havia dúvida de que o puritano Sr. Weasley ficaria chocado se visse tal orgia em seu navio, mas Harry baniu o restante de seus escrúpulos. Nenhum cidadão respeitável de Boston apareceria ali. Qualquer um que passasse pelas docas àquela hora da noite mereceria o que poderia ver.


- Eu me sinto bastante ousada por estar saindo tão tarde - confessou Hermione a Lílian. Recostou-se no assento de couro da pequena carruagem. O pai, que sempre exigia o melhor, providenciara para que fosse colocado na frente da carruagem de passeio um vidro curvado, como uma vitrine. Ambas estavam sentadas lado a lado no banco de trás, observando a cidade através do vidro, por onde se filtrava o pálido luar.

Lampiões a gás reluziam ao longo da rua do Estado e sombras projetavam-se nas travessas mais próximas e na rua dos Mercadores.

- O seu cocheiro pareceu um tanto surpreso quando lhe dissemos que queríamos ir até o porto - comentou Lily. - Realmente espero que isto não cause problemas a você com sua família.

- Acredite-me, Sra. Potter, desde a idade de quatorze anos, eu não tenho feito outra coisa exceto causar problemas à minha família.

Lily virou-se, a luz proveniente do lampião da carruagem banhando-lhe o rosto.

- O que pode estar querendo dizer?

Hermione brincava distraidamente com as fitas do chapéu de cetim abaixo de seu queixo.

- Até os quatorze anos, eu morei com uma tia solteira em Salem. Eu raramente via a minha família. - Relembrou os longos e tranqüilos anos, época em que não tivera que se importar com mais nada além de passar algumas horas lendo um livro maravilhoso. - Foi um acerto que serviu muito bem a todos nós. Mas quando minha tia-avó morreu, tive que retornar para a casa em Beacon Hil. Receio ter sido um fardo para todos desde então.

- Não posso imaginá-la como um fardo.

- Sim, pode - respondeu Hermione, com gentil censura. - Apenas é bondosa demais para dizer isso. Uma solteirona sem atrativos, que se atrapalha toda durante uma conversa, que é desajeitada num salão de baile. Sou um fardo, especialmente para todos os Granger.

- Todos nós temos as nossas qualidades únicas. Cabe à sociedade descobri-las.

- E se ninguém as descobre?

Lily Potter virou-se no assento para poder observá-la melhor. Lentamente, estendeu as mãos enluvadas e retirou os óculos de lentes grossas de Hermione, deixando-os pender da fita negra de seda em torno de seu pescoço.

- Ora, ora, minha cara srta. Granger - disse em seu agradável sotaque sulista - as pessoas não a estão vendo absolutamente.

Era algo tão parecido com o que sua tia teria dito que Hermione sentiu um súbito nó na garganta.

- Eles são os Granger de Beacon Hil. - Ela usou seu tom mais altivo, provocando um sorriso em Lily. - Vêem o mundo como acham que deve ser visto.

- Talvez você esteja no mundo errado, então.

- É o único que conheço, Sra. Potter. - Hermione lançou um sorriso triste na direção da janela. Uma recém-chegada e, ainda por cima, sulista. Não poderia entender. Em famílias como a dos Granger nada mudava, jamais. Era a sagrada missão de cada geração da família prosseguir exatamente como os pais haviam feito antes e assim sucessivamente até o fim dos tempos.

Ovelhas negras como Hermione eram apartadas do rebanho. Colocadas de lado em algum lugar até que o cansaço e a meia-idade as deixassem inofensivas. Já de idade avançada, podiam até se tornarem úteis como tia Elizabeth fora. Podiam cuidar das ovelhas negras das gerações seguintes.

Teria que haver algo mais na vida, pensava Hermione com freqüência. Mas o que? Ansiava por se libertar, por escapar daquela sina. Mas queria era escapar de sua própria vida e era justamente daquilo que não tinha como se ver livre.

Gostaria de esganar a si mesma por estar alimentando pensamentos tão sombrios. Esforçou-se para afastá-los e concentrar-se na mulher em sua companhia.

Lily Potter olhava agora para frente e mordia o lábio inferior com ar preocupado.

- Acho melhor avisar você sobre Harry - disse-lhe. - Ele é a ovelha negra da família, embora eu nunca tenha me importado com esse termo tolo.

Hermione sentiu seu interesse sendo despertado. Talvez tivesse algo em comum com aquele Harry Potter.

- Se me permitir perguntar, ele é uma espécie de fardo constante?

- Fardo? Minha cara, com seu charme, Harry seria capaz de persuadir uma pérola a sair de uma ostra.

O interesse de Hermione diminuiu. Ao que parecia, o homem era uma ovelha negra de outro tipo. Ela, por sua vez, não tinha nada em comum com uma pessoa charmosa.

- Eu tive esperança de que o fato de ter vindo para o norte do país o tornasse mais responsável. Em vez disso, a primeira coisa que ele fez quando deixou a Virginia foi conceder liberdade ao seu escravo.

- Ele tinha um escravo? - perguntou Hermione, num tom de censura.

Lily meneou a cabeça em assentimento.

- Harry e Dino eram como irmãos.

- E ele libertou seu “irmão”.

- Sim, de fato o fez.

- Excelente - declarou Hermione, com veemência.

- Você é abolicionista?

- Sim, sou.

- Bem, agora sabemos que tipo de assunto devemos evitar se vamos nos tornar amigas. - Lily fez uma pausa e, então, acrescentou - É estranho estar aqui na companhia de ianques. A maioria de vocês me considera uma senhora de escravos sulista, uma provinciana.

- Duvido muito. As melhores famílias de Beacon Hill fizeram sua fortuna beneficiando o algodão cultivado através do trabalho escravo. Não é considerado de bom-tom mencionar o assunto, embora isso nunca tenha me impedido de ser contra a escravidão.

A carruagem dobrou uma esquina, entrando pela rua Índia. Como tentáculos, cada cais escuro projetava-se até Town Cove e o porto de Boston. Os mastros de vários tipos de embarcações elevavam-se de encontro ao céu noturno.

- Oh, céus. - Lily observou a luminosidade dos lampiões das embarcações destacando-se na água escura. - Finalmente, é real para mim. Meu Harry realmente fugiu para o mar.

- O Sr. Weasley ficou bastante satisfeito com o serviço que ele realizou. - Hermione sentiu-se impelida a defender Harry Potter, um homem que tivera a coragem de libertar um escravo. - Fez uma viagem em tempo recorde. Pelo que entendi, a próxima jornada é para o Rio.

Para Hermione, o Rio de Janeiro era mais do que um ponto no mapa. Ela e Elizabeth tinham por costume ler histórias sobre lugares distantes. O Rio de Janeiro tinha sido um dos favoritos, famoso por suas belezas naturais. Ambas tinham lido sempre à tarde, imaginando o aroma do café torrado e a exuberância das praias tropicais. Quando sua tia ficara doente demais para conseguir enxergar, Hermione sentara-se à sua cabeceira e lera para ela durante horas. Um dos últimos livros que haviam lido juntas fora ambientado no Rio de Janeiro.

Quando se aproximaram das docas da Companhia de Comércio Marítimo dos Weasleys, Hermione avisou o cocheiro. Estava um tanto ansiosa para conhecer aquele homem que agradara Arthur Weasley e ganhara uma fortuna, que libertava escravos. Uma ovelha negra que obtivera tanto êxito na profissão que escolhera e lhe seria uma inspiração.

Talvez estivesse em sua cabine, descansando depois da frutífera viagem. Ou talvez ainda estivesse fazendo o merecido pagamento aos marujos. Talvez.

O som de vidro espatifando-se assustou os cavalos. Enquanto o cocheiro os controlava, Hermione olhou pela janela da carruagem.

O Cisne de Prata estava mais iluminado do que as demais embarcações. Vez ou outra, alguém soltava fogos de artifício, colorindo o céu escuro.

Quando a carruagem parou, Hermione não esperou que o cocheiro abrisse a porta, descendo um tanto desajeitadamente por conta própria.

Lily esperou pelo cocheiro e, então, desceu com a suavidade de uma borboleta pousando numa flor. Música barulhenta ecoava do convés.

- Carruagem à vista! - gritou alguém e, então, explodiu numa gargalhada.

- Aonde? - gritou outra voz.

- Logo a estibordo! - Um vulto aproximou-se da amurada.

- Mais damas! Mais damas! - gritou uma voz pastosa. - Bem-vindas a bordo!

Mais damas?

Hermione endireitou os ombros e ofereceu o braço a Lily.

- Acho que devemos subir a bordo.

Lily apertou os lábios, e Hermione perguntou-se o que poderia estar pensando. O marido pródigo deveria ter voltado logo para casa, não obrigado a mulher a ir à sua procura.

- Venham nos alegrar, garotas! - gritou a voz pastosa. - Acabamos de baixar âncora depois de três temporadas no mar!

Lily parou de caminhar.

- Acho que você deveria voltar à carruagem. Isto não será nada agradável.

- Bobagem. Foi idéia minha a de trazer você até aqui. Se você for, irei junto. - Hermione tornou a pegar-lhe o braço com firmeza. Subiram a bordo pela prancha de embarque, segurando-se às cordas que a ladeavam. A música se acentuou, assim como os risos e o cheiro forte de rum.

Hermione franziu o cenho, confusa. O Sr. Weasley havia dado a entender que Harry Potter era um capitão disciplinado e habilidoso. Com certeza, não permitiria que...

- Oh, céus! - Lily parou na metade do convés principal e segurou o braço de Hermione com mais força.

O convés inteiro era a verdadeira imagem do pecado. O apito estridente era tocado por um marujo de bigode. Um homem negro tocava o tambor e um outro o acompanhava com uma gaita.

Hermione ajeitou os óculos. Nem mesmo em sua imaginação poderia ter conjurado cena tal: marujos rudes, de calças largas e sem camisa, dançavam com mulheres de pernas despidas que os beijavam em público. Galinhas corriam de lá para cá pelo Convés. Um homem imenso e totalmente calvo, com uma argola de ouro reluzindo numa orelha, bebia direto de um pequeno barril que carregava no próprio ombro.

Ela correu os olhos chocados em torno do convés e, finalmente, descobriu-se olhando, boquiaberta, para um homem extraordinário. Como um rei num trono, estava sentado numa enorme cadeira, iluminado ao fundo por tochas, o homem sorridente parecia dono de uma beleza quase sobrenatural, com cabelos rebeldes e negros caindo-lhe até os ombros largos e emoldurando-lhe o rosto de traços másculos. Usava um extravagante casaco curto verde-claro que deixava muito de seus braços e peito bronzeados à mostra. Quase deitada em seu colo, achava-se uma mulher cujos seios fartos se comprimiam de encontro ao decote indecente do vestido. Ele a segurava pelas costas e tinha o outro braço escondido sob as dobras das saias dela.

Apesar da cena ser chocante, Hermione descobriu que sua atenção era irremediavelmente atraída pelo rosto do homem. Ele ainda não as notara, estava absorto pela mulher. Havia algo estranhamente instigante na maneira como mantinha sua concentração nela, contemplando-a com total atenção, como se não houvesse ninguém mais em volta.

O homem com o tambor começou uma batida que curiosamente lembrava o aviso nervoso do chocalho de uma cascavel.

Finalmente, o homem de cabelos rebeldes ergueu o olhar. Estudou Hermione por um momento, então, desinteressado, desviou o olhar para Lily. Abrindo um sorriso tolo, disse num suave sotaque da Virgínia.

- Olá, mãe!



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