Ovelha Negra



Ela entra no departamento e, como em todas as outras milhares de vezes que faz isso, encara o canto organizado onde ele fica perdido entre todas as regras que decidiu seguir. Os óculos escorregam pelo nariz e ele os coloca para cima novamente. Uma mecha do cabelo cai sobre os olhos e ele a coloca no lugar, se irritando com a repetição. Pensa que se tivesse cortado o cabelo ao invés de ficar até mais tarde com o chefe checando as tarefas no dia anterior, não teria aquele problema. Ele pensa, mas se contem no minuto seguinte pela aparente displicência que aquele pensamento lança no ar.


Ela caminha por entre as mesas batendo com os saltos altos no chão. Não são confortáveis, não são indispensáveis, mas são lindos e a deixam sexy. Os cachos comportados balançam pelas costas e a saia passeia pela pele das coxas numa insinuante dança que todos reparam. Todos, menos ele. Ele, compenetrado no trabalho sem graça que, segundo ela, apenas serve para pagar as contas. Ela, apenas querendo chamar a atenção. Ela consegue, porém o único que não a olha é ele. Justamente ele.


- Bom dia – ela diz, com a voz baixa e arrastada, encarando o rapaz por sobre a separação de madeira dos cubículos do escritório. Ele não vê que ela tem o bumbum empinado e se balança nervosa. Sim, nervosa. Ela não é acostumada aquele tipo de vestimenta e muito menos aquele tipo de comportamento, mas se serve para chamar a atenção dele... Porque não?
    - Bom dia, Rose – ele cumprimenta, sem erguer os olhos e reparar que ela usa um delineador caprichado ao redor dos olhos claros. Ele ao menos olha para ela e isso a faz bater com os saltos no chão.


- Não é educado não olhar para as pessoas quando fala com elas.


O tom da garota de cachos ruivos não é intimidador e muito menos zangado, porém não chega nem perto do tom irônico que ela quis que tivesse. Ela estava sem tempo de ser irônica, zangada ou intimidadora. Cinco anos querendo atenção especial por parte daquele amigo de seu primo que tinha sido um companheiro de acomodação na escola faz isso com ela; deixa Rose Weasley sem tempo para lenga lenga.


- Desculpa, mas é que esse relatório é muito importante – ele diz, erguendo os olhos por apenas dois segundos, mostrando que existe vida naquele corpo magro sentado na cadeira desconfortável. Foi o tempo suficiente para ele perceber que tinha algo diferente no rosto dela. Scorpius Malfoy pode ter todos os defeitos do mundo, da distração ao exagero, mas ele sabe perceber quando alguma coisa está diferente em alguém. – Você cortou o cabelo, Rose?


- É – ela diz. Também estou usando uma roupa apertada, pintei as unhas de vermelho e estou usando muita maquiagem, ela pensa irritada. Porém, a irritação de seu pensamento desvanece quando ela entende que ele reparou em alguma coisa de sua aparência. A autoestima de qualquer uma subiria pelas paredes.


- Ficou legal – ele conclui o comentário e se volta para sua mesa.


Rose se vê admirada, espantada. Ao mesmo tempo paralisada a ponto de não conseguir se mexer e agitada o suficiente para dançar sobre os saltos desconfortáveis. Ela se senta em sua mesa e começa a trabalhar, ainda estampando um sorriso imbecil no rosto... Finalmente conseguia arrancar uma observação de Scorpius sobre ela, mesmo que esse pensamento se apresentasse tão estranho que ela precisasse pressionar as sobrancelhas.


Rose conhecera Scorpius na escola, quando o mundo era apenas uma brincadeira e os dois apenas faziam piada sobre tudo e esperavam as coisas acontecerem. Ele era amigo de seu primo Albus e aquele laço fora suficiente para que os dois começassem conversas despretensiosas e comentários maldosos sobre os outros colegas. Scorpius era debochado, engraçado, não tinha pretensão nenhuma e a ruiva via nessa amizade uma forma de mostrar ao mundo que não era igual sua mãe.


Hogwarts não precisava de outra Hermione e sim de novos Fred e George.


Ela não sabia dizer quando ele se transformou... Talvez quando a formatura chegou e os alunos precisaram mostrar ao mundo certa responsabilidade sobre eles mesmos e sobre suas próprias vidas. De repente, as coisas pararam de acontecer sozinhas e se tornaram coisas que precisavam ser buscadas. Rose tinha entendido aquele conceito e tinha aprendido na prática que podia ter elementos de Hermione e Fred e George numa mesma personalidade e em locais e horários distintos. Scorpius se tornara apenas Hermione.


Ela termina de ler o terceiro relatório solto em sua mesa e ergue os olhos para o relógio. Quase meio dia. O horário do almoço de aproxima e Rose decide não almoçar sozinha. É o comentário despretensioso e a insistência que a fazem se erguer de sua cadeira e se dependurar na separação dos cubículos. Scorpius ainda está lá, encarando uma montanha de papeis e fazendo anotações em um pergaminho comprido que a cada minuto se enche de novas anotações.


- É um livro? – ela brinca e ele ergue os olhos.


É a primeira vez em muito tempo que ele a encara nos olhos.


- Poderia – ele diz, fechando o pergaminho e largando a pena. – Mas eu tenho certeza de que as pessoas achariam esse livro chato. A não ser que elas gostem de saber como os processos administrativos acontecem aqui.


- Existem pessoas que gostam desse assunto – ela comenta, dependurada na divisória da mesma maneira de antes. O bumbum empinado e os pés doloridos balançando. – Tipo, você, aparentemente.


- Eu? – ele pergunta, bufando e se erguendo da cadeira.


- É. Por quê? Não gosta?


- Não muito.


- Quem diria – Rose observa, colocando o peso do corpo sobre os pés, já que conseguia enxergar Scorpius sem se dependurar na divisória. Os pés pulsavam e ela queria muito coçar os olhos, mas a idéia de ter o delineador manchado a impedia. – Você, compenetrado nesse trabalho, sem dar papo para ninguém, não é muito fã do que faz aqui!


- É meu trabalho, Rose.


- Eu sei, é o meu também – ela comenta, abrindo um sorriso singelo. O sorriso que Scorpius conhece há quinze anos. – Só acho que poderia ter um pouco mais de Fred e George no jeito como você trata dele.


- É um recorde – ele brinca. A primeira brincadeira em muito tempo.


- O que?


- Faz alguns anos que eu não escuto essa citação.


- Você bem que precisa dela – Rose observa, buscando a bolsa.


- Claro – ele ironiza e isso não a deixa irritada. Pelo contrário, a faz rir.


- Almoça comigo?


- Posso dizer não?


- Não.


Ele não ri e ela não faz mais piadas, mas apenas seguem para fora do escritório. Scorpius carregando toda a aura pesada do trabalhador modelo, vestido de modo formal e sufocante. Rose não torce mais o nariz, está acostumada, apenas se preocupa com o ardor nos pés e a insegurança da roupa apertada e curta. Tudo o que mais quer é estar usando um dos vestidos florais e sandálias baixas que tinham lhe garantido uma vaga na república mais alternativa do mundo bruxo.


Scorpius gosta daquilo. Rose apenas não sabe disso. Ele gosta das flores, do cabelo despretensioso e comprido. Gosta das sandálias baixas que a fazem caminhar como uma fada... Os saltos deviam estar incomodando porque ela não caminhava com naturalidade. Scorpius abre a boca para perguntar, mas ela para no corredor, apoiando uma das mãos na parede e arrancando os saltos com a outra.


- Isso está me matando – reclama.


- Parece estar – ele diz apenas, colocando as mãos nos bolsos.


Scorpius é irredutível quanto à postura rígida. Rose não gosta daquilo e ele não sabe disso. Ela odeia a postura sempre correta, odeia os óculos quadrados sempre sendo empurrados para cima. Ela detesta as palavras formais ditas por ele e não consegue não sentir raiva quando ele tenta corrigir um método que ela usa para executar seu trabalho. Ainda assim, ela estava lá, esperando que ele notasse que ela está lá por ele, que ela moveria um morro se ele pedisse.


O mundo é, realmente, muito estranho.


- Melhor agora – ela diz, guardando os saltos dentro da bolsa e caminhando com os pés descalços. Scorpius não se mexe, apavorado com a cena. – O que foi?


- Você vai andar de pés descalços?


- Não posso?


- O chão é sujo!


- E você é um chato, Malfoy – ela ironiza, apontando a varinha para os pés e lançando um feitiço que os protegeria da sujeira natural do chão e funcionaria como as solas de um sapato. – Melhor agora?


- Você não acha estranho andar por aqui sem sapatos?


- Caramba, eu gostava mais de você quando você era mais como eu!


- Eu também – ele diz, enquanto a segue pelo corredor.

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Comentários (1)

  • pokie.

    Adorei! Gosto muito desse estilo de narração, é diferente e você soube levar isso muito bem, conduzindo na leitura natural sem nada forçado, e sim instigante. Scorpius e Rose nada típicos aí, mesmo assim adoráveis. Ah, e uma coisa que eu reparei: você colocou Rose ruiva! HAHAHUAH

    2011-12-20
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