único



Estranho, mas eu acordei mais do que disposto naquele dia. Abri os olhos de uma só vez ao invés de ficar ruminando na cama e rezando para que algum professor tivesse tido o bom senso de não dar aula por algum motivo fútil ou apenas porque estivesse doente. Minhas esperanças foram por água abaixo quando percebi que o dormitório estava se esvaziando e eu estava ficando para trás. Atrasado novamente?


Levantei-me de um só movimento, jogando o corpo para fora da cama com a mesma rapidez com que abri as cortinas verdes com um puxão. Isso também foi estranho porque eu realmente me sentia disposto a levantar naquela manhã, então não brinquei jogando os braços para cima e vendo-os caírem na velocidade em que eu queria. Também não esperava sorrir ao lembrar que a aula que teria no primeiro tempo era com uma turma de sexto ano, menos adiantada que a minha.


Era inicio de dezembro e uma manhã nublada se mostrava no céu, como pude ver ao abrir a janela e encarar a neve que começava a se formar por sobre o gramado bem cuidado de Hogwarts. Dali a alguns dias começaríamos a ter os dias mais frios e chatos que Hogwarts já vira. Começariam as provas e também seria tempo de nevascas, de casacos grossos e cachecóis coloridos e para meu alívio, mas também temor, o meu último semestre em Hogwarts.


Ergui o queixo para abotoar os botões das vestes que ficavam mais perto do meu pescoço. Não podia negar que aquelas roupas escuras e aquele ar medieval do castelo não fizessem bem para minha aparência. O sorriso estranho e subdesenvolvido brincava ainda estacionado no canto dos meus lábios quando eu deixei que meus pensamentos vagassem até a aula de Transfiguração. Um sorriso fazia bem à minha aparência, mas porque eu estava sorrindo ao pensar em tal aula?


A imagem no espelho que adornava a maior parede da sala comunal da Sonserina não poderia me dar uma resposta, então eu decidi rejeitar o olhar confuso do meu reflexo e seguir, com passos apressados, para a aula de Transfiguração. A sala estava quase completamente lotada por alunos, já que se misturavam duas turmas grandes de Sonserina.


O sexto ano tinha o privilégio de ter uma aula com o sétimo ano graças à antiga professora que dera um ensino avançado a eles. A atual professora fora obrigada a aceitar que tivéssemos aulas juntos. Eu achava um tanto exagerado, mas Dumbledore era excêntrico, para não dizer amalucado.


Havia apenas uma pessoa do sexto ano que me chamara atenção e ela estava sentada em uma carteira que ficava atrás da que eu costumava sentar. Eu tinha certeza de que ela sabia que eu sentara ali desde o primeiro dia de aulas. Narcisa virou-se para me olhar quando entrei. Usava grandes óculos escuros com hastes coloridas. Ela revirava um chiclete de um lado para outro com os maxilares mexendo-se nervosamente.


- Lúcio Malfoy! – ela fingiu estar surpresa, enquanto levava a mão aberta em frente aos lábios. O chiclete amarelo quase caiu de sua boca na encenação. – Você caiu da cama?


Ela disse as palavras muito devagar, baixando a mão e voltando a sentar direito na cadeira quando eu passei por ela para sentar-me em minha carteira, mantendo o rosto virado em sua direção.


- Não que eu saiba – disse, fingindo analisar meu corpo e perceber algum arranhão. Ela riu com vontade, jogando a cabeça para trás, deixando totalmente descoberto seu pescoço muito claro e de pele muito lisa.


- Você chegou antes do final da aula – ela fingiu fazer uma profunda análise. – Já é um progresso – soltou, distraindo-se com uma bola que seu chiclete fazia.


Ela soprou até que a bola formada pelo chiclete amarelo cobrisse seu nariz e queixo sem estourar. Eu esperei que aquele momento lúdico resultasse em alguma raiva pela demora dentro de mim, mas apenas o que notei acontecer foi meus olhos cinzas rápidos analisares aquele ser esbelto em minha frente.


O pescoço claro ainda era visível por baixo da manta azulada o que parecia evidenciar o azul leitoso de seus olhos. Eles eram grandes e redondos, fazendo um conjunto perfeito com a boca pequena e o nariz empinado, que a fazia parecer uma pessoa com nojo constante. Por mais que aquilo me irritasse, o nariz empinado conferia mais sensualidade aquele rosto infantil, mas perfeitamente adulto.


- Óculos escuros? – observei, encarando a janela, assim que ela estourou a bola de chiclete e o colocou dentro da boca novamente. – Culpa do sol dessa manhã nublada.


Ironizei, a fazendo rir. Eu tinha que admitir que gostava do jeito como ela ria. E gostava principalmente do jeito como ela me fazia sentir leve e estranho. De repente, me passou pela cabeça que o sorriso subdesenvolvido, que eu tinha certeza que se instalara em meus lábios novamente, tinha alguma coisa em comum com aquele sentimento de leveza. A minha estranheza podia muito bem ser culpa dela.


- Aposto que queria chamar a atenção dela – comentei, apontando para a professora que se instalava em frente à turma com a varinha em punho.


 


- Eu queria chamar a atenção de uma pessoa e consegui – Narcisa Black tirou os óculos escuros, os colocando por sobre o colo, sem olhar para mim, declarando com os lábios muito juntos: - E não era a atenção dela.


É possível que uma pessoa enlouqueça em alguns minutos? É possível que ela mude de atitude e modo de pensar em tempo inversamente proporcional ao que formou toda sua atitude e pensamento anterior? Quem conseguir dizer que não, é porque nunca conheceu Narcisa Black e o efeito que ela parecia ter sobre mim.


Virei-me devagar para encarar a professora que me olhava diretamente. Ela nunca gostara de mim, eu sabia disso, mas como a professora dedicada que era não podia simplesmente inventar qualquer coisa para me incriminar, mas podia prestar a atenção em tudo que eu fazia. Fiquei quieto a encarando, enquanto ela passava uma lição sem graça sobre transfigurar um mapa em alguma coisa e vice-versa. Fácil.


- A tarefa de hoje está no mapa escondido dentro de cada uma dessas estatuetas que estão escondidas em suas carteiras.


A professora disse, enquanto a sala encheu-se com barulhos desnecessários. Todos os alunos encontraram suas estatuetas e as transfiguraram em seus mapas de tarefa. A minha estatueta era um busto de Slytherin. Conveniente.


- Slytherin também? - Narcisa perguntou com a voz arrastada.


- Tarefa em dupla?


- Em quarteto – ela me corrigiu e eu encarei o outro lado da sala a procura dos outros dois e encontrei dois garotos que mais pareciam dois porcos gigantes com seus pesos avantajados e suas peles rosadas.


A professora recomeçou a falar e eu me voltei para frente para vê-la falar, já que nada do que ela dizia era processado pelo meu cérebro. Apenas pesquei a parte que mais me satisfez dentro daquele monte de palavras irritantes: A tarefa daquela aula valeria um quinto da nota e envolvia uma saída de campo. Julguei uma tarefa simples para valer um quinto da nota, mas para que me envolver?


As saídas de campo realmente despertavam minha atenção e naquele período do ano as visitas à Hogsmeade estavam escassas, já que os exames estavam chegando e a neve tomava as estradas e lugares. Hogsmeade estaria mais lotada do que de costume, o que não era a preocupação da direção da escola, claro.


Inclinei minha cabeça para trás, escorregando na cadeira, pousando levemente a cabeça por sobre a carteira de Narcisa, sem ter realmente a intenção. Ao tentar levantar a cabeça e me desculpar por invadir aquele espaço, dedos quentes se entrelaçaram nos meus cabelos, me proibindo de seguir com minhas desculpas. A massagem feita pelos dedos finos duraram pouco, porque a voz estrondosa da professora me fez erguer a cabeça.


- O senhor não tem vergonha, senhor Malfoy?


- Depende – comentei, sério, sem intenção de ser engraçado e sem achar que aquela frase tinha algum sentido engraçado, mas a turma explodiu em risadas baixas.


- Menos cinco pontos para a Sonserina, senhor Malfoy – ela disse, virando-se para voltar para sua mesa com uma expressão de escárnio no rosto.


- Ridículo! – exclamei em voz alta, cruzando os braços por sobre o peito.


- Eu escutei! – ela me alertou, ainda de costas.


- Que bom porque foi essa minha intenção – eu disse com um sorriso como o que ela estava esboçando no rosto enrugado.


- Um dia, senhor Malfoy – ela começou, virando-se muito rápido, andando até mim tão rápida quanto suas palavras. – o senhor se arrependerá desse comportamento. Quando tiver que enfrentar o mundo que o espera depois de junho e quando precisar ser um exemplo para um filho, o senhor saberá que as atitudes dos professores são preparatórias.


Eu também tive que admitir para mim mesmo que nunca havia pensado minha vida fora de Hogwarts. Muito menos havia pensado em como educar um filho, assim como nunca tinha pensado em uma vida de casado. Não me importa, pensei quase em voz alta, só quero que ele tenha meus olhos.


Não percebi quando a professora voltou para sua mesa em frente ao quadro negro, me tirando mais alguns pontinhos. Eu não reclamaria mais ainda, nem se eu estivesse com a cabeça na aula e não em um futuro que me era estranho, afinal perder quinze pontos não fazia nenhum aluno da Sonserina feliz. Os olhares eram recriminadores.


Por sorte, ou por azar, eu ainda não sabia, a aula terminaria no final do mapa que a professora nos dera. Eu segui com os dois meninos suínos e com Narcisa para onde o mapa indicava. A estatueta virara um pequeno pedaço de pergaminho amarelo demais que continha uma frase que indicava a próxima pista: Biblioteca.


Era cansativo, e eu e Narcisa praticamente carregávamos os dois gorduchos para as pistas que os pedaços de pergaminhos transfigurados nos levavam. Aquilo não era apenas uma tarefa dada em aula, mais parecia um exercício mental muito bem dado. Depois de sete longas pistas, conseguimos chegar no que parecia ser a última: A Floresta Negra.


- Gostei do que disse para a professora – Narcisa sibilou, andando perto de mim enquanto passávamos pela porta de entrada de Hogwarts em direção à floresta. Os gorduchos contavam passos a bons metros de nós.


- Que bom! – soltei, fingindo uma excitação que não tinha.


- Então, você já pensou no nome?


- Nome? – eu perguntei, sem entender o porque da pergunta e a relação com os fatos da aula e com outras conversas que tivemos. – Pra o que?


- Seu filho – ela respondeu, movimentando as mãos muito rápido, como se associação de palavras, que ela fez, fizesse algum sentido. – Já pensou em um nome?


- Eu não tenho filho – respondi, encarando apenas o terreno em frente.


- E quando você tiver?


- Quando eu tiver um, eu decido que nome colocar.


- Sem consultar sua mulher?


- Talvez – as perguntas já estavam me irritando, mas as expressões e caretas que ela fazia enquanto perguntava e remexia as mãos, eram tão graciosas e tão desastradas que eu quase me sentia forçado a pedir mais.


Nós chegamos ao final das indicações do mapa, encontrando uma estatueta de Slytherin na orla da floresta proibida. Eu a peguei a transfigurei, encontrando, ali, felicitações e agradecimentos do corpo docente por ter alunos inteligentes e espertos que conseguissem encontrar e blá, blá e blá.


Deixei o pergaminho de lado, virando para os gorduchos, que mal se moviam, fazendo um movimento para que parassem de andar, pois havia chegado ao final. Eles pararam no mesmo instante de andar, segurando os joelhos. Narcisa encarava o interior quase escuro da floresta com olhos intrigados. Eu segui seu olhar e ela virou-se para mim.


- Adoro a floresta – confessou, estagnada.


- Você é estranha – brinquei, mas no fundo expressava uma opinião que eu sabia que era verdadeira dentro de mim. Nem eu mesmo gostava assim da floresta. Além de ser proibida, ainda por cima tinha criaturas e coisas que não me atraíam.


- Uma estranha que você gosta.


Ao final da frase, Narcisa, sem pensar muito, correu para dentro da floresta. Suas vestes e o cabelo escorrido e muito claro voavam ao seu redor. Eu ainda não sei que força me fez a seguir, mas quando percebi estava correndo para dentro da floresta a alcançando na corrida. Eu já estava ficando sem fôlego quando ela decidiu parar.


Narcisa estava agachada ao chão, remexendo em alguma coisa de seu sapato, mas não eram cadarços porque seus sapatos não tinham cadarços. Ela manteve a cabeça baixa, enquanto eu chegava perto, fazendo barulho ao pisar nos galhos e folhas secas no chão da floresta. Ela ergueu o rosto, devagar:


- Lúcio – sibilou, erguendo-se de um salto e pulando com a mesma rapidez em uma raiz alta que a fazia ficar com os olhos na altura dos meus lábios.


Os olhos claros exibiam uma mistura perigosa. Ela deixava que algo que pairava entre a malícia e a leveza se esvaísse de seus movimentos e em toas as palavras que as diziam. Os lábios se moviam devagar buscando alguma coisa nos meus enquanto os olhos me analisavam.


- O que está fazendo? – perguntei, fazendo menção de voltar.


- Espera! – ela gritou, me fazendo parar. Virei-me de um pulo com a voz estridente que ganhou meus ouvidos com uma rapidez inacreditável. – Se eu me perder é bom ter alguém por perto.


- Porque você iria querer se perder?


Por um momento eu duvidei da sanidade dela, mas a proximidade que ela tomou de mim me deixou algumas coisas muito claras. Eu decidi não agir de uma vez e ver até onde ela iria sem a minha ajuda. Surpreendi-me quando suas mãos colaram-se aos meus cabelos e à parte de trás do meu pescoço, me puxando para perto do galho de onde ela pendia.


Ela baixou os olhos, grudando o olhar nos meus lábios, enquanto tinha os seus se entreabrindo, em um ato involuntário. Eu deixei que meu corpo se aproximasse do dela, cuidando para não ir muito além do que ela me estava permitindo. Deixei que minhas mãos envolvessem sua cintura. Eu tinha certeza de que, agora, tinha meus lábios pressionados um contra o outro.


- Você está abusando de mim – brinquei, enquanto deixava que aquela tensão se dissolvesse e se transformasse em alguma outra sensação. Narcisa riu, abrindo a boca e mostrando todos os dentes.


- Hoje vou violar o Malfoy! – ela disse com uma voz ameaçadora, mas que se parecia com um grunhido engasgado. Eu não pude deixar de sorrir, satisfeito.


Avancei com o rosto, pronto para beijá-la, mas Narcisa foi mais rápido, colando os lábios nos meus, numa tensão que me parecia impossível converter. Nunca tinha me imaginado numa situação daquela num dia frio em Hogwarts com ela.


O beijo durou mais do que eu achei que poderia durar e menos do que eu achei que poderia aguentar. Ao separar meus lábios e afastar meu rosto, percebi que as bochechas dela estavam vermelhas, mas não era uma vermelhidão de vergonha e sim de calor, o que me encorajou a empurrá-la até que suas costas estivessem escoradas em uma das tantas árvores da floresta.


Desci involuntariamente os lábios de sua boca para seu pescoço, sentindo a respiração pesada e ligeira dela invadir meus ouvidos ao sentir o toque quente de sua boca na minha pele. Foi como cair na inconsciência sem saber que se está caindo.


- Como quer que nosso filho se chame? – ela perguntou, enquanto andávamos até a porta do castelo. Já estava escurecendo e a professora de Transfiguração provavelmente estaria descontando mais alguns pontos de mim, pela não entrega da tarefa.


Novamente com a história de filhos? Rugi para mim mesmo, me odiando por odiar aquela pergunta. Qual era o objetivo dela? Pensar no futuro?


- Você está parecendo uma corvina – soltei. Mas mesmo desdenhando a pergunta dela, era de se pensar, porque eu não queria ter que passar o resto da minha vida sem aquela garota ao meu lado. – talvez Draco.


Eu sempre gostara de dragões.


– Draco – ela pensou, analisando a pergunta, grudando sua mão na minha.


- Draco – confirmei, passando o braço por seu ombro.


- É sexy – ela constatou, baixando a voz. – Aposto que vai arrasar com as meninas.


- E espero que de um jeito bom.


Estranho, mas aquele foi um dia que eu nunca poderia esquecer. Afinal, foi o primeiro dia em que eu não precisei contar carneiros ou qualquer outra coisa para conseguir me distrair.

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