CAPITULO II



CAPÍTULO II


 


 


A carruagem partiu e Petúnia voltou-se para o primeiro-ministro.


 Quem é Potter? — perguntou, sem conseguir disfarçar a curiosidade.


 É um revolucionário, um homem que provoca agitações aonde quer que vá. Minhas tropas têm ordem de atirar nele assim que o virem, mas há pessoas tão estúpidas que nem o reconhecem! — Ele olhou de relance para o capitão Black, depois continuou em tom cordial: — Mas não precisa temer nada, lady Petúnia . Asseguro-lhe que assim que chegarmos ao palácio, o marechal-de-campo ordenará que encontrem o homem onde quer que ele se esconda, e não mais se ouvirá falar de Tiago Potter.


Lilian olhou disfarçadamente para o capitão Black, notando que ele empalidecera e parecia amedrontado.


Ela não sabia exatamente o que, mas algo muito sério estava acontecendo.


Por outro lado, se Tiago Potter era mesmo membro da família que reinara anteriormente na Kavónia, por que se vestia como um camponês? Por que vivia na favela por onde eles haviam passado há pouco? Pelo que o primeiro-ministro dissera, era óbvio que tentavam matá-lo ou capturá-lo já há algum tempo. Mesmo assim, Potter mostrara muita coragem indo socorrer a criança machucada,


Outra coisa que fugia à compreensão de Lilian era que os pobres daquela parte da cidade se haviam mantido quietos enquanto a comitiva passava, e as ruas pareciam desertas. Tudo era tão estranho e confuso!


Tendo atravessado a parte pobre da cidade, novamente se ouvia a aclamação do povo, as ruas estavam enfeitadas com arcos de flores e as pessoas agitavam bandeirinhas. O retrato de Petúnia  aparecia em todos os lugares: na frente das casas, nos tapumes, nos postes, nas mãos das pessoas.


Vendo aquela demonstração de alegria pela sua chegada, Petúnia  mostrou-se satisfeita.


 Todos têm o meu retrato! — exclamou.


 É um tesouro para eles, lady Petúnia — respondeu o primeiro-ministro. — Este povo a saúda com esta alegria, não apenas por tratar-se de sua futura rainha ou por ser uma linda jovem inglesa, mas por causa da lenda.


 Que lenda? — perguntou Petúnia.


 Há uma profecia muito antiga que diz que viria do outro lado do mar uma princesa de pele clara e cabelos loiros para reinar na Kavónia e então este país terá grande prosperidade e um período de muita paz.


 Que interessante!


 Assim que vi seu retrato, lady Petúnia, eu soube quem era a princesa da lenda.


 Mas não sou princesa — disse Petúnia meio relutante.


 Princesa é uma tradução mais simples para a palavra que na verdade quer dizer "linda dama de grande importância".


Petúnia sorriu, feliz, mas Lilian, ao ouvir a história sabia que havia sido o primeiro-ministro quem excitara o entusiasmo da multidão, propagando que Petúnia era a princesa da velha profecia.


"Se o primeiro-ministro não tivesse feito isso, talvez Petúnia encontrasse as ruas vazias e as janelas fechadas", pensou ela.


No mesmo instante, disse a si mesma que estava sendo imaginativa demais. Naturalmente, os habitantes da Kavónia queriam que seu rei se casasse e estavam preparados para o acontecimento.


Petúnia sorria e acenava para a multidão. Ela estava muito bonita, tipicamente britânica em seu vestido azul-claro, que combinava com a cor de seus olhos e com as plumas de seu chapéu, que se movimentavam com a brisa.


A comitiva passou por uma grande praça e por diversas ruas muito largas, ladeadas por casas finíssimas, cercadas de imensos jardins. Logo adiante avistaram o palácio.


Ele era majestoso e, ao chegarem mais perto, Lilian viu que era uma réplica do Schonbrurnn de Viena. Havia diversas fontes e estátuas enfeitando o grande jardim em frente do lindo palácio. Os soldados que se achavam em guarda vestiam uniformes coloridos e vistosos, e diante das escadarias esperavam convidados ilustres. As mulheres ostentavam suas jóias e os homens suas condecorações. O sol parecia envolver a todos, numa bênção celestial.


Assim que a carruagem parou, o rei, trajando uniforme branco, veio descendo as escadas, sobre um tapete vermelho.


Lilian achou o momento emocionante e ficou pensando se o coração de Petúnia estaria batendo descompassada mente ao encontrar o futuro marido.


Quando o rei chegou mais perto, Lilian ficou desapontada. Até então tudo parecera um conto de fadas, uma história muito romântica. Ela esperava que o rei fosse alto, um belo homem, talvez com feições gregas, como Tiago Potter.


Mas o rei, um Dursley não era de forma alguma o "príncipe encantado" que ela esperava ver.


De estatura mediana e ligeiramente corpulento, Valter nada tinha de extraordinário. Suas maneiras frias, o ar distante e indiferente tornavam-no bem parecido com Petúnia. "Parecem feitos um para o outro", pensou Lilian. Saindo da carruagem e seguindo a prima, Lilian fez uma reverência ao rei. Depois foi apresentada a um número muito grande de pessoas. Havia tanto o que ver e tudo lhe interessava tão intensamente que só algumas horas mais tarde pensou em si mesma, lembrando-se de que seu vestido estava manchado de sangue.


As pessoas com quem Lilian conversou falavam alemão e eram austríacas. Para seu espanto, ela deu-se conta de que não havia conhecido pessoas nascidas na Kavónia. Os olhos de todos estavam cravados nela e em Petúnia, e tudo o que diziam, mesmo que não fosse importante, era ouvido com atenção e interesse. Isso fez Lilian sentir-se como um animal raro em uni zoológico.


"Petúnia vai adorar sentir-se tão importante", pensou.


Não havia dúvida de que a prima parecia estar apreciando tudo pela primeira vez, desde que haviam deixado a Inglaterra. Até o duque sentia-se tão lisonjeado, que se mostrava amável ao extremo, o que era incomum nele.


 


 


Quando, finalmente, Petúnia se viu a sós com Lilian na magnífica sala de estar, toda branca e dourada, que fazia parte dos aposentos da rainha, ela exclamou, exultante:


 Mamãe tinha razão! Vou adorar ser rainha!


 Claro que sim! E o povo ficou feliz em conhecê-la!


 Naturalmente! O primeiro-ministro disse-me várias vezes que ele e seus colegas estão contentíssimos em ter uma inglesa para enfeitar o trono.


 Eu me referia ao entusiasmo do povo nas ruas.


 Oh, eles! Todos sem dúvida apreciarão as festividades do casamento, que serão extensas.


 Você sabia que não há um hospital aqui em Zanthos?


 Isso não me diz respeito — Petúnia retrucou. — E se está pensando naquela criança, é melhor esquecê-la, pois seu comportamento foi detestável. Se você pretende agir dessa forma em um país estrangeiro, pedirei a papai que a leve de volta para a Inglaterra. Tenho certeza de que encontrarei alguma austríaca que ficará encantada em ser dama de companhia da rainha.


Lilian prendeu a respiração. Ela sabia o tipo de vida que a esperava na casa dos tios. No entanto, jamais pensara que, tendo chegado até a Kavónia, Petúnia pudesse dispensar seus serviços tão depressa.


 Sinto muito — ela disse humildemente.


 Deve sentir mesmo. Por favor, Lilian comporte-se bem no futuro. Percebi como o primeiro-ministro ficou aborrecido pelo modo que você agiu para evitar que atirassem naquele rebelde.


Fazendo um esforço, Lilian segurou as palavras que lhe vieram aos lábios e disse meigamente:


 Posso ir para meu quarto trocar este vestido, Petúnia? Devemos estar prontas para a recepção, daqui a uma hora.


 Está bem. Ande depressa. Você deve explicar para as criadas o modo correto de me vestir, e é você quem vai arrumar meus cabelos.


 Naturalmente.


Uma criada levou Lilian para o quarto que ela passaria a ocupar, ao lado dos enormes e luxuosos aposentos de Petúnia.


O quarto da rainha era lindo. A mobília havia, obviamente, sido trazida de Viena para aquele país. O estilo barroco, os espelhos com molduras de prata, os armários e cômodas em rico trabalho de marchetaria eram inconfundíveis.


Não havia lareiras nos cômodos. Em lugar delas, ocupavam os aposentos do palácio maravilhosas estufas para aquecimento. Essas peças, lindíssimas, em cerâmica decorada, eram cópias das estufas existentes no palácio de Viena.


Na sala de estar e nos corredores, os quadros que decoravam as paredes eram de retratos dos ancestrais do rei, da família Dursley, ou paisagens da Áustria.


Certamente haveria uma cultura própria da Kavónia, mas Lilian notou que nada evidenciava essa cultura no palácio.


O quarto reservado para ela era menor que o de Petúnia. Porém, confortável e no mesmo estilo vienense.


Ali já se achavam duas criadas atarefadas desfazendo as malas da recém-chegada. Lilian agradeceu às criadas na língua delas, e viu que ambas ficaram felizes e sorridentes.


Uma era muito jovem e a outra, que certamente orientava a mais nova, era de meia-idade.


 Fala a nossa língua, fraulein? — perguntou a criada mais velha, com visível prazer.


 Estou tentando aprendê-la, e gostaria que vocês me ajudassem.


 No palácio temos que falar alemão.


 Não quando estiverem comigo. Preciso praticar a sua língua, e conversar com nativos será o modo mais fácil de aprender seu idioma.


As duas criadas ficaram encantadas com a sugestão Lilian sabia que Petúnia se zangaria se ela se atrasasse e apanhou depressa o vestido que usaria na recepção.


Não havia muito o que escolher, pois, como de costume, a duquesa havia sido extremamente avara ao comprar vestidos para a sobrinha. Para justificar-se, dissera:


 Ninguém olhará para você, Lilian, e quanto mais discreta você for, melhor.


Os vestidos escolhidos pela tia eram de material barato e cores desmaiadas ou pardas. Só de olhar para eles, Lilian ficava desanimada.


No tempo em que os pais eram vivos, mesmo tendo pouco dinheiro, a mãe fazia seus vestidos em lindos e delicados tons pastel, e eles ficavam tão bonitos que despertavam a admiração de todos.


Petúnia e Lilian tinham a mesma altura, mas esta, por trabalhar demais, era bem mais magra, com feições delicadas.


Quando criança, Lilian costumava dizer ao pai que gostaria de ter a aparência de uma deusa grega, de Afrodite, por exemplo, que o pai tanto admirava.


Richard Evans ria da ingenuidade da filha e lhe dizia que a amava e a admirava mais do que a qualquer deusa talhada em mármore ou pintada em uma tela.


 Mas eu quero parecer uma grega — insistira Lilian.


 Você se assemelha mesmo a uma grega — respondera-lhe o pai. — Mas não com uma das deusas do Monte Olimpo; você é mais parecida com as ninfas que habitavam a ilha de Delos e que surgiram do mar para servir ao deus da luz.


 Então conte-me sobre elas — pedira a filha.


O pai então lhe narrara que no século IX a.C. corriam rumores de que um deus jovem e muito lindo havia nascido na ilha de Delos e a consagrara com sua presença. Sua arma era um arco de ouro.


 Quem era esse deus?


 Era Apolo. Quando visitei Delos senti no ar uma "chama dançante e tremeluzente".


 Não compreendo, papai.


 É difícil explicar, mas onde viveram os deuses, especialmente Apolo, o ar tem uma luz estranha, brilhante, um tremor misterioso. Ouve-se o bater de asas de prata e o barulho de rodas de prata em movimento.


Lilian costumava ouvir as narrativas do pai com encantamento, amando a melodia que havia em sua voz e sabendo que aquelas lembranças o comoviam como uma estranha magia.


 É onde houvesse deuses — continuara Richard — sempre haveria ninfas às margens dos riachos, na névoa que cobria as ilhas gregas ao amanhecer e na espuma do mar. Quanto a Apolo, este conquistou o mundo com o poder de sua beleza. Ele não possuía forças terrenas, Exército ou Marinha, tampouco um governo poderoso, mas trouxe clareza à mente humana, e era louvado quando surgia trazendo a luz do dia.


Richard Evans costumava falar sobre a mitologia greco-romana como se os fatos fossem reais, abrindo para Lilian um mundo de beleza do qual ela se tornara parte. Para ela, Apolo personificava o amor, e quando ficasse mais velha, esperava encontrar esse amor em um homem.


Com o passar dos anos, começou a compreender por que o pai achava que ela parecia uma ninfa grega. Seu rosto, em formato de coração, revelava uma natureza sensível e nele predominavam os grandes olhos que, embora ela não percebesse, eram profundos e pareciam abrigar certo mistério, como se ela olhasse para o interior de um mundo invisível, para os outros, porém muito familiar ao pai.


Os cabelos de Lilian eram ruivos, mas não como os de Petúnia. Na verdade eram bem claros e havia luz neles. A pele era muito alva e, usando sempre roupas sombrias, sua palidez era evidenciada.


Às vezes Lilian imaginava que a tia procurava deliberadamente extinguir na sobrinha até mesmo a luz que lhe vinha da alma. Desde que passara a viver no castelo, sendo maltratada, constantemente espancada e correndo de um lado para o outro sem descanso, obedecendo a ordens, chegara a esquecer os tempos em que era tão feliz e se sentia dançando no ar, sendo parte de uma beleza da qual o pai a ensinara a acreditar.


Porém, quando se achava só, à noite, na escuridão de seu quarto, costumava lembrar-se de um dos ensinamentos do pai: "No silêncio você poderá ouvir a voz de Deus dizendo aos homens para procurarem em si mesmos a luz divina."


 Qual dos vestidos vai usar fraulein? — perguntou a criada mais velha, interrompendo os pensamentos de Lilian.


Seu impulso foi responder que não importava, pois todos eram igualmente feios e ninguém a notaria.


Pendurados no guarda-roupa, todos os vestidos pareciam impróprios para aquele sol que brilhava lá fora, para a beleza dos picos cobertos de neve e das flores que enfeitavam aquele país e o tornava lindo como um pedaço do paraíso.


O vestido que Petúnia usaria na recepção era branco, enfeitado com pequeninas rosas cor-de-rosa e fitas azuis. O traje fora desenhado especialmente para realçar-lhe a beleza da tez e dos cabelos dourados, para fazê-la parecer a personificação da noiva ideal.


Lilian olhou para os seus vestidos: um em batista cor de cinza, outro marrom, em merino, e um muito feio, enquanto o azul desmaiado mais parecia um céu de inverno.


 Usarei o cinza — ela disse automaticamente.


As criadas ajudaram-na a vestir-se e a arrumar os cabelos. Lilian nem se deu ao trabalho de olhar-se no espelho e, pronta, voltou depressa para os aposentos de Catherine.


Assim que entrou no quarto, percebeu que Petúnia estava exaltada.


 Lilian diga para essas incompetentes encontrarem as minhas melhores meias de seda! — gritou a prima.


As criadas não entendiam o que Petúnia dizia em inglês, e mostravam-se tristes e apreensivas por ver a futura rainha tão zangada. Lilian compreendeu que elas estavam ansiosas para agradar, mas Petúnia, como sempre, mostrava-se impaciente e queria que adivinhassem seus pensamentos.


Lilian encontrou as meias e explicou às criadas como a nova patroa desejava ser atendida. Logo as duas mulheres puseram-se a obedecer, sorridentes, as ordens de Lilian, e o humor de Petúnia, que se olhava no espelho, melhorou.


 Este vestido assentou-me muito bem — ela disse. —Acredito que não haverá outra mulher tão bem vestida no palácio.


 Você ofuscará todas elas — afirmou Lilian com sinceridade.


 É isso o que eu quero. No futuro vou mandar vir todos os meus vestidos de Paris.


 Mas ficará caro demais — observou Lilian.


 O dinheiro será conseguido — disse Petúnia sacudindo os ombros. — A questão financeira não me interessa, apesar de o primeiro-ministro ter-me dito que o país tem uma imensa dívida interna...


 Espero que não seja grande demais.


Catherine olhou para a prima, surpresa.


 Por que isso a preocupa? Acho que esse assunto não é da minha conta!


 Isso significa que o povo terá que pagar impostos mais pesados. Você pode imaginar o quanto o povo teve que pagar para construir este enorme e rico palácio?


 E por que não deveria pagar? O povo não iria querer que seu rei vivesse em uma choupana de barro!


Percebendo a agressividade na voz da prima, Lilian não quis dizer que a extravagância e o luxo do palácio eram exagerados Para uma cidade que não possuía ao menos um hospital.


Era tolice argumentar com Petúnia, pois ela se preocupava apenas com sua própria aparência.


Lilian lembrou-se da pobreza do cômodo para onde havia sido levada a criança machucada: o chão nu, duas cadeiras, uma mesa rústica e uma cama a um canto eram as únicas peças do mobiliário e tanto a mãe como a filha pareciam desnutridas.


Era possível compreender por que o capitão Black dissera que havia uma "inquietação" entre o povo. Isso não era de surpreender. O rei gastava altas somas no palácio e parecia não fazer nada pelos menos afortunados.


Lilian viu-se rezando para que os soldados que perseguiam Potter não o encontrassem. Lembrou-se então do olhar de desprezo que ele lhe lançara. Naturalmente ele a considerava parte do regime contra o qual se rebelava.


Todavia, era o homem mais lindo que ela já vira. Poderia mesmo servir de modelo para retratar Apolo.


Richard Evans dissera certa vez que o jovem Apolo era uma das mais magníficas criações dos gregos, pois simbolizava a expulsão da escuridão da alma humana, para que nela se introduzisse a luz divina.


"Não era isso o que Tiago Potter tentava fazer pelo povo da Kavónia?", pensou Lilian, ao mesmo tempo em que achava que estava sendo imaginativa demais.


Talvez Potter fosse somente um anarquista que detestasse a lei e a ordem e desejasse apenas criar o caos, sem nada a oferecer em benefício do país. Pensou ainda, que um homem tão lindo, tão parecido com Apolo, só poderia trazer para o mundo "a glória dos deuses".


Algum dia Potter conseguiria realizar seus planos, acreditava Lilian e ficou a imaginar se algum dia voltaria a ver aquele homem. O que parecia improvável, pois mais tarde, quando se viu cercada de pessoas, notou que eram todas austríacas.


 Mora aqui há muito tempo? — perguntou Lilian a uma dama.


 Vim para a Kavónia há dez anos. Sua Majestade deseja viver cercado de seus compatriotas.


 E não se importou em deixar a Áustria?


 Às vezes sentia saudade de meu país, mas agora há muitos austríacos aqui, e o clima da Kavónia é adorável.


Lilian foi descobrindo que havia bailes na cidade uma ou duas vezes por semana, oferecidos pelo rei e membros da corte. Havia também um teatro, e as peças eram representadas por atores residentes em Zanthos ou companhias da Grécia e da Itália.


 Nossa pequena comunidade é muito alegre — disse um cavalheiro a Lilian. — Tenho certeza de que encontrará muitas formas de se divertir aqui, Srta. Evans.


 Espero ter a oportunidade de conhecer todo o país.


O cavalheiro olhou para ela, surpreso.


 Mas tudo o que é importante acontece na capital. Naturalmente temos a caça ao javali, à cabra montesa e à camurça em certas épocas do ano, mas duvido que goste disso. Para ladies há muito o que fazer na corte, Srta. Evans, e um rostinho novo e bonito como o seu será muito apreciado.


Havia, realmente, muitos austríacos solteiros, todos oficiais do Exército, mas Lilian achou-os empertigados e distantes. Talvez mantivessem uma certa reserva por ela ser sobrinha do duque e prima da futura rainha. Porém o mais provável era que nenhum deles se sentisse impressionado por sua aparência ou pela maneira como era tratada pelos parentes.


Assim, Lilian estava convencida de que em pouco tempo seria considerada uma pessoa sem importância. Tal profecia não tardou a cumprir-se.


Logo os esnobes austríacos constataram que a prima da futura rainha era pouco mais que uma criada, e as censuras que recebia do tio e de Petúnia não lhes passaram despercebidas.


Os austríacos eram famosos por seu amor excessivo ao protocolo, e temiam infringir qualquer regra de etiqueta.


 Fiquei sabendo que em Viena é correto uma lady usar luvas mesmo durante as refeições — disse Petúnia a Lilian.


 Isso é ridículo, além de incômodo! Só pode ter sido inventado por uma rainha que tinha mãos horríveis!


 Disseram-me que a rainha Elizabeth fez o mesmo comentário, deixando toda a corte chocada.


 Bem, espero que você não sugira tal inovação aqui. Seria terrível, com este calor.


 É uma coisa que devo considerar — respondeu Petúnia com arrogância.


A cada dia Petúnia tornava-se mais altiva, seguindo o exemplo do rei. Este era pretensioso, enfadonho, convencido, e Lilian notaram, divertida, que o duque parecia estar achando difícil suportar o modo como seu futuro genro o tratava: com condescendência, ignorando suas observações, como se elas não tivessem a menor importância.


Quanto aos cortesãos, todos pareciam temer Valter, que era implacável em seu governo. Era fácil perceber isso pelo modo com que ele tratava os funcionários e os oficiais mais novos. O rei era um autocrata egoísta, preocupado apenas com seus sentimentos.


Lilian sentiria pena de Petúnia, se não tivesse percebido que a prima achava o comportamento do rei admirável e procurava imitá-lo.


Era comum encontrar as criadas de Petúnia chorando, e Lilian suspeitava que a prima batia nas pobres mulheres com o cabo da escova de cabelo ou outro objeto, como costumava fazer no castelo.


Sendo a prima tão impaciente para ensinar as criadas, Lilian precisava ficar à disposição da futura rainha o tempo todo. Se no castelo tinha pouco tempo para si mesma, no palácio era ainda pior.


No entanto, duvidava que depois das bodas Petúnia a mandasse de volta à Inglaterra. A prima não poderia se arranjar sem ela e isso era, de certa forma, um alívio. Seu único receio era não ter tempo de conhecer ao menos o palácio, com seus cômodos luxuosos e os lindos jardins que o cercavam.


 


 


 Vocês não costumam passear pela cidade ou mesmo sair de Zanthos? — perguntou Lilian ao capitão Black.


 Muito raramente, e não neste período do ano, que as ladies acham quente demais.


 Gostaria muito de cavalgar pelos campos.


 Talvez tenha alguma chance depois das bodas. Se o fizer agora, provocará comentários, pois ninguém costuma cavalgar nesta época.


 É uma pena, sinto-me confinada. Nunca saímos deste palácio! — Lilian desabafou.


 Muitas vezes também me sinto assim. Mas, felizmente, saio da cidade quando o marechal-de-campo inspeciona as tropas em outra parte do país.


 Há tantas coisas que eu gostaria de conhecer!


Melancólica, ela pensava nas montanhas, nos vales, nas flores e nas grandes florestas onde havia ursos pardos, linces e gatos selvagens.


 Quando sua prima se tornar rainha, você poderá sugerir que ela faça piqueniques e passeios para conhecer melhor o país — aconselhou o capitão.


Lilian sabia que Petúnia detestava esse tipo de passeio. Ela se sentiria feliz apenas reinando na pequena corte, divertindo-se com as intrigas, os comentários maldosos e com as distrações do palácio.


"Não devo reclamar", pensou Lilian "Pelo menos estou feliz aqui, longe daquele castelo."


Ela pouco vira o tio desde que chegara à Kavónia, mas dois dias antes das bodas, ele mandou chamá-la.


Lilian foi até a sala de estar dos aposentos de Petúnia, onde o tio a esperava, sentindo-se subitamente apreensiva, pois talvez ele decidisse levá-la de volta ao castelo.


 Quero falar com você, Lilian — ele falou assim que a sobrinha entrou, toda nervosa, na sala.


 Sim, tio Septimus.


 Partirei no dia seguinte às bodas, e como Petúnia vai precisar muito de você nestes dois dias, não teremos outra oportunidade de conversar.


A apreensão de Lilian diminuiu um pouco, aquilo significava que o tio não pretendia levá-la consigo.


 Você ficará na Kavónia até que Petúmia não precise mais de seus serviços — continuou o duque. — Mas quero deixar bem claro uma coisa.


 O que é, tio Septimus?


 Comporte-se com muito decoro e não se interesse por homem algum, nem permita que eles se interessem por você.


 Não compreendo... — disse Lilian arregalando os olhos.


 Pois vou deixar isso bem claro. Quer você esteja morando na Inglaterra ou na Kavónia, continua sob a minha tutela e não pode casar-se sem o meu consentimento. E não pretendo dar esse consentimento.


 Enquanto eu estiver aqui?


 Em qualquer lugar onde esteja. Como bem sabe, sua mãe trouxe desgraça para o nosso nome. Eu não pretendo explicar para qualquer homem que queira tomá-la por esposa que minha única irmã, com sangue nobre de muitas gerações em suas veias, cometeu a insensatez de casar-se com um homem inferior a ela, pouco mais do que um criado!


O tom de desprezo na voz do duque era mais difícil de suportar que a violência de suas palavras. Lilian apertou as mãos para evitar defender seu pai.


 Aqui todos a aceitaram como minha sobrinha e prima de Petúnia — prosseguiu o duque. — Não há, portanto, razão para que alguém saiba da terrível mésalliance de sua mãe. Mas você e eu sabemos. Por esse motivo você vai tornar-se uma solteirona e redimir os pecados de seus pais servindo-nos humildemente até morrer!


 Tio... Septimus... — começou Lilian a dizer.


 Não ouse discutir comigo! — interrompeu o tio, vociferando. — Não tenho mais nada a dizer sobre o assunto. Comporte-se como lhe ordenei, e qualquer reclamação de Petúnia será suficiente para mandá-la para casa imediatamente! Lá saberei puni-la e aprenderá a jamais me desobedecer. Compreendeu?


 Compreendi, tio Septimus.


 Era o que eu tinha para lhe dizer. Considere-se uma felizarda por minha filha julgá-la uma pessoa útil. Caso contrário, nem estaria aqui ou, se estivesse, eu não partiria sem você. Trate de demonstrar sua gratidão servindo bem a sua prima.


Terminando de dizer essas palavras, o duque saiu do aposento e, ficando sozinha, Lilian levou as mãos ao rosto. Não podia acreditar no que o tio dissera! Jamais se casaria, e não poderia experimentar a mesma felicidade que seus pais desfrutaram juntos.


Parecia-lhe impossível que o tio não pudesse compreender que seu pai fora um homem excepcional. Todos em Oxford haviam reconhecido e exaltado a inteligência brilhante de Richard Evans Ele fora eleito membro do Conselho da Universidade e era amado e respeitado por todos.


Quando Richard morrera, Lilian recebera centenas de cartas de condolências, louvando as grandes qualidades do professor. Jamais ousara mostrar tais cartas ao tio. Se o fizesse, ele poderia recusar-se a lê-las, e até a proibiria de ter a alegria de conservá-las em seu poder.


Tudo o que havia na casa dos Evans fora vendido depois da morte do casal. O duque não permitira que a sobrinha trouxesse nada para o castelo, a não ser suas roupas. Até o pouco dinheiro que Richard deixara ficara em poder do duque.


Quando se preparavam para a viagem à Kavónia, Lilian pedira algum dinheiro ao tio, mas ele lhe respondera que ela não precisaria comprar nada.


 Posso precisar comprar algum artigo pessoal ou dar uma gorjeta aos criados — se justificara.


 Sendo quase uma criada, não precisará fazer tais extravagâncias. Quanto a roupas e artigos pessoais, Petúnia cuidará disso.


 Não posso viajar sem nada na bolsa — ela protestara.


 Nesse caso, vá sem bolsa!


Era uma situação humilhante. Afortunadamente, Lilian possuía, para seu consolo, três soberanos de ouro escondidos em seu porta-jóias. As moedas eram um presente que o pai lhe dera em um dos seus aniversários.


Cada uma delas lembrava uma data importante. Uma datava de 1855, o anoem que Lilian nascera; outra havia sido cunhada em 1868, quando fora crismada, e a terceira era de 1870. Lilian fazia quinze anos e ganhou do pai as três moedas.


 Quando juntar mais soberanos de ouro, querida — dissera-lhe a mãe —, vamos mandar fazer-lhe uma linda pulseira.


Mas não houvera mais soberanos de ouro, e aquelas três moedas eram o único dinheiro que Lilian possuía. Ela pensou em não gastá-las, a não ser em uma emergência. Todavia, impulsivamente, penalizada com a pobreza em que vivia a mãe da criança atropelada pela carruagem, deixara uma das preciosas moedas naquela casa humilde.


Mas não se arrependera, embora soubesse que teria problemas quando precisasse pedir a Petúnia um vestido novo, pois a prima era tão avara quanto seus pais.


"Talvez Petúnia me dê alguns de seus vestidos velhos", pensou, esperançosa.


Ela imaginava como seria maravilhoso usar os lindos e elegantes vestidos trabalhados, da prima, com suas longas caudas, que encantavam todas as ladies da corte.


A crinolina estava fora de moda há cinco anos. Agora, os vestidos eram puxados para trás, sobre as anquinhas, para cair em uma cascata de babados, pregas, laços e franjas sobre uma elegante cauda.


Os vestidos de noite desnudavam os ombros e o colo, e os corpetes, bem apertados, realçavam o busto das mulheres e lhes afinavam a cintura.


Os vestidos de Lilian, no entanto, feitos segundo a orientação da duquesa, não tinham cauda e eram folgados demais. Havia severidade neles, pois a tia não queria gastar com enfeites. Assim, a aparência de Lilian era humilde, exatamente como desejava a duquesa.


"Ah, se uma fada agitasse sobre mim sua varinha de condão", ela pensou enquanto se vestia para o jantar, "e me desse um vestido que cercasse meus ombros como uma nuvem e que me caísse às costas como ondas brancas encapeladas!"


Mas, em vez disso, ela parecia escura como uma sombra em seu vestido triste e austero, enquanto seguia a prima, que resplandecia em suas jóias, presente do rei.


 Apenas mais dois dias — disse Petúnia ao subir as escadas, depois de terem assistido a uma representação teatral, seguida de um baile.


 Está ansiosa para que chegue o dia de suas bodas?


 Eu me tornarei rainha!


 Acha que será feliz com o rei Valter? — perguntou a prima, um tanto hesitante, temendo ser impertinente.


 Acho agradável a companhia de Valter. Também admiro o modo como ele governa este país.


 Vocês conversam sobre esse assunto?


 O que o rei me tem dito é que o povo necessita de pulso firme para ser mantido sob controle. Grande parte da população é descendente de gregos, e agita-se facilmente.


O tom de Petúnia era mordaz, e Lilian protestou, impulsivamente:


 Mas é o país deles!


 Pelo contrário! E o país de Valter. Ele contou-me o quanto tem feito para melhorar o conceito internacional da Kavónia.


 Em que sentido?


 Outros monarcas respeitam este país e seu rei. Valter fez muito nesses doze anos de reinado.


 O que ele fez? — indagou Lilian, cautelosamente.


 Já viu todo o palácio? Este prédio era feio e achava-se quase em ruínas quando Ferdinand aqui chegou. A cidade de Zanthos era um lugar pobre, com um punhado de casas simples e sem ao menos uma loja decente. As ladies, imagine, precisavam mandar vir de Nápoles ou de Atenas até mesmo fitas e rendas!


Lilian não respondeu. Na verdade, não havia o que dizer. Petúnia não era pessoa que se interessasse pelos sentimentos ou pelo sofrimento dos habitantes daquele país. Além disso, a própria Lilian quase nada sabia a respeito daquela gente.


Tudo o que havia visto fora o interior de um cômodo pobre, nos subúrbios de Zanthos, e ouvira falar que os camponeses se achavam descontentes com a situação reinante.


 Preciso ir para a cama — disse Petúnia. — Não quero estar cansada amanhã. Receberemos muitos hóspedes, que chegarão para as bodas.


 Não se sente nervosa?


 Por que deveria sentir-me assim? Afinal, sou uma pessoa perfeita para ser a rainha deste país, e, sem dúvida, serei uma noiva maravilhosa.


 Naturalmente.


 A catedral não é muito grande, creio que os convidados ficarão espremidos dentro dela.


 A religião nacional da Kavónia é a ortodoxa?


 Parece que sim — disse Petúnia  com indiferença. — Apesar de o rei ser católico, ele decidiu casar-se na catedral grega, que é muito mais imponente do que a igreja católica.


 E ele pode fazer isso?


 Ferdinand pode fazer tudo o que quiser! — respondeu Petúnia orgulhosamente. — É claro que o velho arcebispo, que é muito obtuso, recusou-se a participar da cerimônia e retirou-se, irritado, para o mosteiro nas montanhas.


 Acredito que os habitantes do país, em sua maioria ortodoxos, ficarão ressentidos com a celebração de um casamento católico em sua catedral.


 E que importância tem isso? Eu ficarei casada de qualquer maneira, e serei coroada rainha!


Lilian ficou em silêncio, mas achava que uma cerimônia católica, realizada por padres católicos, em uma catedral ortodoxa, poderia ser considerada um insulto.


Petúnia atravessou a sala de estar e seguiu em direção ao quarto, onde certamente as criadas esperavam para ajudá-la a despir-se.


 Assim que me casar — disse ela —, pretendo trocar as cortinas desta sala. Não gosto deste tom de rosa, prefiro o azul. Também vou trocar estes sofás por outros mais confortáveis.


 Ficará muito caro redecorar esta sala.


 E o que importa? Quero que os tecidos venham de Viena ou de Paris. Quanto ao candelabro, aqui ficaria bem um de cristal veneziano.


Ela esperou que Lilian abrisse a porta que se comunicava com o quarto, mas esta abriu-se de repente.


As duas jovens viram o duque de pé, ainda no traje de rigor, a casaca cheia de condecorações, a Ordem da Jarreteira atravessando-lhe o peito. A expressão do rosto dele fez Lilian prender a respiração.


 Depressa, Catherine! — ele exclamou. —Vista rapidamente um traje de montaria. Partiremos em alguns minutos!


 Partir, papai? O que quer dizer com isso?


 Você e o rei serão levados para um lugar seguro. Não há tempo a perder!


 Mas por quê? — gritou Petúnia — Por que não estamos seguros aqui?


 Estourou uma revolução. O primeiro-ministro acredita que não poderá ser sufocada em um ou dois dias. Nem você nem o rei podem correr riscos.


 Oh, papai, papai! — gritava Petúnia, com o medo estampado no rosto.


 Faça como lhe disse, filha! — trovejou o duque. — Vista seu traje de montaria e esteja pronta em dez minutos!


Petúnia deu um grito de horror, e o duque virou-se para deixar a sala. Lilian então perguntou:


 Acompanho Petúnia, tio Septimus?


 Você não corre perigo, sendo inglesa — disse ele com indiferença, virando-se para a sobrinha. — Fique aqui. Alguém cuidará de você.


 


 


 


 

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