A herdeira



Há muitos anos...


 


A força do vento dava um ar mais sombrio àquela noite vazia. Àquela hora da madrugada não havia mais ninguém nas ruas, ainda mais naqueles tempos. O terror da guerra ainda assombrava os pensamentos de muitos, os homens a pouco retornavam à suas casas, o fim havia chegado de uma maneira estranha, as perdas ainda não haviam sido superadas.


Depois do desaparecimento de Anawan fora fácil derrubar os outros. Pouco a pouco os exércitos foram vencidos, os seguidores mais fiéis encontrados e presos, muitos voltaram para as Terras Negras... Existiam alguns tolos o suficiente para acreditar que o mal finalmente acabara. Mas Jéssica sabia que não, sabia que o mal nunca acabaria. Ele sobrevivia nos pensamentos, e ideais de alguns.


Com o passar do tempo, as pessoas foram se acostumando com a ideia de uma paz, as cidades estavam sendo reconstruídas, Alair nunca fora alcançada, não conseguiram ultrapassar o poder de Isabel. Ninguém nunca conhecera pessoa como ela, poder como o dela, isto jamais seria esquecido...


O olhar da princesa perdia-se na floresta. Não permitira que lhe nomeassem rainha, não desejava ficar no lugar da irmã. Há quinze dias havia se enclausurado no jardim seleto sem sair uma única vez. Somente uma pessoa ousaria passar pela barreira daquele templo, entretanto Carian sabia que não devia incomodá-la, sabia que ela não havia superado a perda, pois ele também não.


Jéssica sentou-se à mesa de pedra diante da janela. Segurava um pergaminho fechado em umas das mãos e com a outra alisava a capa de um livro fechado. Colocou o pergaminho de lado, abriu o livro e escreveu:


 


Finalmente entendi tudo o que aconteceu, entendi a morte de minha irmã. As coisas são muito mais complicadas do que qualquer ser possa entender, nem mesmo para Carian posso confiar minhas visões neste momento. Com o tempo aprendi que não há como saber realmente o que se fazer com elas, que atitude adotar com muitas delas. O que não podemos esquecer é que as atitudes que um vidente toma influenciam a todos a sua volta. Como saber o caminho a tomar? Não sei... Nós nunca sabemos. Todos acham que somos sábios que temos as respostas certas para tudo por causa de um poder. Entretanto a única sabedoria que esse poder me trouxe é que não podemos olhar apenas pelo o nosso bem, não podemos fazer escolhas somente por nós, temos que escolher por todos, e isso muitas vezes é o mais difícil. É um fardo muito grande, essa é a única certeza que realmente tenho.


O que descobri nesses últimos dias não influencia apenas a mim, mas a toda uma História, a todo um passado, presente e futuro. Quem vai desvendar esse enigma? Eu sei, mas não ficará registrado neste diário, pois também sei que uma garota o encontrará. Para ela e seus amigos deixo apenas uma pista. Se for o momento certo desvendará o enigma que está por trás dos anéis de minha família.


Sua primeira dificuldade: encontre o livro dos mortos, há um pergaminho dentro dele, leia-o e comece sua jornada.


A sorte está do seu lado, acredite, eu sei.


 




– I –


 


Uma moça de uns 26 anos, ajoelhou-se calmamente chamando uma garotinha, de cinco anos, para perto de si. Estavam em uma movimentada praia. Vários jovens de trezes anos andavam para lá e para cá, iam em direção ao mar, uns desistiam no meio do caminho, outros buscavam firmemente o objeto cobiçado e voltavam com os olhos brilhantes; muitos oravam, nas margens da água, acompanhados por seus pais, pedindo aos Céus que os iluminasse na recolha de uma concha; que lhes indicasse com presteza o signo mais conveniente ao jovem mago que iniciaria, naquele momento, sua vida dentro dos preceitos da magia.


Aos treze anos todo jovem de Aleph iria a uma das muitas praias de energia mágica para escolherem uma concha. Nesses lugares, abençoados pelo poder da Criação Divina, pequenas conchas, de natureza mágica, traziam em seu interior um anel prateado cravejado com uma pequena pedra preciosa. O anel, objeto que cada habitante de Aleph poderia possuir, era a fonte da capacidade mágica daquele povo. Por isso, os treze anos era a idade mais esperada por todo jovem alephiano; o anel trazia ao seu dono grandes sonhos e expectativas. Poderia se tornar um guerreiro, participar do exército das Nações Unidas, ou por outro lado, poderia se dedicar às venturas da tecnologia mágica, mais conhecida como tecnomagic, que trazia dinheiro e conforto.


Naquele momento, as grandes cidades dos homens eram os centros da tecnologia mágica. Tentavam criar o fosse útil para agilizar e tornar mais prática a vida de seus concidadãos. Todos os outros povos – elfos, druidas, anões, fadas e, de repente, até mesmo orcs – ficavam surpreendidos com o modo como a vida nas grandes cidades dos homens se organizavam. Surpreendiam-se também com a importância e o status que o dinheiro dava aos seus possuidores.


Mundo de muitos povos e muitas culturas, Aleph era um conjunto heterogêneo de raças e de pensamentos. As diferenças culturais faziam com que elfos vivessem em distantes florestas, seguindo seus padrões e particularidades de vida, sem se importar com o que os badalados centros dos homens construíam ou deixavam de construir. Da mesma forma, a maioria dos druidas vivia, ao menos até os 60 anos, bem longe das grandes capitais continentais – locais, exatamente, habitados por uma maioria de homens.


As três ditas “raças” – homens, druidas e elfos – eram todas ramificações de uma única: a raça humana. A principal diferença entre eles era o tempo de vida e como seus organismos se desenvolviam. Os homens eram a parte do grupo mais numerosa e basicamente viviam no máximo uns 120 anos; os druidas eram conhecidos por possuir “metade da vida dos elfos”, mas na realidade viviam menos que isso, por volta de 320 anos.


Talita esperava pacientemente pela aproximação da filha. Ela tinha longos cabelos castanhos e cacheados e os olhos muito azuis, já a pequeninha que, finalmente, vinha correndo para perto dela, se assemelhava mais ao pai: os cabelos eram lisos, cor de mel, e os olhos eram como duas olivas.


A mulher sorriu para o marido que estava acompanhando a andança da pequena pela praia:


— Uma concha! – exclamou Priscila eufórica encostando-se ao corpo da mãe e olhando para o objeto nas mãos dela.


A menininha pegou o pequeno objeto fechado com as duas mãos e puxou para abri-lo. Um leve barulhinho se fez e um líquido amarelado saiu da concha, sem nenhum anel em seu interior.


— Eu disse para você que precisava esperar. – explicou Talita – Você só pode ter um anel mágico com 13 anos...


A pequeninha enrugou os lábios.


Talita levantou o olhar para o marido que se ajoelhou também ao lado das duas.


— Mas quando o seu dia chegar... Você terá o anel mais lindo e você será muito poderosa... – a mãe divagou.


— Aí... A gente vai voltar aqui? – perguntou a pequena.


Os olhos dos pais se cruzaram e ambos ficaram em silêncio por alguns segundos.


— É claro que nós vamos estar com você, meu bem... – respondeu a mãe.


***


As duas garotas seguiam a passos largos para casa. Priscila apertava com força o braço da prima, pensava em como comemorariam o seu aniversário de treze anos no dia seguinte e como seria o seu grande momento. Lembrou-se da mãe. A proximidade da idade trouxe a sua mente momentos muito antigos, quando a mãe ainda era viva e a levara até a praia de energia mágica mais próxima, onde jovens encontravam seus anéis.


O sorriso da mãe permaneceu na sua mente por vários minutos fazendo a jovem se perguntar se o ligeiro aperto que sentia no coração era por conta daquela lembrança. Balançou a cabeça não querendo pensar em nada negativo. Aquela noite ela havia sonhado com a mãe, com uma estranha e confusa perseguição e depois um brilho rosa-azulado.


Talita falecera em um misterioso sequestro, uma estação depois daquela lembrança de Priscila. A menina estava junto com a mãe quando acontecera, porém não se recordava de nada além de alguns flashes. Aquela havia sido a única vez que Priscila pisara em Ilítia – o principal continente de Aleph, com sede na capital chamada Alcaria. Essa era a região mais povoada de Aleph, com cerca de 10 milhões de quilômetros.


Apesar de grande parte dos Estados serem unidos em torno de Alcaria e Alair (capital de Enion, continente onde Priscila morava e que tinha o quadruplo do tamanho de Ilítia), Osron era um instigador da discórdia. Nas terras das sombras juntaram-se, com o decorrer do tempo, povos que se colocavam contra a união de Aleph, e que usavam de qualquer meio para ferirem a integridade das Nações Unidas. Era, primordialmente, por isso que os povos da União eram formados por guerreiros.


Priscila sentiu um frio na espinha, uma estranha sensação a perseguia desde o início do trajeto. Barulho nas árvores próximas. Seria só o vento? Sim. Não precisava ficar em pânico. Entretanto, um som mais próximo, logo atrás delas, negou os pensamentos positivos.


— Esperem. – disse a voz provando existir alguém ali e fazendo as duas pularem, tremendo pelo susto.


O grito de Priscila, em consonância com o chamado, ressoou longe, mas este não faria diferença onde estavam. As duas viraram-se para verem o interlocutor.


Você. – disse Érica estática.


— Ham... – resmungou ele apenas.


Era um rapaz alto de olhos e cabelos castanhos. Tinha uma aparência séria, quase fria. Os cabelos, que caiam bagunçados sobre a testa, davam-lhe um ar muito duro para alguém de aparentemente dezessete ou dezoito anos.


O rapaz virou o olhar para Priscila. Contemplava-a friamente e por quase um minuto inteiro encarou seus olhos cor de oliva. Um frio atravessou toda a espinha da menina.


— Quem é você? – indagou Priscila.


— Sua amiga notou minha vigilância na escola... Mas você... – ele balançou a cabeça.


— Quem é você?! – Érica repetiu a frase da prima, receosa.


O rapaz continuava com a feição desgostosa e superior.


— Meu nome é Eduardo. Eduardo Ilebrand.


— Eduardo Ilebrand! – exclamaram elas perplexas.


Os Ilebrand eram uma das famílias mais conhecidas de toda Aleph. Descendentes de uma das linhagens mais poderosas que já havia existido.


 — O que... O que você quer conosco? – perguntou Érica hesitante.


Eduardo enrugou a testa com um mau-humor constante.


— Vim entregar uma coisa... Libertar-me do meu fardo. – disse ele enigmaticamente.


— Entregar? Fardo? – indagou Érica levantando uma sobrancelha e puxando Priscila para trás. – Olha... O nosso avô...


— Por favor! – exclamou Eduardo com um risinho irônico. – Acha mesmo que eu me sentiria ameaçado com algum argumento seu?


O coração de Priscila batia acelerado. Sentia que era por ela que Eduardo estava ali.


— Qual a sua intenção, vindo até aqui? – Priscila resolveu arriscar.


O rapaz olhou-a com uma expressão dura e um pouco revoltada. Calado, colocou a mão em um bolso interno ao longo casaco que usava. Priscila e Érica distanciaram-se cautelosas.


Ainda calado olhou para elas. Seu semblante continuava sem nenhuma marca de alegria ou mesmo realização. Segurava em sua mão algum objeto que elas não haviam identificado.


— Afaste-se. – disse finalmente à Érica.


— Por quê?! – exclamou ela agarrando o braço de Priscila.


Afaste-se! – repetiu ele aumentando o tom de voz.


Érica, sem saber o que fazer, afastou-se um pouco, segurando as mãos unidas no peito. Via-se pequena e indefesa naquele momento.


Eduardo abriu, lentamente, as mãos, algo nela brilhava com grande intensidade. Sem qualquer sinal de magia vindo dele o pequeno artefato começou a flutuar sobre sua palma. Um cristal. Com um pouco de atenção era possível identificar. O singular brilho rosa-azulado que emanava ao seu redor chegava a ser envolvente. Priscila olhava vidrada para o pequeno objeto. Eufórica seu coração batia rapidamente, mas nem por isso sentia medo. Uma onda de determinação a invadira.


— Então é você... – disse Eduardo vagarosamente. Sua feição era um misto de aborrecimento e subestimação.


— Do que... Do que você está falando? – perguntou Priscila voltando a notar a presença do rapaz.


— A dona do que tenho para entregar... – disse ele olhando para ela seriamente. – Preciso que estenda sua mão...


Priscila tentou recuar, porém Eduardo impediu-lhe puxando-lhe a mão para segurar o cristal. Este lhe raspou na palma fazendo com que um novo grito ecoasse pelo nada e uma gota de seu sangue caísse no chão. Um dor lacerante tomou conta de seu braço. Era mais do que o fervor do corte, era uma repentina tristeza que lhe dominara os pensamentos juntamente com estranhas vozes em sua cabeça. Sentiu o bosque todo girar e as vozes aumentarem o tom, mesmo assim não conseguia distinguir o que diziam.


Tentou abrir os olhos, mas sua mente estava tão perturbada que não conseguia realizar seus pensamentos. Aos poucos as vozes foram cessando e pode localizar-se novamente: estava no caminho de sua casa, com Érica... Um rapaz surgiu com um cristal... Sua mão cortada... Olhou para ela amedrontada, havia sangue, entretanto o cristal desaparecera. Outro objeto surgira em seu lugar.


— Coloque o anel. – mandou Eduardo já a certa distância dela.


Priscila atentou-se novamente à sua mão. Coberto por seu sangue havia um anel que não conseguia identificar direito. Pegou-o com os dedos trêmulos e colocou no anelar esquerdo.


A explosão de vento e de luz que se seguiu, empurrou Érica para perto das árvores, onde ela conseguiu se segurar. Eduardo agilmente fincou sua espada no chão segurando-se a ela. O forte brilho rosa-azulado cegou-os por alguns minutos.


Vozes mais fortes, embora nem um pouco eloquentes, dominaram novamente os pensamentos da jovem, imagens difusas e sobrepostas surgiam em sua visão. Eram risos que transmitiam alegria e gritos e falas que lhe causavam imensa dor.


— Isso não pode ser verdade. – berrou um homem em sua mente - as imagens continuavam embaçadas não lhe permitindo reconhecer o rosto.


— Espera! – ressoou a voz de uma mulher.


— NÃO. – a resposta foi seguida pelo bater de uma porta.


A angústia no coração de Priscila aumentou como se de repente dilacerasse todos os seus sonhos. Perda. Tristeza. Dor. Nunca se sentira tão infeliz. Qualquer futuro que pudesse sonhar desaparecera de sua vida naquele momento. Não existia futuro. Não existia mais nada.


A mulher abrira a porta procurando o homem.


— Como você pôde... Isso não está acontecendo...  – berrou ele que caminhava de um lado para o outro no corredor, em franco desespero. – Como pude ser tão tolo!


A mulher seguiu-o pronunciando um nome que Priscila não conseguiu mais ouvir. Um barulho fino e agudo dominara sua audição. A cena desaparecera deixando em seu lugar apenas uma violenta dor de cabeça.


— Priscila! – chamou a prima ao seu lado.


Priscila olhou para cima, na direção da voz. Estava ajoelhada no chão. Levantou-se trêmula sobre as pernas, apoiando-se na prima. Eduardo, a sua frente, de braços cruzados, olhava-a um pouco surpreso.


— Que história é essa de você entregar o anel dela? Ainda mais desse jeito. – disparou Érica irritada, não se importava mais com o que ele pudesse fazer – Não é assim que conseguimos nossos anéis. Cadê a concha e a tranquilidade do mar, sem mini furacões?


Eduardo balançou a cabeça inferiorizando-a. Ao invés de responder pegou do cinto um pequeno recipiente pendurado.


— Estenda as mãos. – disse ele a Priscila. – E não se preocupe é apenas água.


Priscila ainda um pouco hesitante estendeu a mão para ser lavada.


— Agora olhem mais atentamente esse anel. – mandou ele guardando novamente o frasco.


— Meu Deus! – exclamou Érica perplexa. – Eu não posso acreditar nisso!


— Não... não pode ser. – sussurrou Priscila pasma olhando para própria mão.


Eduardo soltou um risinho depreciador, já esperava aquela reação.


— Você... – disse olhando para Priscila. – Foi escolhida a herdeira do anel.

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