Perda



A chuva caia fina e apenas alguns pingos mais grossos batiam na janela, desiguais. Lá fora era cinza e dentro, o quarto se encontrava escurecido, aquele clima que representa tão bem o vazio. Severus Snape estava encostado ao vidro desde que acordara. Depois daquele sonho não conseguira tornar a dormir. Mais uma vez imagens indesejáveis do passado retornavam a sua mente, como um disco quebrado que ninguém mais agüenta ouvir. Repetindo apenas para si mesmo.

Lá estava ele, com seus cinco, seis anos, o mais longe que sua memória permitia chegar. Os gritos da mãe e do pai eram tão constantes que tivera de habituar-se a dormir com o barulho. Eram tão normais, que, se cessassem poderiam significar algo pior. Enquanto discutiam, ao menos o menino sabia, estavam bem. Não se preocupava com o pai, que julgava o causador de todos os problemas. Tobias Snape era um homem agressivo, egoísta e esperava que o mundo à volta o servisse. Operário de uma fábrica, estava desempregado há tempo suficiente e não parecia mover-se muito para encontrar uma ocupação. Vivia de bicos e não raras vezes voltava para casa completamente bêbado, ocasiões em que se tornava ainda mais agressivo para com a esposa e o filho. O pequeno Severus se encolhia assim contra janela, mais ou menos como agora, tentando não ouvir.
Numa tarde foi assim, o rosto colado ao vidro, que viu pela primeira vez a garotinha de cabelos ruivos que brincava com a irmã perto do rio. A rua da Fiação, encardida e cinzenta, pareceu reluzir à presença dela. Severus Snape estreitou os olhos para vê-la melhor. Devia ter a sua idade, agora uns oito anos. Até os gritos da mãe e do pai pareceram se distanciar, como quando se está pegando no sono. Ela era o brilho e a alegria que ele não conhecia. Que talvez só conhecesse das flores. Tantas outras vezes voltou à mesma janela nestas ocasiões para observá-la ao longe, e ela representava uma fuga daquela realidade terrível, um vislumbre de cor naquele mundo cinzento. Gostava de pensar nela como uma flor, talvez porque fosse o que vira de mais bonito.Um lírio, talvez. Mas quando ela ia embora, só lhe restavam pétalas murchas e um vazio, imenso vazio daquela casa, da ausência de qualquer coisa.
Eillen Prince, a mãe, era bruxa e sempre dissera isso a ele com orgulho. Contava-lhe sobre seus anos em Hogwarts com o máximo de entusiasmo que sua personalidade permitia – o que não era muita coisa- mas mesmo assim, o menino imaginava que este seria enfim seu refugio. Sonhava desde sempre com a chegada de sua carta da escola. Orgulhava-se mais do que tudo de sua condição de bruxo e se apegava a ela como única saída para aquela vida desagradável. Sua única certeza era essa. Aprendera a ler cedo com Eillen, e buscava os livros antigos da mãe para estudar. Queria ser mais que um simples aluno. Queria ser excepcional em alguma coisa. Pertencer a um mundo onde seria enfim reconhecido por seus talentos. Ah, era talentoso já tão cedo. Seus poderes se manifestavam desde que se conhecia por gente e já conseguia controlá-los, de certa forma. Estava inteirado das leis e regras do mundo bruxo, portanto de vez em quando, arriscava-se a praticar alguns feitiços escondidos sob a desculpa de ainda não estar na escola. Em outros momentos eram apenas alguns desejos que se realizavam. Particularmente quando sentia raiva. Houve uma vez em que sentiu tanta raiva do pai, numa das noites em que chegou bêbado, que fez uma prateleira cair sobre sua cabeça. O homem sofreu um grave ferimento.
-Eileen! – a voz rouca, grave inconfundivelmente irritante- Eileen! Foi você, não foi, moleque?! –berrava o sr. Snape- Eu tenho certeza que foi o menino! Que ele está começando a ser estranho como você! –dirigia-se à esposa.- Se você continuar colocando essas idéias na cabeça desse menino, eu acabo com você! Você está me entendendo?! E você menino, se não parar com essa feitiçaria vai se arrepender. Por você e por sua mãe!
- Pare com isso!- a mulher gritava- Deixe ele em paz! Ele não sabe o que está fazendo!
O homem riu, uma risada que dava náuseas ao pequeno Severus.
- Ah! Não sabe o que faz! É claro que sabe! Esse menino é esperto. Pelo menos isso herdou de mim. Escuta uma coisa, moleque! –agora o sr. Snape apertava os pulsos do menino com tanta força que parecia quebrar seus ossos pequenos. Severus sentia medo, mas mais que isso sentia ódio. - Se você fizer isso de novo, você pode desistir de ir pra maldita escola de bruxos, está me entendendo?!
- Você não pode fazer isso. - a frase saiu como se não fosse ele que a dissesse e seu tom era de desprezo, embora lá no fundo, Severus sentisse medo, muito medo de perder a única certeza que tinha em sua vida.
O homem riu novamente:
- Ah! Não posso?! Mas é claro que posso!- e agora os dedos dele em volta dos pulsos do menino pareciam perfura-lhe a carne- Eu sou seu pai mesmo que você não goste disso! Mesmo q você seja uma aberração como sua mãe!
- Solte ele! – Eillen atirou-se sobre o marido, mas com força ele repeliu-a, jogando-a longe. A mulher, sem pensar mais, sacou a varinha e apontou para o marido:
- Estupefaça!
Imediatamente ele largou o garoto. Agora estava mais furioso do que jamais estivera até então.
-Vai pra dentro, filho! –gritou a mulher. Severus exitou.- Vai pra dentro agora!
Então ele correu pra seu canto à janela, encolhido, abraçando os próprios joelhos, ouvindo os gritos da mãe, ouvindo o pai insultá-la, ouvindo o pai maltratá-la, ouvindo coisas muito piores...Lágrimas rolavam pelo seu rosto e era incapaz de voltar e salvá-la, tinha medo e odiava-se por isso. Mas acima de tudo odiava àquele homem, aquele trouxa maldito – era o que pensava agora, apertando os joelhos contra o corpo.- Sabia que sua mãe tinha poder para evitar que ele a maltratasse e que ficava ao lado dele por escolha própria. Seria isso amor?Então o amor era uma coisa ruim.Fechou os olhos bem forte e pensou em Hogwarts e pensou na garota de cabelos ruivos correndo, e essas imagens o salvaram mais uma vez do desespero.

Não era muito diferente de agora, a sua posição à janela. Mas Snape tinha quase quinze anos, a serem completados em uns quinze dias. Eram sete da manhã da véspera de Natal, o clima desagradável, a chuvinha fina e o tempo branco de que ele até gostava, mas ampliavam sua melancolia. Sempre refletiam seu estado de espírito. Não queria falar com ninguém. Em breve acordariam e iriam todos para suas casas visitar suas famílias e festejar. Desta vez ele ficaria em Hogwarts. Aos poucos, seus colegas de quarto começaram a despertar e se mover. Snape deitou-se e entrou em baixo das cobertas, fingindo dormir.
- Vocês souberam da mãe do Snape?
- Pois é, cara...Eu fiquei até com pena dele desta vez...Perder a mãe e perder no Natal ainda por cima...
- Fala baixo, ele pode acordar...Bom, eu vou tomar café, tenho que ir embora logo.
- Espera aí que eu também estou indo!
As vozes foram se afastando e Severus pôde ouvir ainda comentarem mais alguma coisa sobre ele e sua vida. “Idiotas” – pensou. -“Acham mesmo que eu estaria dormindo com o barulho que fazem?!”
Embora quisesse evitar os olhares e perguntas dos curiosos, teve vontade de sair daquele quarto. Estava lhe lembrando por demais a casa de sua mãe estar assim à janela, principalmente quando avistou mais uma vez a garota ruiva, agora crescida. Lily Evans. Outra vez um vislumbre de luz naquelas trevas. Sempre. Nunca lhe pareceu que ela, seu refugio, pudesse ser mais importante do que agora. Se ao menos pudesse falar com ela, sentiria alguma vontade de continuar vivendo. Ela estava se preparando para partir e passar o Natal com a família Evans, com a irmã idiota, pensava ele, e ele ficaria ali. Nem devia estar sabendo do que ocorrera, senão...senão teria vindo falar com ele. “Será que teria?”- pensou.- “Deve estar ocupada demais com seus outros amigos”. Observou a garota sumir para dentro do castelo, como se tivesse esquecido algo.
Levantou-se então, já desesperançoso. Vestiu qualquer roupa velha e surrada. Queria sair dali, queria respirar o ar frio de lá de fora, queria correr e desaparecer. Passou pela Sala Comunal da Sonserina sem olhar pra nenhuma das poucas almas vivas ali presentes, atravessou a saída e subiu pelas escadas, passou pelos salões, sempre olhando em frente, a cabeça ligeiramente abaixada, os cabelos negros e oleosos caindo por sobre o rosto. Saiu do castelo e sentiu o ar gelado perfurar-lhe os pulmões. Deu uma profunda inspirada, como se pudesse limpar-se da dor que sentia. Continuou em sua caminhada apressada até sumir das vistas das pessoas, em direção à Floresta Proibida. Ali, perto da entrada, atirou-se ajoelhado à uma árvore onde costumava ficar quando queria estar só e chorou. Chorou a morte da mãe e a falta que ela faria.
Eillen Prince era uma mulher reservada e não muito amorosa. Estava sempre cansada e abatida. A melancolia era seu estado permanente. Não era muito boa em demonstrar seus sentimentos, às vezes parecendo um tanto fria, mas sempre defendera-o e incentivara-o e ele sabia que ela o amava muito. Costumava chamá-lo- e a essa lembrança sentiu uma fisgada maior de dor- de “meu Príncipe”. Era as únicas vezes em que ele se sentia especial quando criança. Ela o fizera acreditar que ele era especial, como se visse nele a possibilidade de realizar, talvez, seus próprios sonhos. Como se ele pudesse ter o futuro brilhante que ela perdera em prol daquele casamento que a destruirá aos poucos. Morrera doente de doença trouxa. Snape sabia que era proveniente daquela tristeza. Humilhada, maltratada e por fim abandonada pelo marido, que arranjara outra além das outras que sempre tivera. Desde que Tobias Snape saíra de casa, há dois anos, Eileen ficara sozinha, extremamente deprimida, suas únicas alegrias eram as visitas do filho nas férias e feriados. Nestas ocasiões, Severus, pela primeira vez, sentia-se feliz de estar naquela casa porque estava a sós com sua mãe, apesar das más recordações que o local trazia. Feliz porque o “maldito trouxa” não estava. Ele morrera tão logo a abandonara, num acidente, ao menos era o que Severus sabia, mas sempre desconfiara de que sua mãe pudesse estar envolvida por meio de magia e se fosse verdade não a culparia nem um pouco. Mas nunca perguntou nada. Já bastava que ele não existisse. Ela estava sempre abatida. Um ou outro traço de qualquer sentimento positivo apareciam em seu rosto quando o filho lhe contava de sua vida em Hogwarts, de seus feitos e êxitos. Não demorou muito, enfim, para que adoecesse de vez e agora...
Agora Snape estava sozinho e não havia mais ninguém no mundo que se importasse de fato com ele, que o amasse também e que ele amasse, exceto...Não! Embora Lily pudesse talvez amá-lo como amigo, embora isso pudesse confortá-lo, ele sabia que nunca estaria completamente feliz se não pudesse de fato...E talvez nem como amigo o amasse de verdade! Talvez...
Seus pensamentos foram interrompidos pelo barulho de passos. Ele virou e observou vir correndo afobada, os cabelos cor de acaju esvoaçantes assim como o cachecol vermelho e dourado da Grifinória. Sentiu seu estômago afundar e o coração pular.
-Sev!- ela vinha gritando em direção a ele- Sev!

Compartilhe!

anúncio

Comentários (0)

Não há comentários. Seja o primeiro!
Você precisa estar logado para comentar. Faça Login.