Um Capricho de Deus



UM CAPRICHO DE DEUS

As semanas que se sucederam após o final da guerra foram, sem a menor sombra de dúvida, as piores na vida de Harry Potter. Era verdade que tinha derrotado Voldemort, e que agora era visto como o maior herói do mundo mágico. Os Comensais que restavam iriam servir sentenças para o resto de suas vidas em Azkaban, e, embora restassem algumas pessoas leais a Voldemort ainda à solta, com o seu líder morto para valer elas não iriam demorar muito para serem presas. Mas, com a tempestade passando, Harry percebeu como era alto o preço que ele e muitos havia pagado pela derrota do maior vilão que o mundo mágico presenciou. Na época das batalhas, tudo acontecia muito rápido, e os horrores de tudo aquilo não eram absorvidos direito pelas pessoas envolvidas, mas agora, todo peso do ocorrido os acertaram como em um nocaute.

Seu melhor amigo Rony morrera bravamente no dia da derrota de Voldemort, se colocando na frente do mais fatal dos feitiços para salvar sua vida. Hermione se fora meses antes, em um feitiço desferido por Bellatriz, antes dessa ser devidamente castigada por ninguém menos que Neville Longbotton. Ele não a matou, mas com certeza, ela sentiu na pele todo o sofrimento que causou as outras pessoas. Harry teve de admitir que o que Neville fez com Bellatriz ainda iria lhe render muitos pesadelos. Ele fora um dos poucos garotos de seu ano que sobrevivera, ao lado de Justino Finch-Fletchey, Milla Bullstrode e Mandy Blockhurst.

Não era apenas a morte de pessoas próximas a ele que o afetara tão profundamente, mas tudo o que presenciara na guerra. Depois dela finalmente ter acabado, ele ficara trancado em um quarto na casa de Remo Lupin dias a fio, sem falar com ninguém. Não saía, nem se alimentava. Tiveram que obrigá-lo a comer. Depois finalmente explodiu e começou a chorar e a agredir verbalmente todos que se aproximavam dele. Depois disso foi como se as lágrimas não parassem mais. Havia derrotado Voldemort e seus seguidores, mas era como se ele próprio tivesse sido derrotado. Às vezes achava que a morte de Voldemort tinha sido muito rápida, devia ter feito algo a ele como Neville havia feito com Bellatriz.

Neville… como ele havia mudado. Mas também, quem não mudara com tudo que acontecera? Depois da guerra, Neville era a única pessoa que ele consideraria uma aproximação, pois Neville perdera e presenciara tanto quanto ele, senão mais. Seus pais morreram no incêndio em São Mungus causado pelos seguidores de Voldemort, sua avó e seu tio Algie foram assassinados por Comensais. Depois, sua única amiga nesse mundo, Luna Lovegood, morrera pela mesma varinha que havia enlouquecido seus pais. No decorrer da guerra aquele mesmo garoto assustado que Harry conhecera no primeiro ano havia se tornado um dos maiores especialistas vivos em Herbologia, e, para surpresa de muitos, de feitiços. Foi também nele descoberto (ou desenvolvido) um talento especial em desferir a maldição Cruciatus. Havia um prazer perverso nos olhos de Neville toda vez que o usava, tanto que os Comensais começaram teme-ló quase tanto como o próprio Harry. Sua vingança contra Bellatriz foi terrível. Naquele momento Harry entendeu o que Dumbledore quis dizer com “destinos piores que a morte”.

Mas Neville estava em pior estado emocional do que ele e não queria aproximação com ninguém, se tornara um recluso. Fora o prazer que sentia quando torturava alguém, a dureza dominava o seu olhar na maior parte do tempo. Ele disse aos outros para o procurarem apenas quando fossem caçar outro bruxo das trevas. Neville não percebera que ele próprio havia se tornado um. Mas os aurores não iam persegui-lo, pois além de Neville ser ele próprio um auror, estava do lado dos mocinhos. Harry agora só queria esquecer a última visita que fizera a ele.

Neville finalmente abrira a porta.

- Ah, é você – ele disse com a voz ligeiramente aborrecida.

- Como vai? – cumprimentou Harry, entrando sem ser convidado.

- Não muito melhor que você – Neville respondeu asperamente, enquanto fechava a porta – alguma novidade para uma caçada?

- Não, nenhuma

- Então o que faz aqui? – havia um tom estranho na voz Neville quando fez essa pergunta, uma mistura de afeto e raiva.

- Não posso vir te visitar?

- Desde quando se interessa por mim?

Essas palavras afetaram Harry mais do que ele achava que o afetariam.

- Eu me importo com você. – ele falou com seriedade.

Os contornos nos rosto de Neville relaxaram, e uma expressão muito parecida como a que Neville tinha quando era aluno em Hogwarts deu lugar ao olhar duro que se tornara parte dele. Harry teve que se segurar para não abraça-lo. Era como se parte de seu passado retornasse à vida, pequeno, mas cheio de recordações que o faziam se sentir vivo.

- Você se importa com o meu bem estar assim como se importaria com o bem estar de qualquer um. Faz parte de sua natureza, Harry.

Neville deu um sorriso fraco e se sentou no sofá. Olhou para o chão, e continuou a falar.

- Por que quer ser meu amigo agora? Você nunca quis ser um amigo meu em Hogwarts.

Harry protestou

- Não, Neville eu fui o seu amig…

- Não, nunca foi. – Neville interrompeu, e sorriu outra vez - Você foi um bom colega, eu gostava de você, e você não via nada de errado comigo. Mas nunca fomos amigos.

- Neville…

Neville o interrompeu com um movimento de “deixa para lá” com as mãos.

- Não precisa se martirizar, Harry. Tudo bem. Eu gostava de ficar na minha, não achava que tinha viva alma na escola que me entenderia totalmente, coisas da idade.

- Até Luna… – Harry se arrependeu de ter dito isso assim que as palavras saíram de sua boca. Precisava relembrar Luna agora?

- Até Luna… - Neville deu um suspiro - Nunca achei que teria uma amiga como ela, éramos tão diferentes. Mas, quando nos aproximamos, descobrimos muitas semelhanças entre nós. Semelhanças que não sabíamos possuir– ele suspirou novamente e olhou para Harry – você não quer ser meu amigo. Não sou mais aquele menino, não me faça lembrar dele. Aquele garoto tinha tudo, eu não tenho nada.

Havia uma tristeza nos olhos de Neville que ele nunca vira antes. Ele de repente sentiu como um intruso naquele lugar. Não tinha direito de vir aqui, e, como um fantasma relembrar um passado que já não era mais. Sem dizer mais uma palavra, Harry se virou e saiu daquela casa.

Harry se virou na cama. Porque o mundo tinha tanto sofrimento? Por que existiam tantos horrores, horrores esses que destruíam e corrompiam a vida de pessoas boas e inocentes. Por que tanta infelicidade, tanta ignorância? Ignorância, essa foi a causa desta maldita guerra de merda! Por que todos não podiam simplesmente se entender e aceitar as diferenças de cada um? Por que as pessoas não se respeitavam? Porque tanta sede de poder, porque tanta maldade? O que se ganha com isso? É esse o caminho da felicidade? Porque as pessoas não podiam simplesmente ser felizes.

Será que existia um Deus? Harry achava que não. Que Deus seria esse para deixas essas coisas horríveis acontecerem? Se Ele existia mesmo, nunca se manifestou, ou simplesmente não se importava. Harry estava disposto a abrir mão de tudo para fazer as pessoas simplesmente felizes, para se entenderem, para aceitar as diferenças uma das outras. Para fazer um mundo melhor, e acabar com o sofrimento que parece fazer parte da existência do ser humano.

Deus… seria possível conversar com Ele. Fazer um trato. Se Ele é tão onipotente e poderoso, Ele iria ser capaz de fazer esse mundo dos sonhos. Do que estava falando, Deus não existia, mas… seria possível fazer um trato?

Naquele momento uma luz branca forte apareceu em sua frente. Harry fechou os olhos com as mãos. Ela era tão forte que teve certeza de que ia ficar cego. Ela logo tomou conta de todo o quarto. Harry se encolheu na cama, e escondeu o rosto no travesseiro. Merlin, quando aquilo iria acabar? Logo, a luz se desfez tão rápido quanto apareceu. Harry continuou encolhido na cama, até ouvir uma voz chamar pelo seu nome.

- Olá Harry.

Harry levantou seu rosto para procurar a dona da voz, que parecia está vindo de toda parte. A dona estava do lado oposto do quarto, era uma moça que tinha a pele trigueira, olhos grandes e pretos, e cabelos castanhos claro, usava… relógio de pulso. Porque ela estava usando roupas trouxas?

- Quem é você? – ele perguntou.

- Você me chamou, e eu estou aqui. Teve sorte, não é sempre que atendo chamados.

- Quem é você – Harry insistiu.

- Meu querido – disse a moça sorrindo ternamente – você sabe quem eu sou.

Harry abriu a boca para falar, mas a palavras não vieram. Seria possível? Mas como? Porque?

- Sim querido, eu sou Deus, se você quiser me chamar assim. Ou melhor, Deusa.

Harru continuou sem falar. Ela sorriu novamente e disse.

- Você me chamou aqui por alguma razão. Qual era ela, Harry?

Harry piscou o olho e finalmente encontrou algumas palavras.

- V-V-V-Você seria capaz de fazer o que pedi? De transformar esse mundo para um lugar sem sofrimento, sem ódio, sem guerras? Onde as pessoas se compreendem e se respeitem mutuamente. Onde sejam felizes? Um lugar sem os horrores que mataram meus pais, meus amigos, além de tantos outros. Que destruiu a inocência de Neville e…

- Eu já sei qual é o seu pedido, Harry – ela o interrompeu - é um pedido nobre, eu reconheço. E também sei que a grande maioria dos seres humanos pediriam a mesma coisa se estivessem em seu lugar. Só queria ouvir você falando com as suas próprias palavras. Mas… tem certeza que é esta o seu desejo.

- É claro que tenho! – Harry soou mais agressivo do que planejara. Mas ele não entendeu. Por que ele não iria ter certeza de um pedido desses?

- Pois bem. Que seja então.

- Você é capaz de fazer isso?

- Sou capaz de tudo, Harry. Mas para que esse mundo seja como você o deseja, é necessário uma troca.

Harry se surpreendeu, ainda que estivesse atordoado com tudo aquilo. Era tudo muito fantástico e surreal, mas acreditava naquilo. Aquela mulher era Deus, e poderia fazer o que quisesse, e estava prestes a acatar um pedido que é o sonho de todo a humanidade. Mas porque ela não o fizera antes? Por que tudo aquilo?

- Mas eu pensei... Você não é capaz de tudo? Por que não fez isso antes? Por que essa troca?

- Caro menino, não sei se você gostaria de ouvir a resposta para primeira pergunta, e, até para mim, é difícil de responder. Quanto à segunda, a resposta é simples: você fez um pedido, e no Universo, nada é criado, tudo é construído. Para esse mundo que você vive ser perfeito, seu pedido precisa de uma base para a construção.

Harry não tinha certeza se entendera o que ela queria dizer com isso, mas iria fazer o que fosse possível para que seu maior desejo se realizasse. Ele perguntou:

- E qual seria a base para essa construção?

- Você vai ter que passar o resto de sua vida no inferno.

Por essa ele não esperava. O que isso teria a ver com a “base para construção” de um mundo melhor? Por que esse pedido? Deus (ou Deusa), afinal, não era onipotente e bom? O que ela…

- Você não entenderia Harry, e talvez nunca entenda. Mas é isso que você tem de fazer. O pedido não é algo pequeno, e o pedido é seu. O preço disso não é baixo.

Harry molhou os lábios. Ela tinha uma voz doce e reconfortante , e confiava nela.

- O resto da vida no inferno você quis dizer?

- Sim, querido, o resto da vida, não a eternidade. Eu jamais faria isso com você, nem com ninguém, você merece bem mais por tudo que fez.

Era razoável. Só estava curioso de uma coisa.

- Tudo bem, eu farei isso. Mas… como é o inferno?

- Bem diferente do que você imagina, meu caro Harry. Temos um trato, então?

- Sim, temos um trato – estava nervoso, para onde ele iria, o que aconteceria?

- Logo você terá a resposta querido, até mais ver.

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Em uma estrada deserta, uma garota pedia carona. Um caminhão parou para pegá-la. Ela sorriu pensando na sua sorte, só tinha ficado meia hora por lá. Pegou sua mala e partiu em direção ao caminhão.

- Para onde, menina? – o motorista perguntou gentilmente quando ela entrou no caminhão.

- Para Londres, é para lá que eu vou.

- Londres eh? Estou indo para lá também – ele disse quando o caminhão recomeçou a andar.

- Que bom, assim não precisarei de pegar outra carona. A não ser que você se importe de ter uma companhia ao longo do caminho.

- Não, tudo bem, é bom ter alguém com quem conversar.

Era uma rodovia que saía de Sheffield. Caroline McEnroe estava partindo de lá e, embora não fosse uma fugitiva, estava querendo escapar de uma vida na qual ela própria havia se metido. Seus pais eram da Escócia e ela havia ido para Sheffield com o namorado, mas logo percebeu que isso tinha sido um grave erro. Seu namorado usava drogas, estava envolvido com os piores tipos de criminosos (leia-se traficante) e não raro, roubava para sustentar o vício. Quando ela saiu da casa dos pais com o namorado, já sabia que ele era usuário de drogas, ela mesma fumava maconha ocasionalmente. Mas ela não tinha consciência na época que o problema dele era bem mais grave do que ele demonstrava ser.

- Então, o que quer fazer em Londres, menina?

- Caroline

- Caroline?

- Esse é o meu nome – ela esclareceu sorrindo

- Ah bem. Então Caroline, para que quer ir para Londres? Você é de lá? Porque pelo seu sotaque eu digo que não é de lá.

- Não, eu sou de Glasgow. Estou indo para lá para começar uma nova vida. No meio artístico, sabe? Estou pensando em ser atriz. Eu estou com esse plano há tempos, só que nunca havia encontrado a disposição.

Era verdade. Ser atriz era um velho sonho seu.

- Atriz? Não é nada fácil se sustentar sendo uma artista, mas se é o que você quer. O que lhe deu a disposição da qual você falou?

Ela abaixou a cabeça. Não era um assunto fácil.

- Briguei com os meus pais por causa de um grande idiota. Só fui perceber a burrada que tinha feito quando ele já tinha me arrastado para Sheffield. Ele me fez largar a escola, deixar a minha família e abandonar os meus sonhos em troca de uma vida desgraçada – ela suspirou – meus pais bem que tentaram me avisar, mas fui muito cabeça dura. Londres é grande o bastante para se ter muitas oportunidades, e quando eu começar a brilhar, meus pais vão ter muito orgulho de mim, assim como eu.

Era curioso. Ela havia acabado de conhecer esse homem, mas já estavam falando como se fossem velhos amigos. Havia algumas pessoas assim no mundo, com quem eram mais fáceis de se abrir, mesmo que fossem estranhas. Talvez fosse mais fácil de se abrir com estranhos.

- Você reconhece seus erros – disse o motorista simpaticamente – isso é bom. Só não quero que cometa outros, criança. É só ler nos jornais, muitas jovens, como você, chegam à Londres com sonhos e esperanças, querem ser atrizes ou cantoras. Muitas delas vêem de lares desfeitos ou de uma vida infeliz. Mas esses sonhos são logo despedaçados em face da cruel realidade. É bom se cuidar garota, arrumar um emprego assim que chegar por lá. Não desista dos seus sonhos, mas seja realista. Não quero que você acabe como essas meninas que eu vejo no Picadilly Circus, se prostituindo e viciadas em drogas.

- Isso não vai acontecer comigo – ela sorriu, olhando para ele. Era tão fácil falar com ele – eu realmente aprendi com os meus erros. Meu namorado era um viciado em drogas, e drogas são a última coisa de que quero estar perto.

- Eu realmente desejo tudo bom para você. Eu já estive em uma situação parecida com a sua, sabe? Durante um tempo fui um homem solitário e muito amargo, e detestava ser motorista de caminhão. A morte de minha irmã tinha me abalado bastante, ela era a pessoa mais próxima de mim naquela época, e sempre estava lá por mim.

Ele deu uma pausa e sorriu, continuando.

- O amor cura tudo, criança, tudo mesmo. – apontou para a foto de um homem de uns quarenta e cinco anos no painel – quando conheci o meu Edward, tudo mudou. Estamos juntos há cinco anos e nunca fui tão feliz.

- Bom para você – ela disse sorrindo para ele – espero que um dia eu encontre um homem assim, que me faça completa.

- Ele vai aparecer, menina, a nossa alma-gêmea sempre está nos esperando.

- Assim espero.

A viagem a partir daí foi mais silenciosa, e eles conversavam ocasionalmente. Depois de algum tempo, ligaram o rádio do caminhão e começaram a cantar juntos. Estavam distraídos o bastante para não perceberem uma figura no meio da estrada deserta.

- Cuidado!! – gritou Caroline desesperada.

Mas o motorista não pode desviar a tempo. Quando finalmente conseguiu parar o caminhão, ambos estavam ofegando. Passado alguns minutos, Caroline, de olhos vidrados, foi a primeira a falar:

- Meu Deus, atropelamos um garoto!

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Dor. Foi essa a primeira coisa que Harry sentiu, muita dor, quando finalmente chegou ao chamado “inferno”.

Depois de ter firmado seu trato, ele foi imediatamente envolvido pela mesma luz branca que ele havia visto minutos antes, quando Deus apareceu em seu quarto. Depois, sentiu um impacto, seguido de muita dor. Ele podia dizer que estava deitado em um local duro, mas não podia descobrir o que era, daquela maldita dor era a única coisa que ocupava seus pensamentos. Podia dizer que havia ossos quebrados em vários locais, e que não poderia se mover, mesmo se quisesse. Sentia o gosto metálico de sangue em sua boca, assim como também sentia seu sangue escorrer pelas várias feridas que tinha em seu corpo. Estava perdendo sangue em profusão. Isso era bom, significava que ele perderia os sentidos logo logo. Se isto era o inferno, queria morrer.

Mas Harry não perdeu os sentidos, ficou ainda sentido aquele dor pelo que pareceu uma eternidade, mas não perdeu os sentidos. Ao invés disso, pode perceber o sangue voltando as suas feridas. Finalmente abriu os olhos, pode ver as feridas magicamente se cicatrizando, pode sentir também os ossos se calcificando em seu corpo e dor finalmente desaparecer. Que estava acontecendo? Onde estava?

Harry olhou para os lados e se sentou. Este lugar decididamente não parecia com o inferno que ele imaginara. Estava em uma estrada, podia ver que era uma estrada. Parecia meio deserta, será que haveria uma cidade próxima? Estava pensando nisso quando finalmente percebeu um caminhão parado a uns trinta metros de onde estava. Seus olhos haviam passado por ele, mas seu cérebro não havia registrado. Ele somou dois mais dois e chegou à conclusão que havia sido atropelado. Estranho... o inferno seria ser atropelado por um caminhão? Ficou olhando para o caminhão por alguns segundos. Estaria ele sendo dirigido por alguém?

Nesse momento, a porta abriu, e Harry viu duas pessoas saltarem do caminhão freneticamente. Um homem de barba e barriga, que parecia ter um quarenta e tantos anos e uma adolescente loira de cabelos curtos e encaracolados.

- Meu Deus! Meu Deus! Ele está vivo! – gritou a garota ao se aproximar de Harry– Garoto! Garoto! Você está bem? Está ferido? Temos que leva-lo a um hospital!

Ela se agachou ao lado dele. Parecia aliviada, e, ao mesmo tempo, parecia nervosa. Pelos seus gestos, Harry percebeu que ela tinha medo de tocá-lo e feri-lo para valer. O homem chegou logo depois e também se agachou ao lado de Harry.

- Você está bem, filho? Está sentindo alguma dor? – a voz dele estava mais calma, mas o olhar era mais desesperado do que o da garota.

- Não – Harry disse – senti um impacto. Mas não estou sentido nenhuma dor. Parece que nenhum osso está quebrado.

Harry tentou se levantar, embora os dois ocupantes do caminhão quisessem impedi-lo, e percebeu que realmente podia fazer isso sem nenhum problema. Realmente, não havia nenhum osso quebrado, nenhum contusão, nem marcas de sangue. A única marca do atropelamento era sua a camisa de pijama levemente rasgado. Um alívio começou a tomar conta dele, o inferno, até agora, não parecia ser tão ruim assim. Um carro passou do lado oposto da estrada, seus ocupantes olhando curiosamente para os três.

Harry se virou para a moça e o homem, que pareciam aliviados e maravilhados.

- Estou realmente bem, verdade.

- Mesmo assim – disse o homem – temos de levá-lo ao hospital. Só irei dormir tranquilamente se os médicos me garantirem que você está bem. Estamos indo para Londres. Dentro de meia hora mais ou menos chegaremos, e lá tem melhores hospitais, você acha que pode agüentar?

- Sim, sem problema.

- Tem certeza? Podemos ir ao hospital mais próximo de sua casa.

- Não, Londres está bem, eu sou de lá – Harry mentiu, sem saber exatamente o porquê.

Outro carro passou, desta vez os ultrapassando. O motorista nem sequer olhou para eles.

- Está bem. Vamos. – o homem disse.

O homem e a garota fizeram menção de carregá-lo, mas Harry os impediu, garantindo que podia caminhar sozinho. Ele entrou no caminhão, sentando entre o homem e a garota. Quando o caminhão deu partida e começou a andar a garota virou para ele, os olhos cheios de lágrimas.

- Acho que presenciamos um milagre.

Harry sorriu timidamente.

- Qual o seu nome? – Ela perguntou.

- Harry Potter.

- Então, Harry Potter? – ela sorriu, as lágrimas ainda nos olhos – O que você estava fazendo parado de pijama no meio da estrada? Você nos pregou um baita susto.

- Eu não sei – respondeu ele sem jeito.

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Inferno. Era essa a única palavra que Harry podia usar para descrever sua existência. Bem, talvez “desespero” também servisse, mas ele achava que “inferno” era mais apropriada.

Havia se passado um ano e meio desde que fizera o trato, e vivera em Londres durante todo esse tempo. As duas boas pessoas que o atropelaram acidentalmente o haviam deixado em um hospital, e o homem quis até dar uma ajuda em dinheiro para ele. Harry de início recusou, mas depois achou prudente aceitar. Harry dissera a eles no caminhão a caminho do hospital que deixassem ele falar para o médico o que havia acontecido, e que não mencionasse o atropelamento no hospital. E nada de polícia. Não queria trazer problemas para aquele senhor, ele não fora culpado. Harry sabia que ele simplesmente tinha aparecido no meio da estrada.

Depois do médico que atendeu Harry garantir para aquelas duas pessoas que Harry estava na mais perfeita saúde, cada um seguiu seu caminho. Liam, o homem, e Caroline, a garota, queriam o telefone de Harry para futuro contanto, mas Harry não sabia o que dar. Não existiam telefones no mundo mágico, e ele e os Dursleys não tinham tido mais contado desde que Harry deixara a casa deles. Por isso, deu uma desculpa qualquer. Liam acabou dando seu telefone para ele e Caroline, que também não tinha telefone, e, pelo que ela dissera a Harry, era também uma recém chegada em Londres.

Harry poderia dizer que esse foi o ponto alto da vida dele desde que ele fizera aquele trato. A partir daí, foi ladeira abaixo. Depois que Liam e Caroline o deixaram sozinho em um pub, Harry começou a pensar no que iria fazer a partir de então. Ele passou a noite vagando pela cidade. Não pode deixar de sentir que havia algo de diferente nela, mas não sabia dizer o quê. Perguntas e mais perguntas enchiam sua cabeça: E o trato que fizera? O que era o inferno afinal? Londres era o inferno? Seria o atropelamento? Deus havia feito sua parte no trato e consertado o seu mundo? Acreditava que sim. Aliás, será que realmente existiu um trato no final das contas? E sua incrivelmente rápida recuperação depois do atropelamento? Até mesmo para os padrões do mundo mágico aquilo era estranho. O que significava tudo aquilo? Essas perguntas e outros pensamentos encheram a cabeça de Harry até ele chegar onde queria. A entrada para o Beco Diagonal.

Ao olhar para aquela parede de pedra, Harry teve a estranha sensação de nada havia por trás dela. Pelo menos, nenhum Beco Diagonal. Harry colocou a mão no bolso da calça do pijama. Por Merlim, ele precisava urgentemente mudar de roupa. Um banho também não cairia mal. Ainda bem que estava na metade da primavera, senão ele iria morrer de frio.

Harry retirou sua varinha, e, ao olhar para aquele pedaço de madeira, Harry teve certeza de que aquilo não era nada mais que um pedaço de madeira. Ele balançou a cabeça, tentando espantar aqueles pensamentos da mente. Não era bom pensar naquilo. Harry bateu em alguns tijolos, seguindo as instruções que Hagrid tinha dado anos antes, e que ele havia repetido algumas vezes. Nada aconteceu. Ele repetiu o gesto e nada aconteceu novamente. Engraçado, ele podia jurar que eram os tijolos certos. Tentou novamente e… nada.

Harry deve ter ficado meia hora ali repetindo o gesto, e tentando o mesmo com outros tijolos e nada acontecia. Ele tinha certeza que devia parecer um idiota batendo com um pedaço de madeira em uma parede de tijolos, mas ele não se importava. Ninguém estava olhando mesmo. Até que bateu uma idéia. Por que não tentar um feitiço? Não para ultrapassar a parede de tijolos, apenas um feitiço simples para testar… alguma coisa.

Enquanto ele estava batendo com a varinha na parede, mais pensamentos começaram povoar sua mente. Tinha a certeza absoluta de que não havia Beco Diagonal nenhum além dessa parede, mas não queria acreditar. Não podia acreditar. Tinha uma sensação, uma terrível sensação que não parava de crescer dentro dele. A sensação de que esta não era a Londres que ele conhecia, embora parecesse igual. Que essa Inglaterra não era a mesma em que ele havia nascido, nem a Europa, nem o Mundo. E que neste Mundo, nesta Europa, nesta Inglaterra, nesta Londres, não existia magia, e nem o mínimo traço dela. Seria esse o inferno que Deus havia falado para ele? O seu inferno, era afinal, um mundo sem magia? Isso era simplesmente ridículo, ele sabia se virar perfeitamente sem magia. Se Deus achasse isso, ela havia se enganado, embora dissessem que Ele (Ela?) nunca se enganava..

O simples feitiço que ele iria fazer responderia a pergunta se nesse mundo existia ou não magia. Apontou para um pedaço de tijolo solto no chão com a sua varinha e disse:

- Engorgio.

Nada (outra vez). O tijolo permaneceu o mesmo. Repetiu a palavra, mas nada aconteceu. Tentou outros feitiços em outros objetos, mas tudo continuou na mesma. Será que não havia mesmo mágica aqui? Espere aí, o Caldeirão Furado! Era óbvio! Para chegar a aquele beco era obrigatório que ele passasse pelo Caldeirão Furado, ele tinha que existir. Harry realmente tinha passado por um pub antes de chegar ali, ele tinha certeza, mas não tinha prestado atenção na clientela, já que tinha passado apressado pelo local. Voltou à porta do pub para retornar a ele, mas ao ver a clientela e o estilo do salão, um desânimo se abateu sobre ele.

O “Caldeirão Furado” parecia como qualquer outro pub em Londres. Nenhum tipo de cliente de quem os trouxas achariam estranho, nenhum tipo de magia, nada! Saiu do pub para ver o nome dele. Se chamava “Garrafa Vazia”. Seria esse o mesmo lugar? Tinha certeza absoluta que sim. A cada minuto que passava ele ficava com cada vez mais certeza de que nesse mundo não existia magia, assim como não existiam as pessoas que pertenciam a esse mundo mágico. Quando essa idéia passou por sua cabeça o desespero começou a tomar conta dele. Não! Não poderia desistir tão fácil, tinha que fazer alguma coisa. Só tinha uma coisa em que ele podia pensar em fazer em um mundo no qual que a magia não se manifestava tão facilmente.

Detestava ter que fazer isso. Pedir ajuda aos Dursleys. Principalmente quando tinha certeza que eles não o ajudariam de nenhuma forma. Mas tinha que entrar em contato com eles, tinha que tentar. Perdera muito de seu orgulho na guerra, e não era hoje que ele iria retornar.

Iria falar com tia Petúnia, nem queria ouvir a voz de Tio Válter. Dos Dursleys, ele achava ela a menos pior, e era sua parente de sangue mais próxima, querendo ele isso ou não. Foi a um telefone público e discou o número da casa dos Dursleys. Discou uma, duas, três vezes, mas sempre dava a mesma coisa. Número Inexistente. Que estava acontecendo? Os Dursleys não existiam também nesse mundo sem mágica? De alguma forma sabia que iria dar nisso. Que esse número não era de lugar nenhum. Sabia que se fosse à Rua dos Alfeneiros não acharia os Dursleys, nem o número 4. No fundo, sabia que nem Rua dos Alfeneiros existia. Nem Little Whinging. Sempre soube desde que tivera a certeza, mesmo sem querer acreditar, de que nesse mundo não existia magia. Tantas descobertas em tão poucos minutos….

Harry sentou ao chão e começou a chorar e rir ao mesmo tempo, o desespero finalmente tomando conta dele. Não sentira nada assim desde a guerra. Tinha pouco amor pelos Dursleys, mas a existência deles era a certeza de que ele tinha raízes, era a certeza de que ele era alguém, de que ele existia. Por menos que ele quisesse, eles eram sua família, e o fato dela simplesmente não existir, soava como algo fatalmente conclusivo: de que ele não “é”, não “era”, nem “foi”, nem “viria a ser”. Nunca se sentiu tão sozinho, nunca se sentiu tão amputado. Não tinha ninguém, absolutamente ninguém. sem amigos, sem conhecidos, sem os parentes que pouco ligavam para ele. Era engraçado de certa forma. A magia, que os Dursleys tanto detestavam, estava ligada à existência dos próprios. A ironia disso tudo era de certa forma engraçada, e não pode deixar de rir em meio às lágrimas.

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Tudo isso havia um ano e meio. Harry agora estava trabalhando em um pequeno restaurante, fazendo serviços de limpeza na cozinha. O salário era péssimo, mas pelo menos tinha comida de graça. Nesse meio tempo ele havia tido quatro empregos. Não tinha se adaptado a nenhum, e, com certeza, não estava se adaptando a este.

Pesquisas em mapas e listas telefônicas tinham confirmado o que ele já sabia. Não existia a Rua dos Alfeneiros, nem Little Whinging. Nem havia (e, aparentemente, nunca houve) Evans no local onde sua mãe e sua tia Petúnia nasceram e foram criadas. Pelo que havia lido, acontecera o mesmo com a família do tio Válter. Era incrível como cada fato, cada destino, cada pessoa, estavam ligados uns aos outros.

Nem tentou procurar os Weasleys, nem seus conhecidos do mundo mágico. Tinha certeza que o mesmo acontecera a eles, e seria muito doloroso ver isto confirmado.

Harry não gostava de se lembrar o que acontecera nos dias que se seguiram à sua chegada naquele mundo. O dinheiro que o homem lhe dera acabou rápido e ele se viu obrigado a dormir nas ruas por alguns dias. Pensou em ligar para o homem pedindo ajuda, mas perdera o número. Sempre achara que os Dursleys o fizeram passar fome na casa deles, mas, pela primeira vez na vida, Harry viu o que era realmente estar faminto. Depois de alguns dias mendigando, ele acabou sendo levado para um abrigo. Detestou aquele lugar, teria preferido ficar mendigando na rua. Teria saído de lá se não tivesse arranjado um emprego antes.

Era em uma grande empresa japonesa de eletrônicos, em uma de suas filiais inglesas. Estava nos Serviços Gerais. Serviço de limpeza, para ser mais exato. Harry logo se especializaria na limpeza. Três, dos quatro empregos que tivera em um ano e meio, eram na área de limpeza.

Ao fazer entrevistas e testes na sua procura pelo seu primeiro emprego como trouxa ele descobriu algo nada agradável. Nem havia pensado nisso desde quando chegara lá, mas agora ela tinha tomado consciência daquele pequeno fato. Seu tempo em Hogwarts não contava como tempo de escola (ele não mencionou Hogwarts para seus possíveis empregadores, claro), oficialmente, seu tempo de estudo não ultrapassava o Ensino Fundamental. Mas nesse mundo, nem o Ensino Fundamental que ele cursou no mundo dos trouxas contava, já que ele não tinha o diploma em mãos. Era como se ele fosse um semi-analfabeto. Não poderia arranjar um grande emprego com quase nada para mostrar de educação. Por isso, já ficara muito grato por conseguir uma vaga nos Serviços Gerais de uma empresa japonesa de eletrônicos. Pelo menos era alguma coisa.

Passou a morar, desde então, em um bairro basicamente formado por imigrantes. Dividia um pequeno apartamento com dois imigrantes africanos. Eram pessoas honestas e trabalhadoras, mas Harry não era muito de se enturmar. Não conseguia se adaptar a sua nova realidade, e não parava em nenhum emprego. Pelo menos sempre ajudara no aluguel todo o mês, e não tinha que se preocupar em arrumar um novo lugar para morar a cada dia.

Seus dias eram formados por uma rotina trabalho-casa, casa-trabalho. Nos finais de semana ele ficava em casa assistindo televisão. Tinha um desânimo constante, uma de vontade de fazer absolutamente nada e definhar sozinho. Tinha raiva da sua falta de motivação, desde quando ele fora assim? Lute Harry, como esses imigrantes estavam lutando por uma vida melhor. Você nunca viu eles se desanimarem, eles se divertiam, mesmo recebendo tão pouco, eles nunca iriam desistir tão fácil como você estava desistindo. E eles estavam em uma situação pior do que a sua. Pelo menos você é inglês e branco. Sempre arranjaria um emprego mais facilmente do que eles, nunca sofreria o preconceito e discriminação como eles sofrem. Mas não adiantava, nessa nova situação, ele era um fraco, algo que ele nunca fora antes, mas não conseguia evitar. A realidade cruel de sua nova vida o havia atingido, e ele não via escapatória. Ele sabia que não viria nenhum Hagrid resgata-lo, que ele teria que lutar com as próprias mãos, mas ele não tinha motivação. Tinha ódio de sua fraqueza, tinha ódio por não conseguir se adaptar, tinha ódio por nem tentar. Por que ele estava agindo assim?

Bem, seus “acidentes” não ajudavam. Desde seu atropelamento no dia em que chegara aquele mundo, ele sofrera mais dois na volta de um dos seus trabalhos. E não fora apenas atropelamentos. Ele rolara de escadas quatro vezes, fora esfaquedo duas vezes em assaltos (quando os assaltantes descobriram que ele não levava nada de valor) e fora baleado uma vez. Sem contar os acidentes menores, como queimar em água fervente, que eram quase tão dolorosos quanto os mais sérios. Eles sempre ocorriam quando não havia ninguém por perto, portanto nenhuma pessoa estava ali para testemunhar sua rápida recuperação. Mas a dor era a mesma: muita. Às vezes achava que a dor que ele sentia era mais aguda do que a dor normal. A dor física constante causada por esses contínuos acidentes só faziam sua existência mais desgraçada. Porém, não era isso que o preocupava mais.

Ele se lembrava de que Deus havia dito a ele que passaria o resto de sua vida no inferno, não a eternidade. Esses acidentes constantes, e sua rápida recuperação deles o preocupavam. Será que aquilo significava que, de alguma forma, ele era imortal? Será que ele iria envelhecer? Ou significava que a única maneira dele morrer seria de causas naturais? Deus estaria causando esses acidentes? Passar a eternidade nessa existência, ou mesmo longos anos, era algo que ele não queria nem considerar.

Inferno. Deus era realmente esperto. Ninguém diria que a vida que ele estava vivendo era um inferno. Muitos diriam que existiam pessoas que estavam em condições muito mais desesperadoras do que ele, mas nem por isso abaixavam a cabeça como ele estava fazendo. Mas, para Harry, aquilo era um inferno, um inferno particular, detalhadamente pessoal, e ele não sabia explicar o porquê. Não era apenas a ausência de magia. Era tudo, todos os fatos de sua atual vida combinado com o modo como que ele encarava tudo aquilo. E ele não conseguia mudar isso.

Porém, Harry não sabia que ao ouvir uma conversa entre seus colegas de serviço no restaurante onde trabalhava mudaria sua vida para valer. Principalmente no que ele chamava de “motivação”.

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Era hora do almoço no pequeno restaurante onde Harry trabalhava. Harry comia perto do fogão, seu lugar de costume. Próximo a ele, dois ajudantes de cozinha conversavam uma conversa que poderia ser descrita como “existencialista”. Harry não estava prestando muita atenção ao que eles falavam, porém, ao ouvir a palavra “Deus”, ele apurou os ouvidos.

- Richard – era Terry quem estava falando – você acredita em Deus?

Richard virou levemente o rosto para ele, como se estranhasse a pergunta de Terry:

- Bem, depende do que você entende por Deus.

Terry tinha um olhar vidrado, como se ele estivesse muito longe.

- É que eu estava pensando. E se o “céu”, isto é, o lugar onde Deus mora, não for um local muito bom? E se lá for um local muito longe do paraíso que imaginamos ser o céu? E se Deus tiver uma vida tão desgraçada que teve que nos imaginar para fazer sua existência mais suportável?

Richard levou um longo tempo para responder. Era claro que estava refletindo as perguntas de Terry.

- Não sei se quero pensar nisso – disse Richard, deixando claro que não queria continuar aquela conversa.

Harry também ficou por um tempo imóvel. Era como se todas as peças se tivessem encaixado. Ele (ou Ela) era o causador de tudo aquilo. De tudo que havia ocorrido. Ela controlava nossos destinos, nossas vidas, provavelmente causara aquela guerra. Provavelmente foi a responsável pela existência de Voldemort! Responsável também pelas mortes de seus amigos e familiares. E tudo por um simples capricho! Um capricho! Entretenimento!

A partir daquele dia, Harry encontrou uma nova razão para existir. Uma motivação, como ele gostava de chamar. Iria se encontrar com Deus. Não sabia como, mas iria encontrá-la. E iria confrontá-la. Não se importava com o que poderia acontecer com ele, tinha que confrontar aquele Deus cruel, e faze-la consertar tudo. Obriga-la a mudar o mundo, ou os mundos, para o que ele deveria ser. Para o que ele tinha que ser.

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Liam tinha uma missão a cumprir. Tinha que matar o diabo. Sim, ele sabia quem, ou o quê, era o diabo. Devia ter descoberto antes, mas não fora esperto o suficiente. Só descobrira quando fora tarde demais. Quando ele já havia acabado com a vida de todos que se aproximaram dele, inclusive a de Liam!

Encontrara o Diabo à quase dois anos, quando o atropelara “acidentalmente”. Claro que não acreditava mais em um “acidente”. O próprio diabo se fizera ser atropelado, apelara para sua compaixão, agora ele estava condenado. Devia ter desconfiado quando vira que o garoto não tivera ferimentos, mas, na sua ingenuidade, acreditara ter presenciado um milagre. Hoje, ele já não era tão ingênuo.

Depois daquele dia, sua vida foi uma sucessão de tragédias que até hoje ele não consegue aceitar direito. Primeiro, o seu nome como caminhoneiro ficara manchado por causa de uma carga que chegara estragada ao receptor. A mesma que ele estava carregando no dia que atropelou o garoto. Agora, ele quase não tinha contatos para entregas. Era a mesma coisa que dizer que estava desempregado. Depois, seu namorado havia contraído um câncer, que o levou em menos de três meses, no meio de muita dor. Liam fora obrigado a presenciar o sofrimento de seu amado sem poder fazer nada. Poucos dias após a morte de Edward, Liam fora despejado de sua casa depois de ter ficado dois meses sem pagar o aluguel. Agora ele estava vivendo de favor na casa de um conhecido, que já avisou que aquilo é apenas temporário.

Mas ele nunca havia ligado esses fatos com o atropelamento de quase dois anos antes. Não antes de ver aquela notícia em um jornal londrino que ele pegou por acaso. Era uma pequena nota, como se eles não tivessem noticiando algo de muito importante:
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CORPO DE JOVEM ENCONTRADO

O corpo de uma jovem escocesa identificada como Caroline McEnroe, 19, foi encontrado essa manhã em um quarto de hotel em Londres. A causa morte foi overdose de heroína.
A jovem, natural de Glasgow, estava em Londres há menos de dois anos. Uma de suas amigas na cidade, que diz se chamar Mary, disse que Caroline se prostituía em Picadilly Circus para sustentar o vício.
Não se sabe se alguém estava com ela na hora de sua morte. Os pais já foram notificados de sua morte, e estão vindo de Glasglow para recolher o corpo.
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Liam naquele momento teve certeza que tudo estava ligado aquele garoto. Aquela jovem, tão cheia de esperanças, tão alegre, haver terminado sua vida daquela forma… tinha que impedi-lo de destruir mais vidas! Sabia que o nome dele era Harry Potter, e que possivelmente ainda residia em Londres. Nesses últimos dois meses ele havia gastado o que restava de suas economias tentando encontra-lo, e finalmente havia conseguido. Tinha que ser forte, e fazer o que tinha de fazer. Com isso, ele tornaria o mundo o lugar melhor. E poderia morrer tranqüilo sabendo que tinha feito diferença.

Ele havia comprado uma espingarda no mercado negro, e havia treinado a pontaria por um tempo, até ela ficar decente. Agora ela estava mirando o diabo bem no peito, ele estava saindo do trabalho, um lugar onde provavelmente destruiu mais vidas. Estava bem na mira, ia conseguir fazer isso, tinha que conseguir, ele não era um jovem, mas sim, um espírito maligno. Estava na mira, vamos, AGORA!

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Harry se assustou. Que barulho fora esse? Olhou para os lados à procura da origem do barulho, e o que viu foram pessoas olhando para ele assustadas. Olhou para si, e viu que tinha sido baleado no peito.

Das muitas certezas que Harry tivera esse ano, essa era a mais forte. Mais forte do que qualquer outra certeza. Iria morrer. Desta vez era para valer, sentia estar morrendo, tudo terminaria em poucos segundos. Outras certezas também começaram a surgir como mágica. Tinha certeza que iria rever seus pais, e também seus amigos, e não existiriam mais preocupações e sofrimentos. Somente a paz. E a felicidade. Felicidade que estava sentindo agora. Quem diria que um dos momentos mais sublimes de sua vida seria sua morte. Nunca imaginara que ela seria assim. Iria morrer com um sorriso no rosto. Não odiava mais Deus, ela lhe dera um final feliz. Como ela devia dar para todos no final de nossas penitências.

Harry tocou na ferida e ergueu a mão para ver o sangue na ponta de seus dedos. Que beleza! Não estava doendo. Este foi o último pensamento que passou pela sua cabeça antes de cair levemente no chão.

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Liam sorriu e deixou cair a espingarda. Pessoas vieram em sua direção, havia sido descoberto. Homens o agarram, mas não o espancaram. Ele já não oferecia perigo. Iria ser levado para polícia, com certeza iria ser preso, e não iria negar nenhuma das acusações. Havia matado o diabo, cumprira seu papel, não tinha mais medo de nada. Poderia morrer em paz, cumprira seu papel.

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Do alto, tudo aquilo era pequeno. As pessoas pareciam formiguinhas em uma fazenda.

Isso é tudo pessoal!



N/A: Essa fic foi inspirada na história de um personagem de quadrinhos chamado Homem-Animal. O nome da história é "O Evangelho de Coiote", por Grant Morrison. É simplesmente uma das mais fantásticas histórias em HQ que já li. Foi publicada no início dos anos 90 em uma revista chamada "DC 2000" (esqueci o número) pela editora Abril. Sugiro que confiram.

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