Inverno




Capítulo I – Inverno


A neve caía, branca e gelada, sobre os secos campos de carvalhos e olmos retorcidos e desfolhados, de tal maneira que as sombras que eles imprimiam contra o paredão de uma pequena gruta eram ao mesmo tempo assustadoras e comoventes; conquanto se se olhasse de um lado, poderia-se visualizar sombras de monstros despertos pelo ronco surdo e quase imperceptível da massa desabando do céu e caindo na terra; mas, por outro lado, alguém poderia conceber naquele cenário uma paisagem bucólica de fim de inverno, com toda a tristeza que a natureza encerra dentro de si, mas com a promessa de um irromper primaveril que não havia de tardar.

O tapete aveludado e felpudo de neve estendia-se até perder-se de vista, imaculado a não ser pelas pegadas de pequenos animais despertos cedo demais de seu hibernar, buscando alguma raiz enregelada ou alguma noz prematura para saciar sua fome.

E então, de repente, como uma avalanche que irrompe da montanha que até então gozava de uma calma secular (embora não fizesse três meses que aquela neve caíra), uma voz soou, alta e grave, ribombando nos tímpanos do próprio bosque. Os animais mais uma vez retornaram para suas tocas e resolveram adiar sua busca por frutos retardatários da estação.

- Saia daí, Mérope, Méropezinha! Senão, você vai acabar morrendo, e nós dois sabemos porque isso não pode acontecer!


A voz era masculina, mas isso mal era perceptível, porque o que saía de sua boca não era uma língua compreensível. Sua língua agitava-se febrilmente dentro da boca, e seu olhar era inflamado e desvairado. Falava a língua das cobras.

- Vá embora! Me deixe em paz! – disse uma voz aguda feminina, dessa vez em inglês perfeitamente reconhecível.

Os gritos de Merope ecoaram por entre as árvores quando, tão de repente quanto havia gritado, Morfin penetrou a escuridão úmida da gruta e agarrou-a pela cintura, depositando-a sobre os ombros atarracados como um tapete pesado de poeira. E, de fato, a esfarrapada Merope não se diferenciava muito de um pedaço magro de trapo; vestida em vestes longas, pesadas e cinza-encardido; magra, seus seios mal eram distinguíveis sob o tecido drapeado no busto, e seus braços anormalmente longos caíam ao lado do corpo como galhos das árvores secas do bosque que a cercava. Seu rosto, simples e comum, não seria feio se desconsiderado os olhos divergentes que lhe davam um permanente ar de loucura; e cabelos de um castanho claro opaco, escorridos e com aspecto sujo, emolduravam-lhe a tez de um tom branco-pálido quase esverdeado.

Já Morfin possuía uma feiúra quase circense. Era ainda mais baixo que a irmã, e muito mais sujo, e seus olhos divergiam de tal maneira que era impossível dizer para que direção estava olhando.

Abriu violentamente pegadas na neve que subia até seu calcanhar e, depois de alguns passos (desviava-se das árvores particularmente espinhentas), conseguiu avistar um casebre em meio à cerca viva mantida viva por mágica.

A casa dos Gaunt era um casebre de poucos cômodos e um só andar (a não ser que se contasse um minúsculo porão onde, se no passado servira de adega, agora servia de depósito para instrumentos de aspecto letal e uso completamente desconhecido de Merope), construída em pedras já encardidas e cobertas de musgo. Ficava um pouco atrás da estrada principal que levava ao vilarejo de Little Hangleton, embora os Gaunt fossem lá muito raramente.

As janelas estavam fechadas com tábuas à guisa de cortinas a taparem os muitos buracos na vidraça, e um que passasse por ali daria a casa por desabitada, se não fosse pelo fino fiapo de fumaça que escapava da chaminé.

Morfin abriu a porta com uma delicadeza nada típica, e depositou uma resignada Merope no chão com igual e suspeita sutileza de gesto. Na sala, havia um outro homem.

O velho Marvolo achava-se sentado em frente a uma grande mesa de madeira, em cima da qual repousava apenas um velho pão embolorado sobre uma tábua, e uma faca de aparência cruel espetada em seu centro. Da cozinha ao lado escapava um calor tão aconchegante quanto era enjoativo o cheiro do mingau que vinha do mesmo cômodo, e isso pareceu acalmar Merope.

A moça levantou-se do chão encardido que havia muito desistira de tentar manter limpo, e antes que pudesse pensar num novo abrigo para seus lamentos, Marvolo disse:

- Sirva o jantar.

Não fosse por uma rala barba branca que enfeitava o queixo enrugado, e a estatura ligeiramente mais alta, Marvolo parecia-se exatamente com o filho. Seus olhos eram tão divergentes quanto, ao menos.

Mérope achou que poderia adiar um pouco o momento cujo temor a fizera fugir para aquela gruta a fim de, talvez, morrer congelada, ou, se tivesse sorte, ser devorada pelos lobos antes que a noite terminasse e fosse achada. Então entrou na cozinha a passos lentos e arrastados, e demorou o máximo possível para servir a sopa rala de aveia em três pratos de prata oxidada, que ela dispôs na mesa em que Marvolo ainda estava sentado em frente. Morfin brincava de girar a ameaçadora faca entre os dedos.

- Bem, vocês sabem porque estão aqui.
- Papai, não... – gemeu Merope baixinho, ao que foi solenemente ignorada.
- A linhagem precisa continuar – prosseguiu Marvolo – A pureza de nosso sangue só foi mantida até então devido ao feliz hábito de nossos antepassados de casarem entre si. Infelizmente somos o último ramo vivo da nobre raça dos Slytherin, e temos o dever de perpetuar a linhagem...
- Eu não vou casar com essa caolha! – disse Morfin num rompante, e atirou a faca na mesa, ao que o agudo objeto foi cair com a lâmina perfurando a madeira podre da superfície.
- Você por acaso anda se olhando no espelho ultimamente, anda? – respondeu o raivoso Marvolo. Segundos depois, no entanto, sua expressão se abrandou – Não é essa a questão. Merope já tem dezoito anos, e Morfin quase vinte. Podem perfeitamente se casar.

E com essa última sentença, Marvolo deixou claro sua ordem, e logo em seguida, empurrando o prato para o lado, saiu para a noite gélida, não dando tempo para que nenhum dos dois respondesse quando disse:

- Eu os declaro marido e mulher, e está feito.

E seu vulto foi visto se afastando pelos dois irmãos, agora consortes um do outro, através da brecha na janela da sala, que de repente parecera se tornar ainda menor do que já era.

- Isso é ridículo – murmurou Merope, revoltada.

Retirou-se, então, para o único quarto da casa, onde costumava dormir. Possuía uma cama com cortinas esfarrapadas que ela sequer se deu ao trabalho de fechar – não ajudariam em nada a conter o frio ártico daquela noite. Despiu as pobres vestes, atirou-as ao lado – amanhã tornaria a vesti-las, e sempre, e sempre – vestiu a fina camisola de linho, soltou os cabelos que já soltavam-se do rabo-de-cavalo precário em que os prendera (escorregadios como cobras molhadas, eram os fios de seus cabelos, e ela os odiava, ah, odiava!), e imergiu na montanha de cobertores esfarrapados, tremendo no tecido fino contra o frio do colchão. Não se deu ao trabalho de trancar a porta – não adiantaria, qualquer um abriria se quisesse, aptos como eram o irmão e o pai, ao segurarem a varinha. Uma única vela iluminava o quarto sombrio no criado-mudo ao lado da cama, somente ao alcance de um sopro, mas ela não a apagou. Não gostava do escuro, quando qualquer ruído, fosse um esquilo roendo uma noz ou Morfin quebrando as garrafas cujo líquido bebia avidamente, metamorfoseavam-se em monstros passeando pelo bosque lá fora ou em Morfin amaldiçoando trouxas incautos. Seu trouxa incauto. Suspirou. Sentia uma nova onda de sonhos lúbricos em que deslizava pelo corpo de seu amado como se fizesse parte dele, e somente dele... Ou talvez esta noite viessem os terríveis pesadelos. Estremeceu só de lembrar de seus pesadelos, e aproximou ainda mais a vela de si, de tal maneira que agora podia sentir o calor que sua chama irradiava. Mas foi só quando sentiu a respiração ofegante de Morfin junto ao seu pescoço, e os dedos sujos e quentes penetrando sua pele através do fino tecido da camisola, e o hálito alcoólico do irmão penetrou como um gás corrosivo em suas narinas, provocando-lhe ânsia de vômito, que Merope sentiu medo.

- Nós somos casados agora, Meropezinha – ofegou o rouco Morfino, aproximando-se mais de seu corpo tomado de tremores da irmã.

Com um sopro certeiro, Merope apagou a vela e ambos imergiram na aveludada escuridão da noite.

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