Portão B-001



Pude sentir uma gota de suor frio descer pela minha testa quando as gêmeas entraram juntas no depósito, murmurando entre si com todo o cuidado para que meu pai e eu não escutássemos. Papai não parecia tão nervoso, enquanto eu torcia para que a tal varinha fosse na mesma faixa de preço que as outras. Quando as irmãs voltaram, soube que elas definitivamente estavam mais ansiosas do que eu.



A caixa que trouxeram era dourada e envolta por um laço de fita da mesma cor, se destacando no balcão. Adelaide e Amélie se debruçaram sobre a própria mercadoria, impedindo que eu espiasse o que a caixa guardava e leram rapidamente um pequeno papel antes preso debaixo do laço, do qual Adelaide enfiou no bolso da saia com certa agressividade.



- Escute, minha menina: o que temos aqui é uma varinha raríssima. - Adelaide me olhou, ainda escondendo a caixa com suas mãos - Só temos uma desta em nosso estoque. Se ela lhe pertencer… Meu único desejo é que cuide dela como a sua própria vida.



- Certo... - Franzi o cenho, intimidada pelo pedido da vendedora - Eu acho.



- Não é comum que produzam varinhas de metal. Tanto a produção quanto o manuseio são complicadíssimos. - Ela falava enquanto abria a caixa e desdobrava uma seda lá dentro - Não são muitos os bruxos que possuem a honra de ter uma destas.



Trêmula, Adelaide me passou a varinha com a maior cautela do mundo; ela era firme, um tantinho mais pesada que o comum, de cor metalizada e enfeitada por fileiras de cristais no cabo e uma pérola na ponta. Nunca pensei que uma varinha como esta poderia existir, de metal e jóias de verdade. Não entendia sua existência, tampouco como poderia ser minha - no entanto, não houve nenhum desastre ao experimentá-la. A varinha se fez uma com minha mão direita e a manuseei com segurança e firmeza. Não sabia como poderia pertencer logo à mim, a camponesa de Annecy.



- Essa varinha é feita de platina, com núcleo de cabelo de veela, inflexível. - Adelaide explicou, me deixando ainda mais incrédula.



- “Cabelo de veela”? - Perguntei intrigada - Esse tipo de núcleo só é possível se uma veela oferecer uma mecha, não?



- Não podemos revelar a doadora. - Adelaide fez um gesto pedindo para que eu não fizesse mais perguntas - Leve, menina. Essa varinha está aqui há mais tempo do que você está neste mundo.



- Quanto é?



- Nada. Considere um presente da casa.



Me virei para meu pai pedindo sua aprovação. Considerando todas as características da varinha, eu considerava absurdo não me custar nem mesmo uma moeda. Novamente, sua expressão era indiferente. Ele apenas sorriu e me deu um tapinha nos ombros, como se dissesse que está tudo bem.



 



De volta ao meu humilde lar em Annecy, eu estava desapontada comigo mesma por não ter aproveitado tão bem a minha primeira ida à Paris. A atitude arrogante das meninas na livraria foi minha primeira distração, e depois da aquisição da minha varinha, não consegui pensar em mais nada e passei todo o dia pensando em como ela poderia ser minha. Minha mãe abriu um de seus melhores sorrisos quando a mostrei minha nova jóia e Mademoiselle Noir gostou bastante do design, julgando pela forma com que a cheirou com seu focinho em formato de coração.



Depois de gastar meia hora admirando os detalhes da varinha trancada em meu quarto, finalmente conferi os uniformes: eram cinco, sendo todos eles um tom atalcado de azul. O uniforme regular era um vestido de comprimento médio que poderia ser usado tanto com uma capa que cobria apenas o busto quanto um charmoso paletó que levava o brasão da Beauxbatons bordado com graciosidade, fora o chapéu de meia-lua que me lembrava um cloche. Os outros quatro incluíam um vestido pouca coisa mais longo e de maior leveza, um collant de dança acompanhado de uma saia bem curta de chiffon e um conjunto de calça e suéter. A outra sacola da alfaiataria continha os “extras”: meias (um par de nylon ⅞ e outro de dança), um suspensório para elas e um par de sapatos de salto baixo. Eu teria dado uma olhada nos livros, se Mademoiselle Noir não tivesse adormecido sobre eles.



Vesti o uniforme padrão e, em frente ao espelho, imitei a postura das bruxas parisienses que cruzei na rua aquele dia. A coisa do vestido e todos os seus defeitos e críticas voltaram a me incomodar. Eu não queria parecer inferior às minhas colegas fora dos horários de aula, quando não se usa uniforme. A tristeza daquele pensamento me consumiu pelo resto da noite, até recusei os maravilhosos brownies de abóbora da mamãe pela primeira vez em todos os meus onze anos, e fui para a cama remoendo a situação.



Passaram-se os dias, sempre algumas horas mais perto do começo do ano letivo, e fui esquecendo sobre as meninas rudes. Não me impediu de gastar o pouco que tinha de dinheiro em dois vestidos novos, um amarelo e outro rosa, sendo que o rosa ficou um pouco apertado mas levei mesmo assim por ser o último na loja. Vovó Apoline ainda me presenteou com um verde, que segundo ela, foi a forma que encontrou para me parabenizar pela minha matrícula. Meu pai reclamou do amarelo por ser curto, na altura das coxas, porém o calei quando o mostrei um grupo de garotas na rua vestindo todas o mesmo modelo.



- É mil novecentos e sessenta e dois, papai! - Eu exclamei enquanto ele assistia o grupo passar, chocado.



 



Pela madrugada de 31 de agosto, fui acordada três ou quatro vezes por culpa do barulho provocado pela minha mãe ao arrumar a bolsa e a casa para o grande dia. Ela despertava a cada trinta minutos se lembrando de algo que deveria ter feito e esqueceu - qualquer um poderia facilmente dizer o quanto estava ansiosa. Na última vez em que acordei a ouvi chorar, mas minha preocupação não foi tão grande porque supus que era saudade precipitada da filha que esteve ali todos os dias desde que nasceu.



- Logo ela não estará mais aqui, Gaspard. - Escutei minha mãe dizer soluçando, e o que veio em seguida não pude compreender.



- Nos preparamos onze anos para isso. - Meu pai a confortou - E Anne ficará bem.



No fundo, deixar meus pais afetou meu emocional, e mesmo após ter aproveitado o melhor de Annecy durante todo o mês, eu já estava com saudades de olhar para a estonteante paisagem natural dos alpes. Papai me ajudou a descer com as malas, pois eu segurava Mademoiselle Noir com um braço, e mamãe me ofereceu um pão com presunto para garantir que eu não sentisse fome durante a viagem até a capital.



- Vamos até o aeroporto de Paris, dali seguimos para o portão B-zero-zero-um e chegamos até à carruagem. - Disse meu pai antes de engolir uma xícara de café - Temos de ser rápidos, é um processo tão bem calculado quanto o dos aviões ali.



- Antes do aeroporto existir, onde pegavam a carruagem? - Eu quis saber.



- Não sei, vai ter que perguntar à algum professor seu. Vamos logo!



O sol nem havia nascido por completo quando saímos, e mal pude me despedir direito da minha própria casa. Tive de me arrumar muito rápido assim que acordei e precisei ir contra minha capacidade para acabar logo com o pão. Vi meu pai ligar o nosso Citroën 2CV após muitos meses estacionado atrás da casa e coberto por um lençol velho, dirigiu em terra firme até chegar à estrada e então permitiu que o carro deixasse o chão. Nunca havia voado de carro antes, logo fiquei admirada em ver os alpes de cima, inclusive deixei Mademoiselle Noir admirar a vista também (mas acho que ela estava bastante assustada com a altura). Presenciei as luzes apagando conforme o sol se erguia, a água dos rios correr e as nuvens abrindo caminho para nós. Não muito depois, estávamos em Paris e papai estacionou próximo ao aeroporto. Me deleitei da imagem da Torre Eiffel enquanto no ar.



- O portão fecha às nove e meia, temos de ir rápido! - Meu pai se apressou para tirar a bagagem do porta-malas - Não pare para ver nada, na volta você faz isso!



- Papai, eu sei muito bem disso, e já falei que não vou me distrair.



- Estava falando com sua mãe.



- Gaspard! - Ela exclamou ofendida.



O tumulto no aeroporto era rotineiro de uma cidade grande: aeromoças e pilotos correndo de um lado para o outro como atores de teatro entrando em seus lugares no palco, famílias se reencontrando, casais aos prantos, correria para não perder o vôo e malas, bolsas e animais de estimação por todos os cantos. Eu sabia que deveria estar mais preocupada em atravessar o portão à tempo, mas passou pela minha cabeça a possibilidade de eu estar com sorte e topar com Brigitte Bardot chegando ou partindo para mais um dia de filmagens. Seguindo meus pais ao mesmo tempo em que minha cabeça se perdia nas nuvens, pensei que Bardot poderia ser uma veela e ninguém saber; seria uma boa explicação para a beleza e o charme incomparáveis da atriz.



- Anne, é ali! - Mamãe me cutucou e apontou para o que seria o portão B-001.



Quando meu pai mencionou o tal portão, pensei que seria igual a qualquer outro com a exceção de que os trouxas não podem ver. Para minha agradável surpresa (e algum estranhamento), era literalmente um portão dourado no meio do aeroporto, grande, imperial e brilhante, em estilo rococó. Um relógio segurado por duas fadas de ouro logo acima nos informou a hora: nove horas em ponto.



 - Não há tempo a perder! - Papai, que providenciou um carrinho de bagagem assim que chegamos para não acordar com as costas doendo na manhã seguinte, temia - Eleonore, poderia abrir?



Minha mãe parecia envergonhada diante da grandeza do portão e timidamente o segurou pelas grades para puxá-lo. As fadas no relógio reagiram no instante em que a mão encostou no ouro, o visor arredondado apresentou o número 15, decresceu e passou poucos segundos mostrando um 14 antes dos ponteiros reaparecerem com a hora. Mais outras duas famílias apareceram atrás de nós esperando sua vez, o que fez meu pai pedir para mamãe se apressar.



Passamos por um corredor escuro, praticamente sem nenhuma luz, e embora eu não tenha tanta certeza, creio que o chão era um caminho de flores, julgando pela maciez quando eu pisava. Senti mamãe procurar pela minha mãe para se assegurar de que eu ainda estava perto deles e o buraquinho de luz do sol que no começo parecia tão distante cresceu conforme andávamos, nos mostrando o fim do corredor. Terminado o caminho, me deparei com duas carruagens, um grupo de pégasos brancos e bem cuidados em cada uma, pessoas conversando entre si e um homem da minha altura que segurava um pergaminho em uma mão e uma longa pena prateada em outra, vestindo um casaco azul com bordados por todo peito e mangas. Notei que ele também usava uma peruca branca com um rabo-de-cavalo, e que deveria ser um senhor de meia-idade.



- Apresente sua carta de admissão, por favor. - Ele pediu à mim.



- Está aqui, mon sir! - Minha mãe ficou responsável por essa parte e estava com a carta guardada em sua bolsa, a repassando ao homem - Anneliese Deneuve, caloura.



- Oui, oui, não precisava me dizer. - Ele abriu o pergaminho e procurou pelo meu nome, riscando em seguida - Seja muito bem-vinda à Beauxbatons, Mademoiselle Deneuve. Nos permita cuidar se sua bagagem, sim?



Outros dois homens, dessa vez mais altos porém vestindo o mesmo traje, surgiram para tirar as malas do carrinho e levar até a carruagem menor. Quando olhei, meus pais tinham olhos marejados, e mamãe já estava a chorar. Subi nas pontas dos pés e a beijei no rosto, repetindo o mesmo com meu pai, que se esforçava para não deixar as lágrimas transbordarem. Não queria privá-los de estarem emocionados com a minha partida, portanto quis parecer compreensível e ciente de seus sentimentos. Abracei minha mãe uma última vez, com cuidado para não esmagar Mademoiselle Noir, prometendo que escreveria com frequência.



- Oh, minha querida! Parece que foi ontem que a segurei no colo pela primeira vez! - Mamãe acariciou os cantos do meu rosto - Je t'aime, je t'aime beaucoup!



- Je t'aime aussi! - Eu retribuí o carinho - Je t'aime plus que tout au monde!



- Se cuide, filha. - Aconselhou meu pai - Nós te amamos demais.



- Lamento interromper, mas preciso que partam agora. - Ordenou o homem baixinho - O portão muito em breve irá fechar.



- Só mais uma coisinha! - Mamãe enfiou a mão na bolsa novamente - Tome, meu bem: você andou usando bastante este meu batom, então pode ficar com ele! Adieu!



- Adieu! - Aceitei o presente e acenei, me afastando - E cuidem da Jeanne Louise, acho que ela baterá as botas em breve!



Seguimos em direções opostas, eu me aproximando da vigorosa e clássica carruagem azul. O homem ao lado da porta, que exibia o brasão, a abriu para mim e uma pequena escada se materializou para me ajudar a subir, pois a entrada era à aproximadamente um metro longe do chão. O interior me encheu os olhos e o coração, mais parecia o salão de baile de um palácio real, sendo bem maior que o exterior. Mesas cobertas por toalhas sedosas do mesmo tom de azul do uniforme da escola estavam espalhadas pelo centro, convidando os passageiros a se acomodarem e iniciarem uma conversa com os colegas. Bules de chá passavam voando servindo as mesas, uma escadaria dava para um segundo andar repleto de sofás onde amigos se agrupavam para fofocar. O local era iluminado por um candelabro que cobria todo o teto e as pinturas barrocas de anjos nas paredes eram um detalhe que colaborava para que eu me sentisse bem-vinda. Eles sopravam beijos docilmente para quem passasse por perto.



- Viu só que incrível, Mademoiselle? - Perguntei à minha gata - Vamos viajar aqui nos próximos sete anos!  



Eu estava maravilhada e enfeitiçada pela grandeza e luxo da carruagem, mas não demorou para que eu me sentisse pequena demais e solitária, pisoteada pela avassaladora beleza nas mínimas particularidades. Eu era uma das únicas que não conhecia ninguém ali, até os outros calouros tinham alguém de quem já era amigo antes. Me sentei em uma das mesas com Mademoiselle Noir e aguardei ter minha xícara de chá enchida; eu estava completamente sozinha pela primeira vez senão a presença da gata, era mais uma pequena abelha na ampla colméia que era a carruagem.



- Você está aí! - Ouvi uma voz até que familiar dizer, mas dei de ombros por achar que não era comigo - A garota que conheci na alfaiataria!





Eu sei que estou muito atrasada com esse capítulo, então tentei fazer um pouquinho mais longo que o esperado! Lamento pela demora!



*O Citroen 2CV é o que foi apelidado de "fusca francês", produzindo entre a década de 40 e 90, e era considerado um carro popular na época, até pelo baixo custo, portanto vendeu bastante. 



** Vocês podem conferir uma filmagem que mostra o aeroporto de Paris na década de 60 aqui: https://www.youtube.com/watch?v=2PdlfjEPcdw



Espero que estejam gostando e por favor comentem dizendo o que estão achando! Au revoir!


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