Fadas enfadonhas



Eu e meu irmão Rerly estávamos jogando xadrez após o jantar. Havíamos ajudado a tirar a mesa somente para começarmos o jogo logo. Porém eu não estava tão empolgado quanto ele. Mas naquela época não existia muita coisa que me motivasse. Não sei se era coisa da idade ou apenas uma fase. Talvez fosse o dente do “juízo” que estava crescendo.


Sem pensar muito eu movimentava as peças, gerando grandes tragédias no meu jogo, porém meu irmão Rerly não estava muito feliz com isso, pois adorava jogar xadrez e fazer isso com uma pessoa desinteressada é pior do que jogar sozinho, contra si mesmo.


Com tédio mesmo estava nossa prima Kasse. Estava com a cabeça escorada na mesa ao redor dos braços. A palavra “enfado” parecia estar escrita em sua testa. Todos sabiam que ela queria voltar para sua casa, para seus amigos, para suas coisas e para sua vida inútil. No entanto faltava uma semana ainda e ela até se esforçava em interagir e se divertir. Porém não havia como ali, com seus primos chatos que só queriam jogar xadrez e falar sobre quadribol.


Minha tia Zolna, mãe de Kasse, apareceu pela porta e ficou ali parada por alguns segundos.


— Kasse? — chamou ela. Sem pressa, Kasse virou-se para a mãe, arrumando suas mechas ruivas.


Tia Zolna era muita parecida com a filha, era fácil pensar que eram irmãs, inclusive pela forma que se tratavam. E quando a mãe viu a palavra “enfado” na testa da filha, fez um sinal para que ela se levantasse.


— Vamos caçar umas fadas!


Eu e Rerly olhamos para nossa tia tentando encontrar o tom de zombaria no que ela disse. Mas não havia, ela parecia estar falando sério. Kasse levantou-se repentinamente e se espreguiçou antes de ir até a mãe.


— Caçar o quê? — indagou Rerly.


— Fadas! — respondeu Kasse em um tom de “isso mesmo que você ouviu, idiota”.


— Falta uma semana para o natal... — disse eu.


— Alguém quer ir? — convidou minha tia.


Rerly balançou a cabeça negativamente e indicou o tabuleiro com as mãos. Eu passei meu braço pelo tabuleiro derrubando todas as peças.


— Vamos!


 


Naquela parte do mundo no fim do ano é verão e chove muito. De noite o tempo é fresco, em contraste com o dia, que desde cedo já é quente. Kasse e a mãe se acostumaram com o tempo, mas achavam que Natal sem frio e neve não era a mesma coisa.


Atrás da casa havia um jardim repleto de flores cultivadas por minha mãe. Ela adorava cuidar delas todos os dias, é ali que passava boa parte do seu tempo. Infelizmente não havia muitas flores, e a maioria já estava com uma aparência não muito “saudável”.


De qualquer forma, estávamos os quatro lá fora com nossas lâmpadas natalinas, confiando apenas na luz da lua para enxergar algo. Assim que as fadas perceberam que chegamos, elas se esconderam.


— Temos que ficar parados aqui por um tempo até que nossos olhos se acostumem com a escuridão. — Explicou tia Zolna, como se não soubéssemos.


Depois de quase vinte minutos ali parados, as fadas começaram a sair timidamente por detrás das flores. No começo eram cinco ou seis. Mas no minuto seguinte já era possível ver vinte delas esvoaçando pelo jardim.


Não era a primeira vez que eu via as fadas voando pelo jardim. Na verdade já havia visto várias vezes.


Rerly avançou alguns passos em direção às fadas, mas Kasse segurou-o pelo ombro. Ainda não estava na hora.


Em um ritmo bem menor e quase imperceptível, as mais tímidas estavam aparecendo. Kasse olhou para mim. Já não tinha mais “enfado” escrito em sua testa. Ela sorria.


— Nossa! Fadas violetas! Você viu? — sussurrou.


— Sim — respondi surpreso com o fato de ela estar maravilhada com isso.


Ela percebeu pelo meu tom de voz que aquilo não me trazia nenhum tipo de admiração. Fadas azuis, amarelas ou violetas.


— Terry, Rerly... Vocês não estão vendo as fadas do jeito certo! — disse ela cruzando os braços.


— Há! E qual o jeito certo de ver fadas? — zombou Rerly.


Kasse agora parecia até ofendida.


— Vou lhes mostrar — disse tia Zolna. — Fechem os olhos. Fecharam? Fechem... Agora, quero que pensem que essa é a ultima vez que vão ver as fadas...


A situação era ridícula. Meu irmão riu baixinho, só eu pude ouvir. Porém, eu decidi entrar na brincadeira, apesar de que foi um pouco difícil imaginar nunca mais ver as fadas.


Abrimos os olhos assim que minha tia permitiu. Os olhos tiveram que se acostumar com a escuridão outra vez.


Então eu vi as fadas. Estavam ali como sempre, esvoaçando como antes. Burras como sempre. Kasse voltou a falar:


— Eu sei como é isso. Em Hogwarts o Grande Salão por exemplo, tem o teto transparente e dá pra ver o céu enquanto jantamos. Quando entrei lá pela primeira vez, não conseguia parar de olhar pra cima, mas hoje já estou acostumada.


Ela disse isso olhando para as fadas com um sorriso que me incomodou. Era um sorriso tão inocente. Eu queria me sentir assim.


Aquele foi um momento estranho. Nem todos podem ver as fadas, e muitos dos que podem não conseguem enxergar a beleza delas.


Eu não conseguia. Simplesmente as fadas eram fadas. Serezinhos rixentos e de pouca inteligência.


— Pronto, agora podem ir. Mostrem as lanternas para elas.


Dito isso fomos todos até lá. Rerly acabou tendo problemas com umas fadas que estavam zumbindo furiosamente para ele. Rerly largou a lanterna no chão e voltou para casa.


Quatro fadas entraram na minha lanterna. Me juntei a tia Zolna e Kasse. Voltamos então para casa. Quando chegamos lá, já não havia nenhuma fada na minha lanterna e nem na de Kasse. Apenas na de tia Zolna. Esperei ouvir o grito de revolta de Kasse, mas ela estava rindo de si mesma.


Demos boa noite e cada um foi para seu quarto.


Tudo bem. Você esperava que eu contasse como é ver as fadas do jeito certo. Mas infelizmente não vi. Até hoje repito o truque de minha tia, mas nada funciona.


Não sei se pode servir de ajuda, mas minha prima disse que quando você vê as fadas do jeito certo, é algo mágico. E ela disse isso sem sarcasmo na voz, por incrível que pareça.


No Natal conseguimos algumas fadas para servir de enfeite. Até Rerly conseguiu ajudar.


Não importa como você veja as coisas, elas são o que são. Jeito certo ou errado, penso que Kasse via as fadas do jeito natural, bom o suficiente pra apagar a palavra “enfado” da testa de qualquer um, já que apagava dela.

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