Chuva




Complicado, muito complicado. Andei apressada pelas ruas desertas e chuvosas até chegar no meu doce lar. Vou parar de enganar vocês, esse não é meu doce lar e toda a minha vida está mais que complicada, na verdade eu agradeceria a Merlin se ela estivesse complicada.


Meu antigo bairro, um dos mais ricos de Paris, era do que eu mais sentia falta da minha antiga e feliz vida. Desde que minha mãe saiu de casa, e eu bobamente resolvi acompanhá-la, a minha vida se resume a resmungar e encarar os fatos: eu nunca vou ser feliz. Nesse momento você pode pensar que eu estou exagerando, o que talvez eu esteja fazendo – apesar de preferir que chamem de dramatização –, algum dia eu posso ser feliz. Mas nesse momento isso é o mais impossível da acontecer na minha vida.


Meus pais eram felizes e perfeitos, como todo o casal da alta sociedade deve ser, até que minha mãe resolveu se mudar. Simples assim. Lá estava eu, ouvindo música e esperando as entediantes horas que antecediam a primeira festa após o começo das férias de verão, quando minha mãe entra no quarto e fala com aquela voz de comercial de pasta de dentes que ela vai embora. Eu, mesmo não tendo passado muito tempo com ela ao longo dos meus quinze anos, percebi o quanto ela estava fragilizada e bláblá, achei melhor ficar com ela até que ela parasse com aquela besteira e meus pais fizessem as pazes ou qualquer coisa do gênero.


E cá estou eu, num pequeno vilarejo em Londres, morando no apartamento minúsculo do noivo da minha mãe tendo que aturar mais dois pirralhos – admito, eles tem a minha idade – que só falam naquela escola idiota deles. Como é mesmo o nome? Hoqwads? Não, não, é Hogwarts.


É claro que minha trágica experiência pessoal não se resume a isso, mas nesse momento o que eu menos quero é lembrar dos detalhes que fazem miserável essa minha vida de adolescente.


Procurei a chave nos meus bolsos, na minha bolsa. Até no saco de pão que eu estava levando. É claro que eu tinha que esquecer meu único modo de entrar em casa antes de morrer de frio em cima da mesa, simplesmente genial. Peguei um cartão de crédito qualquer dentro da carteira e tentei arrombar a porta.


A porta só faltou rir de mim. Porque nos filmes parece tão fácil?


Resmunguei e sentei em baixo da marquise, se era para eu esperar os pirralhos que fosse longe da chuva pelo menos. Ok,ok, não que adiantasse muito: eu já estava molhada e, como a Lei de Murphy rege minha vida, tinha uma goteira bem em cima da minha cabeça.


-    Ora, ora. Uma bruxinha trancada fora de casa – o garoto falou se aproximando – Quer uma ajuda para entrar em casa?


Tinha a leve impressão de que o conhecia, aquela sensação de já ter visto a pessoa antes. Não gostei daquela sensação porque a última coisa que eu precisava era ter outra pessoa de Beauxbatons me reconhecendo por aí.


-    ­­Quem é você? – perguntei com aquela voz entediada e doce que eu costumava usar para disfarçar desconforto.


-    Derrick – ele falou pausadamente, quase como se saboreasse o próprio nome – E o seu é Tess Rosenberg, não é?


-    Se eu disser que não adiantaria alguma coisa? – perguntei com um pouco mais de rispidez do que eu queria.


-    Talvez. Mas eu vi você – ele comentou com um sorriso arrogante e naquele momento eu o odiei – Numa revista, morava em Paris, certo? Você era de Beauxbatons.


-    Exatamente – resmunguei cansada e me perguntei se vai ser sempre assim, era o terceiro desconhecido que me reconhecia e aquilo já estava me irritando – Já satisfez sua curiosidade?


-    Na verdade não – ele suspirou – Quero saber porque você não entra em casa.


-    Estou sem a chave – porque eu estava falando aquilo para ele?


-    E para que você precisa de uma chave? – ele revirou os olhos – Você é uma bruxa. Você acha que as varinhas são enfeites bonitinhos para se colocar no bolso?


-    Claro que não, mas é proibido fazer magia fora da escola – onde aquele garoto vivia?


-    Acabei de vir de Durmstrang – ele comentou pegando a varinha – As coisas lá são um pouco diferentes.


-    E o que isso tem a ver comigo? – ele era problema, sem dúvida, pessoas de Durmstrang não são o que nós podemos chamar de confiáveis.


Tudo bem, a guerra acabou. Mas a maioria dos jovens partidários de Voldemort veio de lá, é normal ter desconfianças. Encarei ele que brincava calmamente com sua varinha.


-    Eu posso abrir a porta para você – ele falou e seu tom de voz não deixava dúvidas que ele não faria de graça.


-    E o que você quer em troca? – perguntei na defensiva e apertei fortemente a minha varinha.


-    Entrar junto com você – ele deu de ombros quando percebeu minha expressão de descrença – Estou morando aqui há dois dias, me perdi. Preciso só esperar essa chuva passar para voltar, e consultar as páginas amarelas. Qualquer coisa.


Pesei minhas esperanças. Joy e Guy estavam curtindo a vida loucamente e eu não tinha certeza se eles voltariam hoje para casa, minha mãe e o noivo devem estar fabricando meu irmãozinho num motel qualquer. Eis a questão: esperar por pessoas que talvez não voltem para casa hoje ou entrar em casa com um desconhecido de Durmstrang.

-    Eu não tenho a noite toda – Derrick levantou a manga do seu casaco e olhou seu relógio – É sério, já está tarde. Londres não é como Paris
princesinha.


Balancei a cabeça certa de que me arrependeria, mas eu estava com frio e morta de vontade de tomar um banho e beber um chocolate quente.


Ele fez um simples alohomora e tudo voltou a ser tipicamente trouxa. Resmunguei, cadê os berradores do Ministério? Cadê os dementadores e a corte bruxa?


-    Simples não é? – ele sorriu convencido e fez uma mesura para eu passar.


Ouvi palavras desconexas vindas dele, ele olhava suspeitosamente para as portas dos moradores do térreo enquanto trancava o portão de entrada. Caminhei em direção ao elevador mas ele parou na porta, sem se mover.


-    O que é essa caixa? – ele perguntou com o rosto contorcido em desconfiança.


-    Um elevador – eu falei gesticulando – Vai nos levar para o andar do meu apartamento.


-    Tem certeza? – ele colocou a cabeça um pouco para dentro só para depois dar alguns passos para trás – Isso não é confiável.


-    Andar de elevador é mais confiável que estudar em Durmstrang – falei seca, o que ele tinha contra em simplesmente me seguir? – Mas não farei questão, suba as escadas até o oitavo andar. Se você sobreviver, o número é 852.


Ele ficou mais um tempo parado, acho que tentava entender o que era uma escada. Ou o oitavo andar, nunca se sabe. Durmstrang era conhecida por sua falta de perspicácia.


Nós ficamos em silêncio até o quinto andar, quando ele falou o que eu menos esperava ouvir.


-    Nem sempre estudei em Durmstrang – eu ainda digeria essas palavras quando ele continuou com a frase mais absurda que eu já ouvira – Na verdade, essa é a minha terceira expulsão.


-    Você coleciona? – antes que eu pudesse me controlar eu soltei aquela, balancei a cabeça tentando organizar os pensamentos – Derrick, esse nome não me é estranho. Você não me é estranho.


Ele pareceu desconfortável e, quando paramos no oitavo andar, ele saiu tão rapidamente que eu mal pude acompanhar seus passos. Comecei a andar rápido (vulgo: corri) e o achei em frente à porta do meu apartamento, olhando fixamente para a luz do corredor, como se ela apresentasse alguma característica mais marcante do que o fato dela piscar irritantemente.


Então a luzinha dos pensamentos se acendeu e eu tive uma ideia brilhante. Precisava saber se ele era quem eu pensava que era.


-    Cooper – e ele automaticamente virou para mim – Derrick Cooper. O garoto problema, como eu não te reconheci?


-    Precisava mesmo me avisar que sabe quem eu sou? – ele comentou rudemente.


-    Por acaso precisei me apresentar para você? – perguntei retoricamente.


-    M'a fait princesse — ele destrancou a porta e chegou para o lado para eu passar, me pegou princesinha.


-    Je sais – comentei acendendo a luz de casa, eu sei – Expulso de novo? Suponho que você irá estudar em Hogwarts agora, acertei?


-    Talvez – ele murmurou tirando o casaco – Mas dessa vez foi por vontade própria.


-    Pensei que você gostasse das artes das trevas, como a sua família – falei sentindo um súbito medo.


-    Não me julgue pela minha família princesinha – ele falou apertando os punhos, de costas para mim – Mas o que você sabe sobre isso? Seus pais são defensores do Ministério da Magia francês, Inomináveis. Você sempre foi a garotinha prodígio na família perfeita, nunca entenderia.


-      Isso vindo do rebelde e bonzinho filho de comensais da morte – falei irritada colocando o saco de pães na cozinha e pendurando meu casaco e minha bolsa.


Depois de alguns minutos em que ficamos nos encarando furiosamente ele quebrou o gelo.


-    Melhor pararmos com isso, não vai levar a lugar nenhum.


-    Minha vida nunca foi melhor que a sua, só tivemos histórias diferentes.


Ele revirou os olhos mas não replicou, analisou bem o lugar. Tinha as lâmpadas embutidas no teto, uma luminária e o aquecedor. Um sofá espaçoso em que o meu gato e o do Joy estavam esparramados, o tapete surrado e a vista do corredor, da porta da cozinha e da varanda.


-    Acho que você não aproveita bem o que você tem – ele comentou quando chegou na varanda.


-    O que você quer dizer?


-    Sei lá, nem te conheço – o garoto torcia os dedos nervosamente – Mas parece que você simplesmente acha pouco, sabe? Você é muito sortuda.


Olhei para ele descrente, como ele podia dizer aquilo? Minha vida já foi muito melhor, quando eu tinha meus sete anos era tudo muito mais fácil e verdadeiro. Agora, com meus quinze anos, eu conseguia ver que o mundo dos adolescentes é fácil de construir: jogue toda merda no ventilador e deixe espalhar.


Olhei para ele, parecia triste e contemplativo. O que não era a toa, meu apartamento tinha uma das melhores vistas de toda Londres.


E foi nessa varanda, olhando para a chuva e as luzes ao longe, que eu percebi que talvez eu fosse agraciada. Não que isso tivesse tirado da minha cabeça o desejo de vingança, ou o de reconquistar o que eu perdi. 

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