Inferno



O ar escapou dolorosamente por seus lábios e ela encostou a testa à parede. A ânsia voltou a engolfá-la, mas dessa vez ela se controlou.

Fechando os olhos, ela se deixou ficar daquela maneira, encostada à parede do banheiro, pálida, ofegante, tão fraca e fragilizada quanto uma criança.

Lentamente, o corpo da ruiva escorregou junto aos ladrilhos e ela observou o teto branco sobre sua cabeça. A lâmpada balançava de um lado para o outro com o vento que entrava sorrateiro pela janelinha ao lado do chuveiro. De um lado para o outro, de um lado para o outro, em um movimento quase de hipnose.

Deitou-se molemente sobre o chão frio, a cabeça junto à porta, os olhos febris observando o quarto desarrumado. Há quanto tempo não ajeitava aquela bagunça? Há quanto tempo não recolhia as roupas, guardava os sapatos, forrava aquela cama?

A sensação do chão frio junto à pele quente era extremamente reconfortante. Embora soubesse que a cena que ela estava protagonizando naquele momento era simplesmente lamentável, Lily não tinha forças de se arrastar para a cama. Na verdade, duvidava que fosse capaz de se deitar novamente sobre aquele colchão desde que tudo acontecera.

Respirou fundo, encarando novamente o teto. Os lábios ainda permaneciam com o gosto amargo, metálico, que já a perseguia há dias. Sorriu tristemente, encolhendo-se de modo a poder abraçar os joelhos e deixou as lágrimas que segurara por todo o dia escaparem. Lembrou-se do casarão, da boneca, e da face sorridente de August Roockwood.

Queria que James estivesse ali. Queria que ele a segurasse junto a ele, que a protegesse, que a amasse. Meneou a cabeça, encostando a testa novamente no chão, tentando esquecer, tentando se livrar daquela dor, tentando escapar daquele inferno.

Gostaria de poder escolher novamente. De poder voltar no tempo, consertar tudo o que estava errado, tudo o que a fazia sofrer... A começar por James. Se pudesse escolher novamente, jamais teria conhecido o rapaz. Se jamais o houvesse conhecido, todo aquele sofrimento iria embora. Seria uma pessoa totalmente diferente. Talvez fosse capaz de confiar nas pessoas, afinal.

Aquele era seu grande problema. Não conseguia confiar em ninguém. Se tivesse permanecido em seu mundo - o mundo dos trouxas, o mundo de seus pais, de sua irmã - ela certamente seria capaz de confiar em si mesma. De confiar em seu próprio julgamento, de confiar em seu próprio poder.

Mas, não. Ela não pertencia ao mundo trouxa. Era uma bruxa.

Até aí, nenhuma dor. O problema era quando, dia após dia, acordava em meio a pessoas orgulhosas, mesquinhas, conscientes de sua superioridade - da superioridade de seu sangue.

Isso minava toda sua autoconfiança. Minava todo o seu orgulho. Minava toda a sua capacidade de confiar em alguém. E, sendo incapaz de confiar, era também incapaz de amar.

Lily engoliu o soluço. A mesquinha, a medíocre, a hipócrita, era ela. Ela que se fazia de forte, que fingia não se importar, que lutava com todas as forças para ser aceita, para encontrar seu lugar no mundo. Ela que mentia. Ela que, do alto do seu orgulho, era incapaz de deixar a segurança de sua própria fortaleza para ser feliz.

Ela era incapaz de confiar em James. Incapaz de confiar no que ele dizia, no que ele sentia. Incapaz de arriscar, de deixar suas próprias emoções extravasarem.

Incapaz de deixar o inferno que ela mesma construíra para si.




E apesar do orgulho, ele voltara. Voltara, por, simplesmente, não ter outra escolha. Novamente estava ali, no charmoso café, abrigando-se da chuva sob a marquise da loja, observando a janela fechada do apartamento dela e lembrando-se de momentos que ele, decididamente, precisava esquecer.

Mas ele era incapaz de esquecer. Em vez disso, ele sempre retornava para ela. Não importava a maneira como ela o tratava, não importava a frieza, as tentativas de feri-lo, de mandá-lo embora... Sempre fora daquela maneira. Ela fugindo e ele esperando. Esperando, freqüentando os mesmos lugares que ela para poder vê-la, recordando cada gesto, cada palavra...

James deu um passo à frente, deixando que a chuva lhe martelasse sobre sua cabeça, encharcando-o por inteiro. Um vento gelado e furioso soprou, enfurnando sua capa, mas ele não se mexeu.

Faltava menos de uma semana para o natal. Uma semana... Fechou os olhos, tentando não notar a dor quase física que lhe perpassara a essa lembrança.

O que estava fazendo da sua vida? Por que, quando ela o rejeitara, em vez de procurar consolo nos braços de outra, ele se tornara soturno e amargurado? Em vez de sair com os amigos, beber com eles, rir e fazer de conta que estavam de volta a Hogwarts, onde eles eram os marotos e a vida parecia perfeita só por esse detalhe - por que, Merlin, por que ele preferia ficar sozinho, observando a janela escura daquele apartamento, mesmo sob aquela chuva torrencial?

Não voltaria atrás. Ele prometera a si mesmo e deixara bem claro para Lily que ele não mendigaria mais a atenção dela. Não mais. Mas, mesmo assim, ele estava ali, na esperança de que ela aparecesse pelo menos por alguns instantes na janela e ele pudesse observar furtivamente os olhos dela.

Talvez tivesse tendências masoquistas. Era a única explicação racional para o que ele estava fazendo consigo mesmo.

Todos os dias, dez para as oito, ele estava no escritório, esperando ela chegar. Em silêncio, analisavam os relatórios lado a lado, fingindo não se importarem. Até algumas semanas antes, aquele era o horário em que aproveitavam a presença um do outro. Em que deixavam extravasar todo o amor que sentiam. Agora, eles sequer eram capazes de se encarar.

Quando Frank e Sirius chegavam, às dez, a maior parte dos relatórios já estava analisada, já havia apontamentos para a primeira reunião do dia e esboços gerais das missões que teriam de enfrentar ao longo da semana.

Se era Lily quem ficava responsável por alguma tarefa mais espinhosa, como um interrogatório ou uma busca e apreensão, ele logo sentia o coração palpitar, perguntando-se quem iria protegê-la.

De noite, ele a seguia de longe com os olhos, sombras através da cortina branca que esvoaçava para fora da janela. E morria um pouquinho mais a cada instante, afundando naquele amor louco, obstinado, amargurado, fechado em seu próprio silêncio.




Novembro - 1976

- Será possível que você ainda não percebeu! - ele gritou, tentando soar mais alto que o vento, que rugia ao redor deles - Sem que eu percebesse, sua presença quase diária se tornou necessária pra mim, Evans.

- Potter... - ela começou sarcástica.

James a interrompeu, segurando-a firmemente contra o próprio corpo, ignorando a chuva, a tontura que sentia, a respiração descompassada... Tudo.

- A discussão ao café-da-manhã é o que me anima a sair da cama; as respostas atravessadas do almoço são o que me fazem suportar as aulas; a conversa civilizada da noite, quando você está muito cansada até mesmo para brigar comigo é o que embala os meus sonhos. Será que você não percebe? - ele a apertou ainda mais contra si, embora ela já não mais lutasse para fugir dos braços dele - A minha vida nos últimos tempos se resume a você, Evans. Se resume a perseguir você com o olhar para onde quer que você vá, a sofrer quando você sofre, a sorrir quando você está feliz... Eu só me sinto realmente vivo quando você está por perto. Será que você não percebe?

Ela entreabriu os lábios, pela primeira vez incerta de como agir perante as palavras dele. Aos poucos, James afrouxou o laço que fazia junto à cintura dela, respirando pesadamente à visão da blusa branca - agora quase transparente por conta da chuva que os açoitava - enquanto os cabelos dela pregavam-se ao corpo dele, encharcados, pesados de água.

Lentamente, ele abaixou a cabeça, deixando os lábios no mesmo nível dos dela. Os olhos de Lily piscaram confusos por breves instantes antes dela assentir imperceptivelmente. James sentiu ela passar os braços por debaixo dos braços dele ao mesmo tempo em que seus lábios esmagavam os dela, num beijo urgente.

Quando finalmente se separaram, ela sorriu, ao mesmo tempo em que tentava recobrar o fôlego. Com um sussurro, ela recostou a cabeça ao peito dele, surpreendendo James. Nenhum tapa? Nenhum grito?

- Eu acredito. - ela respondeu baixinho, sem olhar para ele.




Um trovão ribombou não muito longe dali e ela finalmente levantou-se do chão frio do banheiro. Rapidamente percorreu todo o apartamento, fechando as janelas, antes de voltar ao banheiro e escovar os dentes pela terceira vez em menos de uma hora.

Não adiantava. O gosto amargo não ia embora.

Suspirando, ela voltou para a sala e finalmente encarou os exames que estavam abandonados sobre a mesa, que ela recebera aquele dia e não tivera ainda coragem de abrir.

O que aqueles papéis poderiam mudar em sua vida?

Lentamente, ela aproximou-se da mesa, quebrando o lacre deles, respirando fundo antes de começar as ler as letrinhas negras à sua frente.

Positivo.

Respirou fundo, controlando a vontade de gritar. No dia seguinte, ela conversaria com Moody. Não poderia continuar em Londres. Fugiria de novo. E dessa vez, para sempre.




James sentiu uma pontada estranha no peito. Já passava das dez. Ela já fechara todas as janelas, provavelmente estava dormindo. Não adiantava mais ficar ali.

Soltou o fôlego de uma vez, sorrindo tristemente. Já era hora de cuidar um pouco dele mesmo. E, com um último olhar para a janela, onde uma sombra se apoiava contra o batente, ele aparatou para casa.

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