Capítulo único.



 Mentiras.
                             por Jess Malfoy.




Eu ainda consigo me lembrar daquele dia como se fosse hoje. Não sou do tipo que costuma guardar lembranças, acredite. Elas não me valem de nada, uma vez que a maioria das lembranças que já tive é ruim. Lembranças que vinham atormentar-me durante a noite, em forma de pesadelos tão horríveis que talvez sua mente nem possa imaginar. Até que finalmente eu achei uma forma de bloqueá-los em meu cérebro, de forma que eu só me lembre deles quando desejar. Com o tempo, percebi que as lembranças terríveis eram o preço que um homem que agiu durante sua vida toda de forma copiosamente falsa e inescrupulosa deveria pagar, mas eu não paguei. Achei uma forma de reverter a situação, como sempre. Mas uma lembrança em especial eu não consegui deter. Não porque seja boa ou algo do tipo; na verdade, não é. Mas porque tem algo que me prende a ela, mesmo que eu tente escapar. Algo que nenhum dos feitiços ou poções que eu virtuosamente preparo pode quebrar. Costumo dizer que aquele foi o último dia em que eu realmente vivi. Quando ela foi embora, levou consigo toda a pouca vida que existia em meu ser. Depois, sobrou apenas o vazio. A juventude se esvaiu, dando lugar a uma maturidade mórbida e sóbria, uma esposa e um filho. Eles também fazem parte da mentira que me tornei. Queria – Merlin, como eu queria – poder dar a eles o que realmente merecem, o carinho e a afeição dedicados a mim por minha mãe. Mas eu já não tenho um coração capaz de amar, não depois daquele dia. Tornei-me oco e seco por dentro, como um homem sem coração deve ser.


Enfim, tudo aconteceu quando eu ainda estudava em Hogwarts. Durante o sétimo ano, mais precisamente. Um ano turbulento. A guerra entre Voldemort e Potter estava em seu auge, e mortes, em ambos os lados, eram noticiadas diariamente. Sem Dumbledore, a escola havia tornado-se o caos, e todos os professores estavam perdidos demais para conseguir tomar decisões certas...


 






 


Acordei estranhamente cedo naquele dia. Era assim desde que eu tinha descoberto que Potter e seus amiguinhos nojentos não haviam voltado à escola naquele ano. A presença deles sujava o ar que eu respirava. Definitivamente, Hogwarts era pequena demais para um Malfoy e um Potter conviverem juntos. Como sempre, fui direto ao Salão Comunal da Sonserina para ver se achava algo interessante por lá. E achei...


Ela estava lá, sentada em uma das poltronas negras que adornavam o Salão. Parecia extremamente entretida em uma leitura qualquer, que não me despertou a mínima curiosidade. Meus olhos estavam presos a ela, analisando-a, como se quisessem memorizar cada detalhe que a compunha. Os cabelos negros, cortados retos na altura dos ombros, emolduravam com perfeição o mais belo dos rostos; como daquelas bonecas de porcelana que mamãe costumava colecionar. O corpo não era mais o de uma menina desengonçada, como fora há anos atrás. Ganhara curvas sutis, pelas quais minhas mãos navegavam livres em alguns de meus sonhos mais ousados. Era uma visão do paraíso bem no meio do inferno.


Uma vez fora do meu transe, caminhei até uma poltrona defronte a dela e sentei-me, refestelado.


— Bom dia, Pansy. — Cumprimentei, com o melhor sorriso que pude esboçar nos lábios. Admito que não era grande coisa, já que meus sorrisos sempre saiam carregados de deboche e sarcasmo.


E então, ela ergueu a cabeça lentamente, desviando os olhos castanhos da leitura e pousando-os nos meus. Não foi preciso mais do que um segundo para que eu percebesse que Pansy estivera chorando. Mas quem, quem seria o ser insensível a ponto de encher de lágrimas aqueles olhos imaculados? Por um momento, os olhos profundos dela prenderam-se aos meus, como se desvendassem minha alma. Eram os únicos que conseguiam enxergar por trás de minha máscara de gelo. Aos poucos, os lábios coloridos de carmim se abriram, deixando que a voz fria ecoasse no Salão e em minha cabeça.


— Bom dia, Draco. — Ela não sorriu. Apenas sustentou o mesmo olhar misterioso e marejado pelas lágrimas. Definitivamente, algo ali não estava bem.


— O que aconteceu? Estava chorando? — Perguntei, sem conseguir me conter. Se eu descobrisse quem havia entristecido Pansy, certamente encontraria uma forma de me vingar.


— Não é nada. — Ela parecia estranhamente esquiva, calada. Pensei em acreditar no que ela me dizia e me calar também. Sabia que Pansy não conseguiria guardar um segredo por muito tempo, era da natureza dela. Precisava desabafar, sempre precisava. Mas desta vez, ela estava firme e eu tive de insistir mais uma vez.


— Eu sei que algo te aborrece, Pansy. Não me esconda, conte-me. — Mudei de posição na poltrona, que já não parecia tão confortável quanto antes. Estava ansioso, quase aflito. Ela e os meus dois gorilas de companhia, Crabbe e Goyle, eram os únicos que permaneciam ao meu lado após o fato ocorrido no final do Sexto ano. Mesmo depois de morto, aquele velho idiota do Dumbledore continuava a me atrapalhar. A história de que eu, Draco Malfoy, estava presente no momento da morte de Dumbledore, e de que eu havia inutilmente me disposto a matá-lo, corria por toda a escola, embora não existissem provas concretas contra mim. E eu fazia o possível para abafar a história. Não por realmente ter tentado matar o velho, mas sim por ter falhado. Nunca consegui admitir falhas nos outros. A idéia de que eu também era humano, e como tal também podia falhar, me atormentava; eu nunca poderia falhar. Pansy me olhou nos olhos, de forma estranhamente perturbada e levantou-se de súbito, enquanto seus olhos tornavam a se encher de lágrimas. O livro caiu de suas mãos, batendo com um pequeno estrondo no chão e seus lábios pareciam fazer um esforço sobre-humano para não tremerem.


— Quer saber? Realmente aconteceu algo, Draco. — Ela sibilou, num tom baixo e venenoso. Aos poucos, a incerteza de seus olhos sumiu, dando lugar a um brilho de determinação que costumava adornar seu olhar com freqüência em outros tempos. Os lábios, antes trêmulos, se curvaram num sorriso irônico. — Você tentou matar o velho naquela noite? Tentou ou não tentou, seu cretino? — Pansy deu um passo em minha direção, com os dentes cerrados de raiva. Eu me levantei da poltrona, na defensiva, pronto para me esquivar daquela conversa, como havia feito em todas às vezes em que ela insistira em começar com as perguntas capciosas e que me deixavam em situação desfavorável.


— Você sabe que não, Parkinson. Agora, não quero falar sobre isso...


Ela se adiantou em minha direção, suas mãos prenderam-se à gola do suéter cor de chumbo que eu usava com tal fúria que eu cambaleei. Ela continuou a me segurar daquele jeito selvagem, enquanto sua cabeça movia-se em movimentos negativos. Pansy não acreditava em mim. Aquele olhar de descrença me desarmou mais do que qualquer palavra que ela viria a dizer.


— Eu quero a verdade, Draco. Apenas uma vez... — ela mexeu as mãos, esmurrando-as com pouca força em meu peito, sem soltar o tecido do meu suéter — ...conte-me a verdade. É tão difícil assim para você confiar em alguém? Droga, Draco...


— E se eu tiver tentado? O que vai mudar? Ele está morto de qualquer forma! — Eu esbravejei, visivelmente assustado com os rumos que a conversa estava tomando. Levei minhas mãos às dela e soltei-as do meu suéter, com brutalidade. — Morto, Pansy! Morto!


Pansy deu um passo para trás, derrotada. Sua expressão tornou-se uma massa confusa de ódio, tristeza e dor. Ela ergueu o rosto em minha direção – aquele rosto angelical -  mordendo o lábio inferior, que tremia novamente, mas não por prender o choro e sim por raiva.


— Sim, você tentou matar o velho. Tentou e não me contou nada. Escondeu isso de mim o tempo todo. Como pôde, Malfoy? Como eu pude... argh! — Pansy levou as mãos à cabeça, bagunçando os cabelos perfeitamente negros. Eu não conseguia dizer nada, era como se minha voz não existisse mais. Estava acorrentado, vítima das minhas próprias mentiras, alicerce frágil sob o qual havia construído todas as minhas amizades. E ela, ela... aquela que eu mais considerava no mundo, agora me odiava. Suspirei, derrotado.


— Eu precisava conservar a minha imagem, Pansy. Não podia deixar que os rumores se tornassem verdade... droga, você não entende.


— Realmente, eu não entendo. — Pansy gargalhou, parecendo descontrolada. — Não entendo. Em primeiro lugar, eu poderia esperar tudo de você, Malfoy... tudo. Mas nunca o vi como um assassino. Pensei que fosse diferente deles... aqueles capachos sem cérebro que somente rendem-se à vontade do Lord sem hesitar. E depois, — ela parou, para retomar o fôlego. Eu parecia ter me esquecido de como respirar. — você não deveria ter escondido isso de mim. Não de mim. Já te dei todas as provas de confiança que qualquer cara poderia esperar. Ah, mas você não é qualquer cara, não é mesmo? Você é Draco Malfoy, óbvio. Como eu fui imbecil. — A voz dela era irônica e cortante, e ela tornou a rir, agora mais controlada.


Tentei me explicar.


— Você está exagerando. O que eu fiz ou deixei de fazer não muda nada, aconteceria de qualquer forma. O Lord estava determinado...


— As juras de amor também não passaram de outra mentira? — Ela me interrompeu, com a voz baixa. — Foram apenas suas armas para conseguir o que queria? Para conseguir que eu te seguisse, totalmente cega pelos meus sentimentos? - Eu me aproximei dela, tomando suas mãos frias e segurando-as nas minhas. A única verdade talvez que eu já havia dito em toda a minha vida era o meu amor por Pansy e eu queria mostrar a ela que, além disso, nada mais importava. Contanto que eu pudesse a aconchegar em meus braços toda vez que chegasse em casa, no futuro, tudo estaria bem. Para sempre.


— Não Pansy, não. Eu te amo mais que a mim mesmo.  Eu morreria por você. Não me arrependo do que eu fiz. Queria apenas garantir prestígio ao futuro da família que um dia nós viremos a ser.


— Solte-me, Draco. — Ela se afastou, soltando suas mãos das minhas. — Não há amor sem confiança. Não há futuro quando um de nós não confia inteiramente no outro. O seu destino é ser sozinho, amargurado... já que é tão autossuficiente, não vejo como isso poderá ser problema para você. — Pansy soluçou, enquanto uma lágrima grossa escorria por sua face pálida. — Meu coração sempre foi seu, e sempre será. Mas parece que seu coração nunca foi inteiramente meu. Só consegue amar a si mesmo, Malfoy. -


Aquelas palavras me feriram mais que tudo. Naquele momento, um grande buraco negro e frio surgiu onde um dia já havia existido um coração pulsante e vívido. Foi como se eu retirasse meu coração de meu peito e entregasse a ela, em uma caixa. Ele era dela, sempre fora dela. Permaneci calado, totalmente apático e sem palavras. Já sabia o que viria a seguir, e tentava me convencer de que eu ainda não tinha acordado, de que tudo aquilo não passava de um pesadelo medonho.


— Draco... — Ela começou, contendo as lágrimas. Pansy era imensamente mais forte do que eu. — ... está tudo acabado. Não há mais nada entre nós a partir de agora. Se é que um dia já houve algo. — Deixou que um riso baixo e seco escapasse de seus lábios, enquanto eu sentia o sangue se esvair do meu rosto. Balancei a cabeça negativamente, totalmente incrédulo. Era uma brincadeira, e de péssimo gosto.


— Não, Pansy, não pode estar falando sério...


— Estou, acredite. Não quero que me procure mais, me ouviu? Assim como eu também não vou te procurar. Viva a sua vida egocêntrica e mesquinha, e deixe-me viver a minha. Em paz. Sei que vamos continuar nos vendo durante as aulas e as refeições, mas será só isso. Finja que eu nunca existi em sua vida, como você sempre fez. Ache uma idiota qualquer para saciar seus desejos de homem, como sempre fez. Esqueça tudo o que aconteceu entre nós. Afinal, foi apenas mais uma de suas mentiras... adeus. — Ela me lançou um último olhar, indecifrável, virou-se de costas e caminhou até a saída do Salão Comunal, sumindo pelos corredores. Por mais que minha alma estivesse dilacerada e minha dignidade estivesse em frangalhos, eu não chorei. Não se pode chorar quando não temos um coração. E eu perdi o meu no momento em que ela me disse adeus.


 






 


Cumpri as ordens que Pansy me dera. Não a procurei, assim como ela não me procurou. Cada momento que passei ao lado dela, cada doce sensação que estar perto dela me proporcionava, tornaram-se apenas lembranças, que assim como a daquele dia, eu não consegui apagar. Não consegui mais amar.  Morria toda vez que meus olhos encontravam-se com os dela durante os poucos momentos em que eu podia vislumbrá-la, numa admiração silenciosa que muito me fazia mal. Com o tempo e a distância, a dor tornou-se mais amena, quase suportável, mas meu sentimento por ela não diminuiu. Ele apenas adormeceu numa redoma existente dentro de mim, esperando que algum dia ela voltasse e o libertasse da prisão em que e o selei. Mas isso nunca aconteceu.


Tive notícias dela, é claro. Pansy nunca se casou, morava na luxuosa mansão de sua família, somente com sua sobrinha – filha da irmã morta durante um ataque de aurores - a qual criava como uma filha. Não vou mentir, dizendo que nunca pensei em procurá-la. Não só pensei, como me certifiquei de contratar um detetive que seguisse todos os seus passos, mantendo-me informado sobre tudo o que acontecia com Pansy. Sinto-me um rato, sujo, à espera que um dia ela retorne e me devolva a alegria. Astória apareceu em um momento de fraqueza. Acabamos nos casando e gerando Scorpius. Mas eu queria que tudo fosse diferente... ah, como queria! Infelizmente, pagamos pelos erros que cometemos. Perder aquela que era a minha razão de viver, mesmo quando o contexto de amor não passava de uma tênue e doce ilusão de uma mente jovem e despreparada, foi o preço que eu tive que pagar.


                                                                 ***


A porta do luxuoso escritório dos Malfoy se abriu, revelando um garotinho pálido e loiro que saltitou rapidamente até a cadeira onde o pai estava sentado, diante da escrivaninha, aparentemente escrevendo algo. O homem cobriu o pedaço de pergaminho amarelado no qual escrevia com as mãos, dando um sorriso gélido ao garotinho, que retribuiu, da mesma forma.


— Papai, nós já vamos? — Os olhos cinzentos do garoto faiscaram, lembrando a Draco ele mesmo quando tinha seus onze anos. Há anos seus olhos não brilhavam mais daquele jeito.


— Sim, já vamos. Mande sua mãe pedir ao elfo que leve seus malões para o carro, utilizaremos um meio de transporte trouxa hoje. — Confirmou Draco, de forma rude. Scorpius assentiu, retirando-se da sala logo em seguida, satisfeito em finalmente ir ao colégio onde todos os seus antepassados haviam estudado.


Draco esperou que o filho saísse da sala e levantou-se, deixando que um suspiro baixo escapasse de seus lábios. Tomou o depoimento que escrevia até alguns minutos atrás nas mãos, num ímpeto de raiva, amassou o papel frágil e o lançou sob as chamas crepitantes da lareira de mármore. O fogo consumiu por completo aquelas palavras. Mais uma vez, ele ocultou as verdades, estruturando sua vida sobre uma montanha instável de mentiras. Saiu da sala, encontrando Astória e o pequeno Scorpius a sua espera no Hall de entrada. Juntos, os três caminharam até o carro negro que os esperava do lado de fora, pronto para levá-los até a estação de King’s Cross, de onde o Expresso de Hogwarts partiria exatamente às onze. Draco Malfoy entrou no carro em completo silêncio. Quem sabe, talvez, ele a visse na plataforma nove ¾ , mesmo que de longe. Quem sabe, talvez, ela corresse em direção a ele e o abraçasse com força, dizendo que o pesadelo havia acabado e que finalmente poderiam ficar juntos. Quem sabe, talvez, ela o encontrasse, devolvendo a caixa onde jazia seu coração, que ela levara consigo naquele ultimo adeus. Quem sabe...




N.A.: Hey, pessoal, como vão? Essa é uma short que eu tinha escrito há algum tempo sobre o meu casal sonserino favorito, e que infelizmente a Tia Jô acabou separando. Nunca entendi de onde a Astória surgiu. Espero que gostem, e comentem, certo? Críticas também serão mais do que bem aceitas! E aproveito para agradecer a Artemis, minha beta, por ter tanta paciência comigo ultimamente. Abraços, Annelise.


N.B.: Que fic linda!!! Isso por que nem sou fã de Draco com Pansy... Lindo, lindo... Esse Draco aí é tudo de bom e se ele estiver precisando de um consolo... Adorei, querida!!! Parabéns! Comentem, pessoal! A autora merece e a fic está perfeita!

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Comentários (1)

  • MiSyroff

    Amor, ta tão sumida! Quero By Your Side e nem posso entra porque tá indisponivel :/ PS: Fic linda mesmo

    2011-11-19
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