Sonata



O menino estava encurvado na poltrona, os joelhos encolhidos junto ao peito, os olhos perdidos em algum ponto da janela. Sentia dor e não queria se mexer. Todo o seu braço esquerdo estava enfaixado. Tentava permanecer imóvel, concentrado nas espirais que a poeira formava na luz que incidia sobre o piso de madeira. Através da janela, ele via o céu cinzento, nuvens se elevando verticalmente, parecendo tocar o azul, anunciando uma tempestade.

Remus Lupin tentava ignorar tudo ao redor, mas também não queria se concentrar no pensamento que lhe ocorria repetidamente, não importava quantas vezes tentasse afastá-lo. Porque, bastava apenas um minuto de distração, e sua mente o transportava para a floresta lá fora, além do quintal da casa, o chão coberto de folhas secas e aquele cheiro fresco no ar, o perfume da terra molhada de chuva da noite anterior.

Seu dedo deslizou sobre as ataduras. Já não doía tanto. E quase não tinha doído na hora. Talvez porque Remus estivesse muito apavorado no momento. Lembrava-se com clareza do vermelho. A cena inteira lhe parecia púrpura. Mas a dor... não, não havia dor. Eram apenas os gritos distantes de uma discussão e aquelas lentas cenas do menino Remus abrindo uma gaveta e procurando, entre os papéis, uma adaga escondida ali há vários dias. A que havia roubado da biblioteca, de dentro de um dos armários trancados.

Afundou a lâmina no braço, no exato ponto onde começava a cicatriz feita anos antes. Deslizou-a vagarosamente ao longo da linha esbranquiçada. Sem dor. Apenas o calor do sangue escorrendo sobre sua pele. O monstro lhe devia isso. Era o pagamento por não ter terminado seu serviço há três anos. Tinha que terminar agora.

E então o escuro. Talvez estivesse morrendo. Era isso, ninguém teria mais que sofrer por sua causa. Nem ele. Mesmo que para matar o monstro precisasse matar a si mesmo.

Não morreu. Nem foi tão grave o ferimento. A perda de sangue foi substancial, mas apenas alguns dias depois lá estava ele, em casa, e as únicas lembranças daquele ataque de fúria eram as faixas em torno do braço e a dor. E as vozes. Fechou os olhos. Sentia-se quente. Talvez estivesse com febre.

Brincava com o cadarço do tênis entres os dedos pequenos, tentando ignorar completamente os sons que transpunham as finas paredes da casa e chegavam a ele. Gemidos abafados, choramingos, vozes firmes discutindo, portas batendo. E o som do vento sacudindo as cortinas, fazendo com que sua incidência luminosa no chão mudasse constantemente de formato.

Por que nunca conseguia fazer nada direito?

- Como se sente? – Remus ergueu os olhos. Seu pai estava na porta.

Balançou a cabeça. Estava bem. Tinha que estar. John Lupin era bem mais velho que a esposa. Tinha os cabelos negros salpicados de mechas brancas e cinzentas e os olhos castanhos, muito pequenos, moviam-se rapidamente atrás de óculos redondos de aros finos.

- Espero que tenha tido bastante tempo para pensar na besteira que fez – falou ele, caminhando vagarosamente até apoiar as mãos no encosto de uma poltrona. Então deu a volta no móvel e se sentou.

Remus suspirou.

- Pensei.

O senhor Lupin se sentou, entrelaçando os dedos compridos sobre os joelhos. Remus não tinha dedos assim. Seus dedos eram curtos e delicados, como os de sua mãe.

- E está pronto para ouvir que vai para Hogwarts sem começara gritar? – indagou.

- Eu não entendo – Remus afundou na poltrona. – Não posso ir para Hogwarts. Nunca me aceitariam.

- Bem, te aceitaram, o que pretende fazer quanto a isso?

Remus ergueu as sobrancelhas.

- Não posso ir – insistiu, balançando as mãos exasperado.

- Você pode – John se inclinou, tocando o ombro do filho. – Podemos fazer um arranjo, você vai ter um lugar seguro para ficar durante a lua cheia.

- E como exatamente os pais dos outros alunos seriam convencidos a aceitar que seus filhos estudassem com um lobisomem? – resmungou o menino.

O pai lhe lançou um olhar significativo. Não disse nada, mas Remus entendeu. Eles não saberiam Ninguém saberia.

- Por que...? – ele se aprumou no acento. – Achei que você e mamãe nunca permitiriam, mesmo que alguma escola me aceitasse.

John Lupin picou. Então se levantou. Um longo silêncio tomou conta do cômodo. Olhou para o teto.

- Se continuar assim sua mãe vai acabar enlouquecendo – falou. Então abaixou os olhos para o filho: – Mas, se ela esquecer o que passou, talvez possa ficar boa.

Remus fechou os olhos. Esquecer? Quantas vezes não tinha pensado nisso? Mas não era possível esquecer, as luas cheias não iam parar de vir quando ele esquecesse que era um lobisomem. Ou quanto sua mãe esquecesse.

- Sei que vai ser muito difícil – começou John –, mas eu vou estar sempre com você, vou tentar fazer tudo para compensar. Você é um menino forte. Você...

- Eu entendo, pai – interrompeu Remus. Tinha entendido. Ele não podia deixar de ser um lobisomem. Mas podia deixar de ser filho. Se ela esquecesse dele, pararia de sofrer. E ele poderia, mesmo de longe, vê-la feliz novamente, sorrindo, gostando da vida. – Também quero ajudar a mamãe. Ela está doente por minha causa, não está?

- Não – o pai se abaixou junto ao menino. Passou o braço ao redor de seus ombros. – Ela está doente porque te ama muito, tanto que não pode aceitar que uma coisa tão terrível tenha acontecido a você. Ela precisa esquecer o que aconteceu.

- Faça com que ela esqueça – murmurou Remus. – Faça isso. Eu vou para Hogwarts.

Remus achou que fosse a coisa certa a fazer. Ela se esqueceria dele, e não sofreria mais. Simples assim. Só muito tempo depois, chegaria à conclusão de que não era nada simples. Não existem lembranças que devam ser esquecidas.

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Come and see me
Sing me to sleep
(Venha me ver
Cante para que eu durma)

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Levantou a cabeça alguns centímetros do colchão pressentindo uma aproximação. Ouvia seus passos no piso de pedra, calmos e discretos, como se ele estivesse tentando passar despercebido. Remus esboçou um sorriso. Era impossível para Sirius Black passar despercebido, mesmo quando queria.

- O que foi, Almofadinhas?

Inclinou a cabeça para trás, escorregando o pescoço pela beirada da cama, e a imagem invertida de Sirius entrou em seu campo de visão. O garoto fez uma careta de frustração ao perceber que fora descoberto. Andou mais alguns passos e deixou o corpo cair no tapete vermelho. Tinha os cabelos molhados, deslizando como uma cascata nas costas da camisa branca.

- O que está fazendo aqui dentro sozinho? – perguntou, os olhos cinzentos vagando rapidamente pelo dormitório, como se quisesse formar em sua mente uma imagem precisa da disposição dos móveis.

Remus fechou o dicionário de Runas. Sirius sabia muito bem o que estava fazendo. Sabia o que sempre fazia quando procurava um lugar para ficar sozinho.

- Estava estudando - respondeu, se virando na cama para endireitar a cabeça e voltar a ver o mundo em sua posição usual.

- Runas? – Sirius fez uma careta.

O outro garoto balançou a cabeça positivamente.

- Estou fazendo uma revisão para o teste surpresa.

Sirius bocejou alto, abrindo a boca ao máximo e esticando os braços. Então olhou para o amigo, um sorriso bobo se formando em seus lábios.

- Como sabe que vai ter um teste surpresa?

Remus não respondeu. Ergueu o corpo para ficar sentado na cama, a coberta se enchendo de dobras sob seu corpo. Apoiou o livro nas pernas cruzadas e procurou a página onde tinha parado. Entreouviu uma risada.

- O que foi? – voltou a olhar para Sirius. Ele sacudiu a cabeça e fez um gesto para que Remus não ligasse.

O garoto virou o rosto para o outro lado, mirando o céu através da ampla janela do dormitório. Estava aberta, com as cortinas presas às laterais. Mesmo assim, o quarto parecia abafado. Meio que inconscientemente, seus olhos voltaram a procurar Sirius, fitando os pêlos claros do braço com que apoiava a cabeça, enquanto enroscava os dedos nos fios do tapete vermelho. Os cabelos molhados tinham feito uma marca escura na camisa. Sua pele bronzeada brilhava sob a luz. E aquela cor nas pupilas. Cinza. Mas não um cinza qualquer. Havia algo de límpido nelas, como se fossem um espelho turvo que, ao mesmo tempo em que reflete, produzia distorce. De fato, Almofadinhas parecia ser capaz de ver o mundo em toda a sua grandeza, mas à maneira distorcida de seu espírito.

- Não sei como consegue estudar – ele resmungou. – Está quente demais. Deve ser o dia mais quente do ano.

Remus piscou, despertando do transe. Sacudiu a cabeça.

- Sim, está – murmurou. E, como não soubesse exatamente o que fazer, desabotoou os pulsos da camisa e começou a dobrar as mangas. Sirius pareceu se divertir com a cena. Ele próprio tinha as mangas puxadas até os cotovelos, o tecido embolado junto à dobra do braço.

Remus apoiou a mão no colchão e inclinou o corpo para trás. Ele tinha razão, estava quente. E o próprio ar parecia ter sido contaminado com a letargia do calor. Não havia vento, brisa, nenhum ar entrava pela janela, não havia nenhum único movimento no tecido leve da cortina. Suspirou. Se pudesse ficar parado, concentrado em uma coisa qualquer, sem pensamento, sem corpo, talvez pudesse vencer aquela sensação sufocante. Mas a imagem de Almofadinhas estirado no tapete não o abandonava.

- Na noite passada, sonhei que estava em casa – falou Sirius, num tom brando, como se estivessem conversando sobre aquilo há horas.

- À vezes sonho que estou em casa – sorriu Remus. – O que tem isso de mais?

- A casa estava vazia – Sirius ergueu-se sobre os cotovelos, apoiado o rosto na palma da mão. – E velha. Como se ninguém morasse lá há muito tempo.

Sirius se ajoelhou no tapete e se aproximou do amigo. Instintivamente, Remus inclinou o corpo para trás e ergueu o dicionário de Runas na altura do peito, sustentando-o ali como uma barreira. Sirius levantou as sobrancelhas e voltou a se afastar.

- E você estava tocando piano – completou.

Os lábios de Remus se separaram sem que se desse conta.

- Tocando piano? – repetiu.

Sirius confirmou.

- E o que eu estava tocando? – indagou o outro, querendo crer que Sirius estava fazendo uma brincadeira.

- Uma marcha fúnebre – ele respondeu, sério. Não parecia que estivesse prestes a anunciar que estava brincando. Na verdade, parecia muito determinado enquanto falava. Determinado como só Sirius Black poderia ser.

- Eu não toco piano – falou Remus, categoricamente. Não era justo. Apertou os dedos em torno do livro. Sirius mantinha os olhos cinzentos presos em si. Remus se sentiu terrivelmente idiota com a situação. – E não conheço nenhuma marcha fúnebre.

Sirius sorriu, como se já esperasse precisamente por aquela resposta.

- Não importa. Foi um sonho.

Remus passou a mão pelo queixo. Não tocava piano. Há anos. Desde que... bem, há vários anos. E definitivamente não lembrava do que costumava tocar. Era muito jovem na época, quando sua mãe o capturava das corridas em torno da casa para sentá-lo diante do teclado do piano, “como um homenzinho”. E, “como um homenzinho”, ele fingia que não achava aquelas aulas uma perda de tempo, deixava que ela posicionasse suas mãos sobre as teclas e que guiasse seus dedos, apontando na partitura as notas musicais. Remus, desajeitado, dificilmente acompanhava a velocidade da música. E frequentemente se distraia, olhando para a ampla janela junto ao piano, encantado com a paisagem, com o movimento suave do tecido da cortina, com os reflexos da luz na vidraça. Naquele tempo, ele não sabia que não teria muitos outros momentos como aqueles com ela.

- Eu já toquei piano – falou Remus, tentado desfazer o silêncio que se impunha no dormitório.

E se simplesmente mudasse de assunto? Ou poderia dizer que tinha que voltar a estudar. Besteira. Sabia que Almofadinhas arranjaria um jeito de lhe arrancar as informações que quisesse. Sempre tinha sido assim. Remus podia resistir, dar voltas, hesitar. Mas no fim sempre tinha a necessidade de falar, como se aquele fosse o pagamento por ter aceitado a amizade de Sirius Black. Talvez fosse isso mesmo. E talvez aquela sinceridade forçada devesse fazer parte de suas outras amizades. Só não conseguia entender por que Sirius estava interessado naquele assunto.

- Aposto que você tocava bem - falou Sirius, antes de se levantar e sair andando, sacudindo os cabelos molhados enquanto espalhava as coisas sobre sua escrivaninha a procura de algo.

Remus voltou a abrir o livro e escondeu o rosto. Suspirou, condenando a si mesmo por dar tanta atenção aos comentários sem propósito de Sirius. E desamarrou a gravata, porque já estava transpirando com o calor. Já deveria ter aprendido. Sempre que parecia que Almofadinhas ia finalmente falar alguma coisa importante, acabava vindo uma bobagem sem importância nenhuma. Passou a língua pelos lábios ressequidos.

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Come and free me
(Venha e me liberte)

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- Aluado - ouviu o chamado. Demorou algum tempo para resolver se devia ou não responder. Levantou o rosto. Sirius puxava o pente com violência, tentado fazê-lo correr pelos cabelos embaraçados.

- Mas será possível que você não consegue nem pentear seu próprio cabelo? - sorriu Remus, deixando o livro de lado e se levantado da cama. - Sente-se - ele indicou uma cadeira a Sirius, que se sentou, no rosto uma expressão de contrariedade.

- Eu tento – resmungou, passando o pente ao amigo. - Como as garotas conseguem fazer isso todos os dias?

- Elas não deixam os cabelos virarem uma massa cheia de nós, por isso não é tão difícil - Remus puxou o pente com força, ao que Sirius reclamou com um ganido baixinho.

Remus pensou em dizer qualquer coisa sobre aquele ser o preço a pagar por ele ser descuidado, mas desistiu de fazer qualquer comentário. Concentrava-se em dividir o emaranhado de fios negros em mechas distintas que pudesse desembaraçar uma a uma. Não estava com pressa. Deslizava o pente devagar e várias vezes, até se convencer de que a mecha estava livre de nós. Sirius continuava resmungando que ia cortar o cabelo. Uma mentira. Ele adorava aquele cabelo. Remus entrelaçou os dedos nos fios negros, observando as mudanças de cor provocadas pela luz.

- Aluado... - murmurou Sirius e Remus olhou para frente, vendo seus reflexos no vidro da janela. Ele tinha os olhos fechados, a expressão grave e concentrada como raramente já vira em seu rosto.

- O que foi, Almofadinhas? - perguntou.

- Eu deveria ter pedido que você fizesse isso antes - Sirius desfez a seriedade com um sorriso.

Você pode estar em qualquer lugar quando tudo começa. Você pode nem perceber que as engrenagens foram postas em movimento. Não importa, mesmo sem você saber, já está acontecendo. E foi isso que Remus sentiu quando Sirius tomou o pente de sua mão e agradeceu. Aquele rosto claro e luminoso. Sirius capturou sua mão no ar, comprimindo seus dedos entre os seus, não dolorosamente, mas com uma firmeza determinada.

- Você tem mãos de quem tocaria piano - avaliou o garoto, os olhos fixos na mão de Remus, seus dedos curtos, as unhas brilhantes cortadas há poucos dias. Então voltou os olhos para suas próprias mãos, os dedos grossos e as unhas irregulares. - Não sei como minha mãe achou que eu pudesse aprender - resmungou, num tom que vagava entre ironia e mau humor.

- Você já tocou? - Remus subitamente esqueceu que estava envergonhado e encarou o amigo. Tentou imaginar Sirius sentado diante de um piano. Não conseguiu conter a vontade de rir.

Sirius contraiu o rosto numa careta.

- É, você ri porque não foi com você - e fechou os olhos, como se uma lembrança muito desagradável tivesse lhe ocorrido.

- Minha mãe também me ensinava - comentou Remus, tentando fazer parecer que aquela era apenas uma afirmação aleatória. - Também dizia que eu tinha nascido com mãos para isso.

- Acho que ela estava certa - Sirius finalmente libertou os dedos do colega.

- Mas não me lembro mais como se toca. Nem uma única nota.

- Isso não é o tipo de coisa que se pode esquecer.

Remus abaixou a cabeça. Era uma coisa dolorosa de se ouvir. Porque ela provavelmente não se lembrava. Mas ele sim, teria que viver carregando não apenas aquilo, mas todo o resto do pesadelo que fora sua vida em família nos três anos antes de ir para Hogwarts. Abriu os olhos o máximo que pôde, tentando evitar que qualquer lágrima escapasse.

Foi quando sentiu o calor em torno do pescoço, o peso de dois braços sendo jogados sobre seus ombros. Sentiu outra vez a textura do cabelo de Sirius, agora tocando seu rosto, e sua respiração em seu pescoço, o ar quente aumentando sua sensação de calor.

- Obrigado, Aluado.

Remus inclinou o rosto para frente. Sentiu uma lágrima rolar rapidamente por sua bochecha, em direção ao queixo, e ir se depositar entre as dobras da manga da camisa de Sirius, fazendo um pequeno círculo escurecido no tecido branco.

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Hold me if i need to weep
(Abrace-se se eu precisar chorar)

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Professor R. J. Lupin. Remus mirou as iniciais na mala de couro gasto. Esfregou os olhos, estava exausto. Olhou para a mesa, onde dezenas de pergaminhos se empilhavam. Ainda segurava a pena sobre um deles. "Maneiras de se reconhecer um lobisomem". Claro, por que Severus Snape perderia qualquer chance que tivesse de lembrá-lo disso?

A porta da sala dos professores estava aberta, mostrando o longo corredor deserto. A luz azulada entrava através das janelas amplas. Engraçado como os sentimentos eram capazes de prender uma pessoa de tal modo que ela nunca conseguia deixar alguns momentos de sua vida. Severus ainda estava lá, naquele corredor, erguendo a varinha na direção de Sirius e James.

Ele mesmo tinha que controlar a si mesmo quando andava por aqueles corredores, imaginando até quando ele poderia fugir da verdade, a constante lembrança daquelas palavras em sua mente. "Parece quase impossível que Black possa ter entrado na escola sem a ajuda de alguém aqui dentro". Largou a pena sobre os pergaminhos, e a tinta escorreu da ponta, fazendo um borrão vermelho a medica que se entranhava nas fibras. Ouviu o barulho do vento. Um arrepio.

Remus nunca quisera apontar culpados. Talvez porque, quase sempre, acabasse chegando à conclusão de que ele mesmo era o culpado. No início, essa culpa não era consciente. Ele apenas sabia que nunca teria certas coisas, não ele. Não seria chamado para estudar numa escola de magia. Não aprenderia a voar de vassoura. E também achava que não merecia a casa onde vivia. Foi nessa época que deixou de comparecer às refeições. Preferia comer no quarto. E evitava circular pelos corredores quando sabia que poderia encontrar alguém. Ficava quase todo o tempo trancado, distraído com os livros que seu pai lhe trazia. Vivia naquela casa como um fantasma, algo invisível e inalcançável. E, mesmo quando passava diante das pessoas, sentia que elas o ignoravam. “Mamãe está doente”, Remus ouvira seu pai dizer, muitas e muitas vezes, como que pedindo desculpas. Não tinha dito nada além disso. E o pequeno Remus sabia que ela estava triste, e já tinha percebido que isso poderia ser pior que uma doença.

Mais tarde, quando percebeu que estava recebendo muito do que achava que não merecia, passou a e procurar outras culpas. "Remus é um bom amigo". Mas amigos não deveriam esconder aonde iam nas noites de lua cheia. Amigos não deviam inventar desculpas para os cortes que apareciam em seu rosto, ou para o ar adoentado que tinha logo após reaparecer.

Abriu a maleta e afastou os livros para abrir espaço para colocar os pergaminhos. Talvez devesse dormir um pouco antes de continuar. Fechou a maleta e o mecanismo de tranca fez um som que ecoou nas paredes da sala vazia. Passou através da porta e puxou as vestes para junto do corpo. Os archotes nas paredes tinham sido apagados pelo vento e apenas a luz prateada das estrelas iluminava o corredor vazio.

Parou diante de uma janela gradeada, a luz traçando listras brancas e cinzentas em seu rosto. Lá estava ela, a lua, se desenhando no céu pela metade, como se alguém tivesse lhe arrancado um pedaço. Talvez fosse um sorriso. Remus piscou. Um sorriso que o espreitava do alto, com seus dentes prateados se arregalando no céu. Um sorriso de escárnio. Como se dissesse “eu sempre vou voltar”. E sempre voltava, redonda e brilhante.

Desviou os olhos. Porque subitamente teve a sensação de que não era exatamente sobre a lua que estava pensando. Estava parado no corredor escuro quando percebeu que, como Snape, também estava preso. E era por isso que não queria acreditar que o fugitivo Sirius Black poderia estar entrando na escola pelos mesmos caminhos que haviam percorrido juntos, os túneis e passagens secretas, os caminhos ocultos formados por aquelas paredes.

Ele simplesmente não queria acreditar. E percebeu que sentia raiva. Desde criança, aprendera que não deveria ter raiva. Claro que não podia evitar sentir raiva de alguma coisa, mas Remus tentava não deixar que esse sentimento adquirisse importância em sua vida. Não queria ter aquela marca nele. Não mais uma marca além das tantas que já tinha.

Mas sentia raiva, uma raiva impossível de ignorar. Não era tão diferente assim de Severus no fim das contas. Estava preso dentro de si mesmo, encerrado nas paredes do castelo, no passado.

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Maybe it's not the season
Maybe it's not the year
Maybe there's no good reason
(Talvez não seja a época
Talvez não seja o ano
Talvez não haja nenhuma boa razão)

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Remus hesitou em abrir os olhos. Sabia que estava acordado. E sabia que já era de manhã. Mas não entendia por que não sentia as outras coisas que costumava sentir quando despertava após uma transformação - dor, vergonha, medo, frio. Estava aquecido e não sentia o rosto comprimido contra o chão. Talvez ainda estivesse sonhando. Não, ele nunca tinha sonhos nas noites de lua cheia. Mexeu-se levemente. Sentiu seu braço se encostar em algo quente. Abriu os olhos, assustado.

Fios negros muito finos cobriam seu rosto, como uma teia brilhante. Suas mãos se fecharam sobre uma coberta colorida. Não tinha trazido uma coberta do dormitório. Nunca trazia nada, sabia que o lobo não deixava nada que perpassasse seu campo de visão inteiro. Ouviu um suspiro.

- Fique quieto, Aluado, estou tentando dormir...

Remus se ergueu, ficando sentado. Ao seu lado, Sirius dormia, os cabelos negros espalhados em todas as direções. Olhou ao redor. Não havia dúvida de que estava na casa dos gritos. O que Sirius estava fazendo lá?

- Sirius... - murmurou. Não houve reação. Tocou seu ombro de leve. Sirius apenas se encolheu mais, virando-se para o lado de Remus, o rosto descansando sobre os braços, como um cão se aconchegando para dormir. - Sirius, acorde - insistiu.

Remus voltou a se deitar. A expressão serena do amigo adormecido o fez desistir de tentar fazer perguntas. Será que não sabia que era perigoso entrar na Casa dos Gritos quando Remus estava lá? Ia ter que lhe dar um sermão sobre isso mais tarde. Fechou os olhos. E se tivesse machucado Sirius?

Voltou a se levantar, examinando o outro atentamente. Não, ele não parecia ferido. Mas as vestes apresentavam vários rasgos, como se alguém as tivesse puxado com força com força em várias direções, desfazendo costuras e arrancando botões. Sirius se mexeu e então abriu os olhos. Não olhou ao redor, não pareceu estranhar o fato de acordar no chão da casa dos gritos. Apenas olhou para Remus, mal-humorado.

- Como eu posso dormir com você me observando desse jeito? - resmungou. Então voltou a virar para o outro lado.

- Sirius! - chamou Remus, sentindo-se bobo por estar tão confuso. Inclinou-se sobre o amigo. Sirius abriu os olhos vagarosamente e o encarou. Por impulso, Remus se afastou, voltando a endireitar o tronco. O outro não parou de fitá-lo, os orbes cinzentos percorrendo seu rosto.

- O que foi? - perguntou Sirius, a voz pastosa de sono.

- O que... errr... o que você está fazendo aqui? - Remus olhava para o chão. Uma espessa camada de poeira cobria a madeira. Havia pegadas por toda parte - de sapatos, de patas de lobo e... O rapaz piscou. E pegadas que não tinham sido feitas nem por sapatos nem por patas de lobos.

- Vim dormir um pouco aqui no chão, achei que minha cama estava confortável demais - ironizou ele, antes de bocejar largamente. Os olhos de Remus voltaram a mirá-lo, ao que Sirius suspirou e falou: - Passamos a noite aqui. - E, ao que o outro abriu a boca para esbravejar algo, completou: - Transformados em animais.

As palavras ficaram presas na garganta de Remus. Apoiou os pés no chão e ergueu o corpo, num movimento ágil. Sentia-se tonto. Deu apenas alguns passos e parou, recostado numa parede. Sirius tinha se sentado e parecia muito preocupado em verificar o estado de suas vestes.

- Vocês entraram aqui durante a noite, transformados em animais - Remus repetiu, bobamente, olhando para o chão. Levou as mãos às têmporas. Não sentia dor. Não estava machucado como sempre ficava após uma noite de lua cheia. Mesmo assim, sentia-se como se estivesse prestes a vomitar.

- Foi fácil. Claro que sabíamos que você não ia concordar, então descobrimos sozinhos como passar pelo salgueiro e viemos - falou Sirius, com simplicidade. Tinha ficado de pé e atirara longe a capa negra inutilizada. O restante das vestes parecia bem, embora ele tivesse certeza de que madame Malkin ia fazer muitas perguntas quando as enviasse para serem consertadas.

- Ah, claro - Remus riu. - Vocês resolveram vir de surpresa porque eu, obviamente, não concordaria.

- Obviamente - repetiu Sirius.

- Porque eu poderia simplesmente ter arrancado a cabeça de um de vocês assim que cruzassem aquela porta - continuou o garoto, com uma expressão divertida. Seus olhos brilhavam na direção do amigo, que apanhava o cobertor do chão.

- Bom, não pensamos que isso fosse acontecer - Sirius deu de ombros. Aquele sorriso enviesado parecia mal colocado no rosto de Remus, como se o fato de ele estar ali desrespeitasse alguma lei natural.

- Vocês não pensaram - Remus fechou os olhos, rindo para si mesmo. - Vocês não pensaram - repetiu.

Sirius ergueu as sobrancelhas. Não sabia que Remus se comportava daquela maneira estranha após uma transformação. Ele ria baixo, mas descontroladamente, a cabeça inclinada para trás, os olhos fechados.

- Não pensamos - reiterou, incerto do que pensar a respeito da reação do amigo.

Remus parou de rir. Seu rosto se fechou numa expressão decidida. Os olhos se abriram, encarando Sirius com raiva. Afastou-se da parede e andou rapidamente até o amigo, que acompanhava seus movimentos, paralisado, ainda com o cobertor nos braços.

- Vocês não pensaram! - gritou Remus. Seus dedos se fecharam em torno da gola da camisa de Sirius, e este se sentiu firmemente empurrado para trás, até colidir com uma parede. Remus o segurava com força, os olhos castanhos faiscando. - Eu poderia ter matado todos! Mas vocês não pensaram!

Sirius sentiu um punho golpear seu rosto. Estava tão aturdido que não pôde reagir. Remus estava descontrolado, gritava coisas ininteligíveis sobre as atrocidades que poderia ter feito. Até que Sirius finalmente voltou a si e, com uma força bem controlada, o empurrou.

Remus caiu sentado no chão. Segurava a cabeça entre as mãos. Os olhos cerrados com força. Ainda murmurava. Como podiam ter feito aquilo com ele? Sentia-se enlouquecido só de pensar que poderia ter acordado cercado de cadáveres. Dos cadáveres de seus amigos.

- Aluado... Remus, calma, nada aconteceu - murmurou Sirius. - Eu e o James te seguramos. Veja, você nem mesmo se machucou muito dessa vez - ele apontou para os braços de Remus, que apresentavam apenas alguns poucos arranhões superficiais. - Aconteceu tudo como prevíamos.

Ele se ajoelhou ao lado do amigo. Remus não escutava. Apenas falava sem parar.

- Aluado - Sirius passou o braço por seu ombro. O outro o afastou com um gesto brusco, mas Sirius insistiu, até que Remus não resistisse mais e se deixasse ser abraçado. - Não aconteceu nada. O lobo não nos machucaria.

- O lobo não saberia quem vocês são - retrucou Remus. Não chorava. Mas havia algo profundamente perturbador em sua expressão.

Sirius não tentou argumentar. Sabia que não era hora. Apoiou o braço de Remus em seus ombros e forçou-o a se levantar.

- Vai ficar tudo bem - assegurou.

Sirius não sabia de nada. Foi o que Remus pensou enquanto era guiado pelas escadas. James e Peter dormiam nos sofás semi-destruídos do andar térreo.

Na enfermaria, Remus tentava se manter alheio às perguntas da enfermeira. Não queria dizer como estava se sentindo. Sequer queria pensar nosso. Desviou os olhos para o chão. Segurava o lençol com força, como se tivesse receio de que ele fosse sair voando. A enfermeira ficara muito feliz com a falta de ferimentos graves. "Apenas alguns arranhões", dissera, muito satisfeita. E Remus também não percebera em seus amigos nada além de arranhões - a não ser pelo hematoma do lado esquerdo do rosto de Sirius, efeito do soco. Eles não falaram sobre aquilo e deixaram que James e Peter pensassem que o ferimento fora adquirido durante a noite.

- Estou bem - respondeu, mecanicamente.

A enfermeira examinou seus olhos e fez anotações.

- Parece bem mesmo - falou ela, maravilhada.

O garoto sorriu. Queria que aquilo acabasse logo. Não estava bem. Mas, aos poucos, estava aprendendo a fingir que acreditava nas coisas que dizia. Sentia-se doente, consumido pela culpa por algo que poderia ter acontecido. Seus cortes foram curados. Mas ele sabia que continuava doente. Que sempre estaria. E que seria sempre, em parte, aquele monstro incontrolável e destruidor. "Vai ficar tudo bem". Nunca ficaria bem. Mas sabia que nunca conseguiria convencer Sirius disso.

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Why I'm locked up inside
Just cause they wanna hide me
(Do porquê eu estar preso em mim
Só porque querem me esconder)

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O lobisomem espreitava. Andava devagar, junto ao chão, usando as sombras do mato para se camuflar. Estava furioso. Não queria ser encontrado. Abaixou ainda mais o corpo contra o chão ao ouvir o leve som das patas de um cervo correndo à sua direita. Tinha lutado para fugir deles. Tinha ouvido os uivos e sabia que estava no lugar errado. Procurava os outros lobos, encontrando o caminho até eles instintivamente através da clareira coberta de neve.

Ouviu novamente os uivos. Estava perto. Não tinha medo, era um animal guiado pelo olfato apenas, procurando algo de familiar. Algo que o fizesse parar de sentir-se tão angustiado, tão temeroso e humano... Ele os avistou finalmente. Cinco lobos deitados na neve, mirando-o com curiosidade, com vastas pelagens castanhas salpicadas de neve. Havia apenas o murmúrio do vento. No céu escuro de inverno, brilhava a silhueta prateada da lua.

Ainda não tinha medo, embora pressentisse uma certa tensão no ar. Não havia considerado o fato óbvio de que não era exatamente um lobo, mas uma criatura perdida entre humanidade e animosidade, com pele humana sob os pêlos grossos cinzentos e olhos castanhos acima do focinho largo que roçava a neve a procura de odores familiares. Pois, se estivesse pensando minimamente, não teria escapado do cervo e do cão para início de conversa.

O lobisomem inclinou o corpo para trás, apoiando-se nas patas traseiras, pronto para um ataque. Os lobos haviam se erguido da neve e moviam-se em torno dele, mirando-o com olhos famintos enquanto mostravam os dentes e rosnavam baixinho.

Foi o lobo maior quem atacou primeiro. Tentou cravar os dentes no pescoço do lobisomem, mas foi repelido por um simples golpe da enorme pata do monstro, caindo de borco na neve branca. Os outros lobos pareceram ficar ainda mais enfurecidos, como se tomassem aquilo como uma afronta contra todo o grupo. E foi nesse momento que o lobisomem se deu conta de que não poderia escapar sozinho. Sentiu dor, os dentes rasgando sua pele, a neve ficando manchada de sangue. Debatia-se tentando se livrar, mas os lobos apenas esperavam que parasse para voltarem a atacar. Logo não lhe restaria mais energia.

O lobisomem sentiu neve em seus olhos. A centelha humana dentro dele o fez se dar conta de que poderia morrer. Ouviu o uivo do cão.

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The moon goes bright
The darker they make my night
(A lua vai brilhando mais forte
Quanto mais escura fica a minha noite)

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- Expelliarmus! - gritou Remus, da porta do quarto, ainda arfando pela corrida nas escadas. O som de três varinhas rolando no chão ecoou no cômodo silencioso. Não estava pensando com clareza. Não importava. Ele simplesmente achava que, se não chegasse lá imediatamente, acabaria descobrindo que não era verdade.

Sirius estava caído contra uma parede, os olhos vazios, respirando apenas. Um gato alaranjado esticava as patas por sobre sua camisa de trapos, as unhas presas no tecido como se estivesse determinado a não deixar nada arrancá-lo dali.

Remus pegou as varinhas. Via os rostos atônitos de Harry, Rony e Hermione, mas não queria pensar nisso agora. Os olhos cinzentos de Sirius se fixaram nele, as órbitas se destacando no rosto descarnado, a pele suja e descolorida colada aos ossos.

- Onde ele está, Sirius? - perguntou. E não houve reação. Sirius Black parecia não tê-lo reconhecido. Ou talvez estivesse fraco demais, descrente demais para falar. Remus não se lembrava de já tê-lo visto alguma vez na vida Sirius sem disposição para falar.

Sirius ergueu o dedo, apontando para Rony Weasley, que se encolhia na velha cama de colunas. O menino tinha uma das pernas ensangüentada, apoiada sobre um amontoado de lençóis velhos. Como Peter Pedigrew poderia estar ali? Então Remus se lembrou. Rony esbravejando num corredor contra um gato que comera seu bicho de estimação. Um rato. Perebas, o rato. Rabicho.

Remus voltou a olhar para Sirius. Não fazia sentido. Por que Peter faria aquilo? E, se Peter não estava morto, como Sirius fora visto cometendo aquele assassinato? Ele se lembrava com tanta clareza das manchetes de jornal. Do interrogatório. Da suspeita de que ele de algum modo saberia o que Sirius pretendia fazer e poderia ser seu cúmplice. E ele usara aquilo como desculpa para odiar Sirius por tanto tempo. Apenas porque sentia necessidade de odiar alguma coisa, para evitar que acabasse colocando a culpa em si mesmo. Nunca conseguira odiar Sirius Black pelos motivos certos.

- Mas, então por que ele não se revelou antes? - indagou Remus, os olhos presos em Sirius, que apenas o encarava, a face livre de qualquer emoção a não ser aquela máscara de raiva e cega determinação. - A não ser que... - o bruxo arregalou os olhos.

Aquela sensação de novo. A mesma daquela noite na semana do dia das bruxas há doze anos. "Você está desaparecendo muitos dias antes da lua cheia, me explique por quê. Eu vou acreditar no que você disser, mas preciso que você diga". Remus não disse. Achava que não precisava. Achava que Sirius deveria simplesmente confiar, e manter distância daquilo. No fundo sabia que não deveria ter pedido aquilo. Não para Sirius. Não para a pessoa mais leal e sincera que já conhecera. Mas tinha pedido. E talvez já soubesse o que ia acontecer depois disso. Talvez achasse apenas que aquela era mais uma das coisas que ele não merecia.

- A não ser que ele fosse o... - Remus gaguejou, ainda olhando para Sirius. - A não ser que ele tivesse trocado... sem me dizer?

Sirius piscou. Então balançou levemente a cabeça, a expressão inalterada. Claro. Sem lhe dizer.

- Professor - Remus desviou os olhos de Sirius, atraído pelo som da voz de Harry. O menino estava confuso. Ele não tinha como entender. E nem Remus saberia como explicar. - Que é que está acontecendo...?

Mas Remus não estava mais ouvindo. Adiantou-se em direção a Sirius, a varinha abaixada, sob os olhares atônitos dos três estudantes. Segurou pesadamente os ombros do bruxo, sentindo seus ossos sob as roupas pesadas, os tecidos imundos e em trapos. Obrigou-o a se levantar. Aquele rosto sem expressão. Sirius parecia ter perdido a capacidade de mostrar qualquer outra expressão senão aquela em que seus aqueles lábios ressequidos se contraíam entre os fios rebeldes da barba, os olhos cinzentos vazios de qualquer vestígio do brilho que antes jamais saía deles.

Remus tocou seu rosto, deslizando os dedos pela têmpora esquerda de Sirius. Onde estava agora? Onde estava sorriso irritante que se recusava a deixar aqueles lábios, mesmo nos momentos mais graves? Onde, agora, aquele ar despreocupado, a certeza de que tudo ia melhorar? Sirius sempre fora diferente. Tinha um temperamento irrequieto. E Remus certa vez o classificara como sonhador. Era sim, um rebelde sonhador, permanentemente inconformado, pronto a reagir contra as coisas que o incomodavam sem pensar nem por um instante. Onde agora encontrar aquilo que sempre o irritara tanto?

Um sorriso de reconhecimento se formou naquele rosto adoentado. Remus fechou os olhos. E, sem pensar no que fazia ou em como aquilo poderia aparecer para Harry, Rony e Hermione, apenas estendeu os braços por sobre os ombros de Sirius e o abraçou com força. Sentiu os braços do outro lhe envolverem as costas, e o rosto de Sirius afundando em seu pescoço, a textura áspera em sua pele.

Sirius se afastou, seus olhos ainda presos em Remus, eclipsando-o dentro daquelas superfícies turvas, miragens absurdas tomando forma através da neblina cinzenta. Ilusões. Dentro deles, Remus viu ressurgir aquele reflexo vibrante que só Sirius poderia lhe mostrar, porque só Sirius o via daquela forma. Ainda se mantinham abraçados, sem saber o que fazer depois. Remus observou seu o lábio inferior brilhando. E reconheceu, sob seus dedos, por entre aquele entrelaçado de fios sujos e grosseiros, o toque maio e conhecido dos cabelos de Sirius.

Estava errado. Sempre estivera errado, ignorando o óbvio, a simples necessidade que tinha de acreditar que Sirius ainda era o mesmo. Por isso tinha inventado desculpas para odiá-lo. E por isso sentira raiva de si mesmo por tanto tempo. Cauteloso demais. Quantas barreiras criara entre eles no passado? Remus não gostava de sonhar.

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Unplayed pianos
Are often by a window
(Pianos intocados
Ficam freqüentemente perto de uma janela)

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Remus ficou parado diante da porta, sem coragem de pisar dentro da casa. Tudo exatamente como se lembrava. A estante de livros. O lustre de vidro com a tinta dourada descascando. Os quadros de paisagem nas paredes, com molduras de latão. E o piano. O velho piano de cauda, parado exatamente onde estava da última vez que o vira. Mas por que, se tudo estava igual, achava que seria errado avançar mais que isso? Como se não pertencesse àquele lugar. Como se fosse um erro que ele tivesse a permissão de voltar a pisar naquela casa depois de tudo.

Através da janela, via um estreito caminho de paralelepípedos serpenteando para longe da casa, subindo e descendo no terreno acidentado até atingir um par de altos portões de metal avermelhado pela ferrugem. Mordeu o lábio inferior. Não havia ninguém no caminho, mas Remus ainda se via ali, atravessando sozinho o terreno em direção aos grandes portões, a luz do fim do dia imprimindo sombras alongadas no chão. Aquela fora a primeira vez que se lembrava de se sentir só. Não apenas a solidão da ausência de outras pessoas. Essa solidão ele já tinha experimentado. Mas a solidão de estar perdido no mundo, a consciência de que ninguém estaria lá para segurar sua mão, a certeza de que, a partir daquele momento, não haveria mais nenhuma segurança.

Tinha então oito anos. E anunciou ao pai que queria ir sozinho. A verdade é que achava que sua mãe precisava mais de companhia. Por isso, deveria aprender desde o início que estava sozinho naquilo. Caminhou devagar pelo caminho de pedras, as folhas secas estralando sob seus pés à medida que avançava. A estradinha que levava ao cemitério tinha provavelmente séculos e mantinham ainda uma trilha regular de paralelepípedos, invadidos aqui e ali por pequenas madressilvas, que despontavam dos estreitos espaços entre as pedras. Lembrava-se de ter parado num trecho mais elevado do caminho, de onde podia ver a vila. As antigas casas se assemelhavam a pequenas caixinhas coloridas, banhadas pela luz vermelha que tingia o céu à medida que o sol desaparecia. Não podia distinguir ninguém andando pelas ruas. Um sino distante ecoando na cidade vazia era a única indicação de não estava abandonada.

O menino passara pelo portão de ferro, seu rosto voltado para o céu, as nuvens pálidas tingidas de vermelho. Não parecia o mesmo lugar que em breve abrigaria a responsável por sua dor. Continuara a seguir a estrada cemitério a dentro. Nunca tivera medo do lugar. Deteve-se diante da pesada porta da cripta. Abriu-a com cuidado, tentando não fazer barulho. Sabia que estava sozinho e que ninguém vinha àquele lugar, mas lhe pareceu desrespeito para com os mortos não tentar ser o mais silencioso possível. Fechara a porta atrás de si, mergulhando na escuridão. Tinha pedido ao pai para não deixar nem uma única brecha para a entrada do sol. Também não havia luz. Nada de velas onde havia um lobisomem descontrolado, pensara, tateando no escuro, rindo da própria infelicidade. Encontrou um colchão no chão. Deixou o corpo cair ali, já sentindo a fera se mover dentro dele, antecipando a chegada da lua.

Estou pronto agora, tinha murmurado, para si mesmo.

Mas não estava pronto. Nunca estaria.

Ainda na porta da casa, Remus se apoiou na moldura de madeira, sentindo-se fraco demais para continuar. Outros parentes poderiam se responsabilizar por aquilo. Ele era maior de idade há apenas alguns meses. Porém, ao mesmo tempo em que queria fugir, Remus sentia-se preso àquele lugar. Nunca se permitira pensar naquela casa depois que fora para Hogwarts.

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In a room where nobody loved goes
(Em uma sala onde ninguém amado entra)

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- Aluado - Remus se virou. Sirius o encarava, parado nos degraus diante da porta, carregando os malões. Mais abaixo, James e Peter conversavam aos cochichos. - Podemos fazer isso depois. Se não quiser entrar agora, podemos ir para a casa do Pontas e...

Remus sacudiu a cabeça. Não. Não queria adiar. Deu um passo e estava dentro. Ainda parecia terrivelmente errado, mas a sensação não estava pior. Sirius o empurrou para o lado ao passar carregado de malas. Seu olhar impaciente parecia exigir algo do amigo.

Remus caminhou pela sala. Pousou a mão sobre o aparador. Os porta-retratos. Ele não estava lá, claro. Fora apagado das fotos para que sua mãe nunca soubesse que ele um dia havia existido naquela família. Para ela, Remus era filho de um dos irmãos do marido, o menino tímido e bem educado que às vezes os visitava. Da superfície brilhante de uma das fotografias coloridas, sua mãe era abraçada por seu pai, e sorria, com toda a vivacidade de que ele se lembrava. Ao menos isso. Ao menos para isso sua renúncia tinha servido. Não suportaria saber que ela tinha vivido infeliz, mesmo depois de tudo.

- Aluado... - Remus suspirou. Afastou-se do aparador. Sirius o encarava, os braços cruzados. - Pontas e Rabicho subiram com as malas.

- Certo - Remus deu a volta no aparador, ficando diante no piano. - Mais tarde podemos jantar na cidade. Não acho que tenha algo para comer aqui.

Voltou a se virar para Sirius, mas este estava bem próximo, parado ao seu lado, os dedos deslizando pelo lençol branco que cobria o piano. Sirius andou em torno do móvel e se abaixou para arrastar para fora um banco retangular, com o assento forrado de veludo amarelo. Sentou-se.

- Você tocava esse piano? - perguntou, erguendo o rosto para o amigo. Remus confirmou um gesto de cabeça. Sirius se afastou para um lado do banco. - Sente-se - ordenou, indicando com a cabeça o espaço ao seu lado.

- Almofadinhas, eu não...

- Sente-se, Aluado - insistiu.

Remus obedeceu. Há quantos anos não se sentava ali?

Sirius abriu a tampa do teclado, revelando uma longa faixa de veludo verde que cobria as teclas. Retirou-a, enrolando-a nos dedos. O rapaz se levantou e andou até o aparador, onde colocou a faixa. Depois voltou ao piano e puxou o lençol, erguendo-o diáfano no ar. Deixou que ele caísse no chão. Voltou a se sentar ao lado de Remus.

- Vamos tocar juntos - falou.

Remus suspirou. Almofadinhas não podia entender.

- Não posso. Não me lembro - justificou. Mantinha as mãos sobre os joelhos.

- Isso não é algo que se possa esquecer - insistiu o outro, pegando as mãos do amigo com delicadeza e colocando-as sobre as teclas brancas e pretas.

- Não, eu não me lembro - recolheu as mãos, para ser novamente capturado por Sirius. Por algum motivo, aquele gesto autoritário lembrou a Remus a forma como sua mãe lhe indicava as teclas corretas durante as lições de música.

- Agora vamos - determinou Sirius, posicionando os próprios dedos nas teclas.

O primeiro som ecoou grave na sala, se elevando acima deles, subindo as escadas e ecoando no teto, suave e lívido, quase transparente de tão limpo. A segunda nota seguiu a primeira, e as demais se sucederam numa execução contínua. Remus observou as mãos do outro percorrerem as teclas com agilidade. Sirius olhou para ele, um pedido silencioso para que Remus o acompanhasse.

Remus pressionou uma tecla. E a seguinte. E, seguindo a melodia imposta por Sirius, deixou que os dedos vagassem instintivamente pelo teclado, deixando que as lembranças viessem. Não tinha esquecido. Almofadinhas estava certo. Não havia como esquecer uma coisa como aquela. E, à medida que a música tomava conta do ambiente, Remus sentia que algo saía de dentro dele, aquele grito mudo de dor, o choro que não veio quando esteve na sala de Dumbledore e recebera a notícia de que seus pais estavam mortos, as palavras engasgadas de tudo que não conseguira falar nos últimos dias, simplesmente por acreditar que tinha que agüentar.

E sentiu o caminho quente das lágrimas em seu rosto. Não conseguira chorar. Nem no enterro. Mas agora lá estavam elas, as lágrimas. Fechou os olhos, concentrando-se apenas na música. Não era uma melodia triste. Era apenas uma confissão, um desabafo de tudo aquilo que não podia dizer. E, quando achou que já não agüentava mais ouvir, as notas graves pararam.

Remus também parou, mas manteve os olhos fechados. Sentiu um braço de Sirius em seu ombro, trazendo-o para junto de si. Deixou que os dedos do outro se entrelaçassem em seus cabelos finos, o calor da proximidade e a textura da pele do pescoço de Sirius em seu rosto. Remus fechou as mãos, agarrando com força as vestes de Sirius. Não queria que aquilo acabasse. Estava seguro. Finalmente seguro. E, finalmente, não se sentia mal por se mostrar fraco.

Os dedos de Sirius deslizaram em seu rosto em direção ao queixo. Suas mãos envolveram o rosto de Remus. A próxima coisa que sentiu foi a sensação dos lábios de Sirius contra os seus, numa pressão suave, mas constante. Um braço escorregou para suas costas, trazendo-o para perto, até que estivessem um colado ao outro. Remus apertou os dedos, segurando com mais firmeza as vestes de Sirius, como se houvesse uma força tentando arrancá-lo de lá.

Um som metálico ecoou pela sala. Remus abriu os olhos. Relaxou os dedos. Sirius se afastou. Seus olhos vagaram pelo rosto de Remus, parando em seus lábios antes de olhar para algo acima de seu ombro. Remus se virou. James estava parado ao pé da escada, enquanto Peter se abaixava no chão para pegar as chaves que deixara cair.

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She sits alone with her silent song
(Ela se senta sozinha com sua canção)

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O homem caminhava apressado ladeira acima, segurando a capa junto do corpo. O caminho era mal conservado, com os antigos paralelepípedos esburacados, sendo invadidos aqui e ali por mato rasteiro. A luz imprimia sombras oblíquas nas pedras cinzentas. O homem parou, respirando rápido e olhou para trás, colina abaixo. A cidade às suas costas estava movimentada, com pessoas caminhando pelas ruas, aproveitando as ultimas horas do dia. Acima das casas, se erguia o campanário. O sino dourado refulgia, como um enorme farol sobre a fachada da antiga igreja.

Ele voltou a olhar para frente. Avistou o portão de ferro do cemitério, carcomido de ferrugem. Um enorme segmento de mármore servia de apoio para anjo que estava posicionado bem na entrada, de braços abertos, a face destruída pelo tempo mostrava apenas vestígios do que um dia poderia ter sido um rosto humano. Ele abaixou o capuz da capa.

O homem ainda apresentava feições joviais, mas parecia abatido, a pele excessivamente pálida e os olhos fundos, como se não dormisse há dias. Seus lábios finos se contraíram quando ele cruzou os portões. Remus Lupin nunca gostara de cemitérios em geral. E, ainda que já tivesse cruzado aqueles portões um sem número de vezes, não conseguia evitar sentir-se mal.

Há muitas décadas o cemitério fora abandonado pelo povo da cidade e a natureza assumira para si o trabalho de velar pelos mortos. Fazia isso muito melhor que os humanos, Remus pensava. O mato rasteiro invadira alguns túmulos, com gavinhas se enveredando em torno das lápides como se fossem teias, abraçando-as. E, não satisfeito em dominar o chão e as pedras, o verde subia pelas estátuas do cemitério, se enroscando inclusive em torno do pulso de uma mulher de mármore que olhava para frente, com se esperasse encontrar alguém conhecido avançando pelo caminho. Infiltrava-se por cima das sepulturas, pelos canteiros que outrora abrigaram flores cuidadosamente cultivadas, e cobria até os pálidos retratos antigos com molduras de metal descolorido nas lápides, como se quisesse esconder com sua violenta paixão pela luz qualquer vestígio da morte.

Não soube se era por causa da euforia ou da irrealidade do momento, o bruxo se sentia leve, seus passos não faziam qualquer barulho nem a grama parecia se alterar por onde passava à medida que avançava. Era o início do verão, o vento forte balançando violentamente os galhos das árvores, o sol forte esquentando seu rosto.

Parou diante da cripta, uma construção em ruínas. O teto pendia perigosamente para os lados, com vários espaços sem cobertura, e as paredes haviam sido invadidas pelas trepadeiras. Apenas a porta era recente, o metal ainda resistindo à ferrugem, firmemente fixada às dobradiças. Remus puxou a varinha de dentro das vestes e a apontou para a porta. Uma luz alaranjada saltou da ponta e atingiu a fechadura. Ouviu-se uma série de estalidos metálicos e a porta se escancarou de súbito, revelando o interior escuro da cripta.

Remus arfou. Uma silhueta se moveu nas sombras. Deu alguns passou em direção à porta. Sentiu-se erguido pela cintura e seu corpo foi comprimido contra a moldura metálica da porta, o ferro frio lhe machucando as costas. Não importava. As mãos de Sirius tocaram seu rosto e seus lábios se uniram, com uma força que chegava a causar dor. Remus sentiu o gosto de sangue na boca.

Então empurrou os ombros de Sirius, que se afastou, contrariado. Respiravam rápido e profundamente. Remus fez um gesto com a cabeça. Vamos. E Sirius obedeceu. Caminharam lado a lado pela estrada para fora do cemitério, um hipogrifo os seguindo de longe, mais interessado em explorar o novo ambiente.

A antiga casa dos Lupin continuava tão encantadora como sempre fora, com a diferença de não ter mais um gramado bem cuidado. Não estava sujo, apenas não fora trabalhado para se transformar num jardim. Remus andou na frente, correndo pelos degraus diante da porta. Sirius pegou a coleira de Bicuço e o amarrou no corrimão da escada.

Sirius ficou alguns instantes parado junto à porta, observando as mudanças do lugar antes de entrar. Com o tempo, Remus tinha transformado aquele lugar num abrigo que se enquadrava perfeitamente em sua personalidade. Não havia mais porta-retratos com fotografias de famílias, ou quadros de paisagens nas paredes, ou vasos de flores. Só estantes de livros, livros empilhados sobre as mesas e xícaras e mais xícaras de café deixadas sobre os móveis. E o piano. Sirius olhou mais de uma vez para ele para ter certeza de que realmente estava lá, coberto ainda por um lençol branco.

- Entre - mandou Remus. E fechou a porta atrás de Sirius, enquanto este andava pela sala, ainda observando as mudanças.

- Você tem não tem nenhum quadro de seus pais? - perguntou, procurando pelas paredes.

Remus sacudiu a cabeça.

- Não queria me prender a nada que fizesse parte do passado - falou, a cabeça baixa, evitando olhar para o outro.

Então indicou as escadas, para que Sirius pudesse subir e tomar um banho. E podia usar as roupas que encontrasse no armário do primeiro quarto à esquerda. Remus ficou sozinho na sala. Sentiu seus olhos serem irresistivelmente atraídos para o piano. Sirius tinha olhado tão longamente para ele. Talvez tivesse pensado que Remus se livraria do piano, como tinha se livrado das fotografias, tapetes, quadros e porcelanas. Mas o piano... não tivera coragem. Simplesmente não pudera se desfazer dele. Aquela era uma parte do passado que ele nunca conseguira afastar.

Fez o jantar para Sirius. Não sentia fome. Não conseguia parar de pensar no que ia falar, as palavras represadas dentro dele como um rio obstruído. Havia coisa demais para dizer. A começar pelas explicações. E, depois disso, ainda haveria as perguntas sobre como vivera nos últimos doze anos. Essa não era uma pergunta difícil de responder. Remus impusera a si mesmo uma pesada rotina de estudos e trabalhos, o único modo que encontrou de juntar os pedaços em que ficara depois de tudo.

Foi quando escutou. A melodia angustiante no ar, grave a aguda, formada apenas pelos extremos. Andou até a porta da cozinha. Lá estava Sirius, inclinado sobre o piano, os olhos cerrados enquanto seus dedos golpeavam com força as teclas. E, com aquela música, dizia tudo o que precisava dizer, da única maneira que encontrara de alcançar Remus.

Foi Remus quem o arrancou do transe, puxando-o do banco e encerrando sua tentativa de dizer qualquer coisa com os próprios lábios. Sirius tinha tirado a barba, e os cabelos molhados grudavam em seu rosto. Suas mãos comprimiram Remus num abraço apertado. E ele se deu conta. Não havia nada a dizer. Nada mais.

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Somebody bring her home
(Alguém a traga de volta para casa)

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Remus murmurava as respostas que escrevera na prova de Defesa contra as Artes das Trevas. Acomodou melhor a mochila nos ombros. Talvez fosse à biblioteca conferir alguma coisa. Bocejou largamente, sentindo os olhos pesarem. Talvez não. A lua cheia tinha acabado há apenas três dias, e desde então ele não dormia mais que algumas horas por noite, tentando recuperar a matéria perdida.

- Aluado - o chamado veio de um corredor lateral e sobressaltou Remus. Olhou para o lado. Sirius Black espreitava, parcialmente escondido atrás de uma armadura medieval.

- O que está fazendo aqui? - Remus se aproximou. - Almofadinhas, você deveria estar na aula de Estudo de... - o rapaz foi puxado com força para frente e então estava encolhido atrás da armadura junto com Sirius, que murmurava qualquer coisa sobre ele ficar quieto e em silêncio porque Filch estava vindo por esse corredor. Como que para confirmar a afirmação, Sirius apontou o ponto no mapa identificado com o nome do bedel da escola, que se movia rapidamente pelo papel.

Remus fez uma careta. Não gostava de se envolver nas encrencas de Sirius. Em geral, não eram coisas de quem tinha uma noção normal do que deveria ser chamado de brincadeira. Filch passou por eles, praguejando contra quem abrira seu arquivo de detenções e o enchera de fadas mordentes. Segurava um lenço sobre o nariz, que estava inchado até o tamanho aproximado de uma bola de tênis. Entrementes, Sirius se continha com toda a sua força de vontade para não rir, cobrindo a boca com as duas mãos enquanto sacudia as costas silenciosamente.

- Acho que já podemos ir - falou Remus, quando já havia se passado alguns momentos desde que Filch desaparecera numa curva do corredor. O rapaz fez um movimento para sair, mas o outro se colocou em sua frente, obrigando-o a voltar para o esconderijo.

- Fique aqui mais um pouco - falou Sirius.

- Por quê? - Remus ergueu as sobrancelhas. Lançou um olhar para o corredor. Nenhum sinal de Filch nem de mais ninguém.

- Precisamos conversar - justificou Sirius. Remus ainda tinha uma expressão de dúvida. - Sobre o que aconteceu na sua casa.

Remus arfou, o rosto rapidamente mudando de cor, de pálido para vermelho vivo. Ele mordeu o lábio inferior. Balançou a cabeça afirmativamente. Sim, precisavam conversar. Ele não achou que Almofadinhas fosse ignorar o assunto para sempre, ainda que Peter e James estivessem agindo como se nada tivesse acontecido.

- Certo - falou finalmente. - Mas não aqui - completou.

Segurou o braço de Sirius e o puxou para longe da armadura, seguindo na direção oposta à que Filch tinha tomado. Parou diante de uma tapeçaria. O desenho trançado mostrava um cortejo de anões por um caminho íngreme na floresta. Remus afastou a tapeçaria e puxou Sirius para dentro, encontrando um túnel estreito, que seguia adiante numa escuridão que parecia não ter fim.

O espaço não era muito maior que o que tinham atrás da armadura. Havia uns poucos centímetros entre seus corpos e Remus tirou a mochila dos ombros para poder se recostar na parede. Os olhos de Sirius brilhavam intensamente naquela penumbra, as cores desbotadas da tapeçaria filtrando a luz e lançando fachos coloridos sobre eles.

- Agora podemos conversar.

Sirius se sentou no chão e convidou Remus a fazer o mesmo. Mexia os dedos compulsivamente sobre os joelhos enquanto procurava uma forma de começar.

- Tem uma coisa acontecendo entre nós - murmurou Sirius.

Remus sorriu. Sempre se podia contar com Almofadinhas para constatar o óbvio.

- Eu... - Sirius ergueu as mãos, num gesto vago e desconexo. - Eu só não sei dizer exatamente o que é. Você sabe, Aluado?

Remus abriu a boca. Ele também não sabia o que era. Ou não se atrevia a saber. A falta de honestidade. Mirou Sirius, com raiva. Por que explorar sua falta de honestidade daquele jeito? Não era como Sirius. Não era fácil para ele ser sincero sempre. Para Remus a sinceridade era algo excessivamente perigoso. Não controlava seus sentimentos, e não podia impedir que eles fossem egoístas, mesquinhos, possessivos. Sirius manipulava bem os próprios sentimentos e os sentimentos dos outros. Mas Remus nunca fora bom nesse jogo. Preferia se esconder sob as máscaras. Porque, apesar do jogo valer a pena no final, não queria arriscar.

- Eu acho que isso vai arruinar nossa amizade - falou Remus, os olhos voltados para o chão de pedra colorido pela luz. - E não quero que isso aconteça.

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Unplayed piano
Still holds a tune
(Um piano intocado
Ainda mantém uma melodia)

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Remus abriu a porta da velha casa abandonada. Ouviu guinchos num corredor adiante e uma pequena silhueta correndo da luz que entrava através da porta aberta. Avançou pelo hall, deixando pegadas na espessa camada de poeira. A ponta da capa de viagem deslizava no chão, formando um caminho escuro atrás dele.

Ergueu a varinha acima da cabeça e murmurou um feitiço para iluminar a passagem para a sala. Todas as cortinas estavam cerradas, de modo que os móveis velhos pareciam ainda mais deploráveis no escuro. Poltronas com braços de madeira finamente trabalhada exibiam molas enferrujadas despontando do tecido roído de traças. Havia manchas de infiltrações nas paredes e o teto parecia um pouco encurvado, como se as vigas não suportassem mais o peso.

Numa das paredes havia uma comprida moldura vazia, exibindo apenas um fundo de madeira escurecida e alguns cacos do que um dia fora um espelho. Aproximou-se. E deu com centenas de rostos o encarando do chão, disformes cacos prateados refletindo sua expressão desnorteada. Sentiu-se por um momento efetivamente desmembrado naquelas incontáveis facetas.

Remus deu um passo para trás. Fechou os olhos, tentando se concentrar. Atenção, tinha que se manter alerta. A atmosfera carregada de poeira de uma década lhe dava a sensação de estar sufocando. Avançou em direção a uma cortina e puxou-a com violência. Um grande retângulo de luz surgiu no chão. Suspirou. A luminosidade do dia não podia ajudar quando era ele que se sentia escuro.

- Vai ficar muito tempo aí parado? - ouviu a voz atrás de si. Remus se virou. Uma sombra estava imóvel, ao pé da escadaria.

- Eu... eu não sabia que você já estava aqui - falou Remus. Observava os movimentos lentos da sombra pela sala, driblando os móveis até alcançá-lo. O rosto pálido e magro foi iluminado pela luz clara do dia. Um brilho familiar perpassou o par de olhos cinzentos. Remus mordeu o lábio inferior. A luz imprimia sombras profundas no rosto de Sirius Black.

Sirius estendeu a mão para a cortina, voltando a fechá-la. Depois tornou a andar, daquela mesma maneira irreal, como uma assombração sólida. Remus o seguiu. Sabia desde o início que não seria fácil. Sirius resistira muito em voltar àquela casa. Depois de ter partido da maneira que partira. Provavelmente imaginara que jamais teria que se lembrar novamente que era um Black.

Caminhavam através de um corredor amplo, Sirius fez um sinal para que não fizesse barulho. No alto das paredes, extensas prateleiras sustentavam massas escuras que Remus não pôde identificar o que eram. Uma extensa fileira de quadros cobria as duas paredes, tortos, a tinta escurecida pelo tempo. O papel de parede parecia ter absorvido a cor da poeira, adquirindo um estranho tom de cinza, e se soltava em vários pontos, formando faixas que desciam até o chão. Dez anos.

Remus ergueu a varinha para iluminar melhor o caminho. Alguns quadros apertaram os olhos, murmurando reclamações. Outros se viraram, escondendo os rostos da luz. Parou diante de um dos retratos. Um velho dormia apoiado na moldura descascada. “Sirius Black”.

- Meu bisavô - resmungou Sirius. - Ou tataravô, não tenho certeza.

Remus piscou. Então olhou para um retrato no fim do corredor, onde uma velha bruxa ressonava, adormecida, agarrada a uma bengala com cabo de prata. A moldura ainda estava completamente íntegra. Era certamente muito mais recente que os outros retratos. Sirius fez uma careta ao perceber para onde Remus esta olhando.

- Querida mamãe - falou. Remus ergueu as sobrancelhas. - Ninguém conseguiu tirá-la daí ainda

Remus não vira Walburga Black muitas vezes, mas se lembrava de ela ser bem mais jovem, os cabelos muito negros sempre trançados apertados junto à nuca e o vestido longo, escuro, que só terminava no pescoço, onde ela usava sempre um broche prateado. O mesmo que a velha bruxa o retrato estava usando.

- O que aconteceu com ela?

Sirius deu de ombros e continuou a andar. Remus ainda ficou parado alguns minutos diante do quadro, antes de segui-lo.

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Lock on the lid
In a stale, stale room
(Um cadeado na tampa
Em uma sala envelhecida)

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- Eu não sou você, não tenho essa liberdade que você tem! - falou Remus. Estavam parados num corredor. O rapaz teve a vaga impressão de ver os quadros em torno deles se alvoroçando com a discussão, cochichando entre si e se movimentando rapidamente nas molduras para poder ver um ângulo melhor da cena.

Os olhos de Sirius se acenderam. A revolta sempre ativa, como se para ele bastasse virar um botão para explodir. Ou para se apaixonar. Sirius Black sempre fora movido pelas suas paixões e para ele não havia outra forma de viver. Era apaixonado pela vida. E sua paixão agora fazia com que Remus balançasse violentamente, como que açoitado por uma forte ventania que ameaçava atirá-lo num precipício. Como Sirius conseguia? De onde obtinha tamanha energia? Sua paixão era tão grande que transcendera sua alma e conseguira agarrar Remus pelos pés, fazendo-o tropeçar em suas próprias certezas.

- Não posso te dar essa liberdade! - bradou Sirius, furioso, o rosto pálido manchado de vermelho em alguns pontos. - Só você pode.

- Não posso - Remus olhou para o chão, tentando ignorar o calor da respiração de Sirius tão próxima a ele. Segurou com mais força os livros junto ao peito.

Não podia estar certo. Nada estava certo. Não era a pessoa certa, nem o lugar certo, e muito menos o momento certo. Mas já estava perdido, anunciou uma vozinha dentro de si. Tinha acabado de perceber, nesse exato momento, que estava irremediavelmente perdido. Olhava para Sirius, sua expressão frustrada clamando por outra resposta e, de repente, não era como se fosse apenas um bom amigo, um melhor amigo, quase um irmão.

- Você pode fazer isso por mim - a voz de Remus saindo num sussurro quase inaudível.

Sirius balançou a cabeça.

- Não posso. Você é que tem que fazer.

Remus mordeu o lábio inferior. Há quanto tempo? Impossível dizer. Mas a força do elo, Remus sabia, já estava lá bem antes de qualquer um deles se dar conta. Sempre fora confuso em relação aos próprios sentimentos. E talvez por isso tivesse ignorando por tanto tempo o que para Sirius era óbvio e incontestável, como os dias se sucedendo um após o outro.

Mas não havia como voltar atrás. Já o amava tanto que chegava a se sentir sufocado. Desejava apenas que um buraco se abrisse no chão e nunca mais tivesse que olhar para Sirius Black, seus olhos negros, brilhantes como estrelas desoladas, examinando seu rosto numa devoção desafiadora.

Remus não tomou consciência do que fazia quando os livros despencaram de seus braços, produzindo um barulho que ecoou nos corredores vizinhos. Não soube o que estava acontecendo quando sentiu seus dedos se fecharam em torno da gola da blusa de Sirius. E quando sentiu a respiração quente dele em seu rosto, seus cabelos negros deslizando em seu pescoço. O toque macio de seus lábios.

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Maybe it's not that easy
(Talvez não seja tão fácil)

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Remus deu um passo para trás, tonto e confuso sobre o que estava acontecendo. Examinou o corredor. Vazio de um lado a outro, apenas Sirius Black, parado no meio dele, com uma expressão aturdida no rosto. Remus olhou para o rapaz, subitamente consciente de que os lábios dele não haviam se movido. Sentiu o sangue fugir de seu rosto. Depois de tudo, fora ele quem tinha beijado Sirius Black.

Abriu a boca. Mas não produziu nenhum som. A expressão de Sirius foi se abrandando, de extrema surpresa para um singelo contentamento, um sorriso enviesado surgindo naqueles finos lábios rosados, como se dissesse, sem pronunciar uma única palavra, "eu disse que ia acontecer".

Remus deu mais um passo para trás. A falta de palavras. E então se deu conta de que isso não tinha nenhuma importância. Não agora, quando via o mundo com tanta clareza. Uma luz parecia ter se acendido sobre seus olhos. Ou talvez fosse o fato de que não conseguia desviar os olhos do rosto de Sirius, na observação precisa de suas sobrancelhas negras, seu nariz fino e altivo, seu queixo harmônico, os lábios levemente abertos, revelando o branco dos dentes.

E ainda havia os olhos. O cinza que parecia ultrapassar os limites impostos pelas íris, se irradiando em todas as direções e, por um momento apenas, pintando o mundo para que Remus pudesse vê-lo daquela maneira singular com que Sirius o via. Tudo tão explicitamente colorido, vibrante, sonoro, e tão profundamente desprovido de sentido. Pela primeira vez na vida, Remus Lupin não via nem um só resquício de racionalidade no mundo.

- Isso pode arruinar nossa amizade - as palavras emergiram do sorriso de Sirius, enquanto ele se aproximava de Remus em passos muito lentos, quase como um predador faria diante de uma presa excessivamente amedrontada.

Remus recuou à medida que o outro avançava, sentindo que não queria saber o que viria depois, mas Sirius o acompanhou. Encontrou a parede de pedra. Sirius posicionou as mãos em seus dois lados, para impedi-lo de tentar fugir.

- Você não acha, Aluado? - perguntou.

O olhar de Remus estava fixo nos lábios de Sirius, observando cada pequeno movimento da fala. Estendeu a mão e os tocou com as pontas dos dedos. O que poderia achar? Como pensar em qualquer coisa quando estava encurralado contra aquela parede?

- Acho que já tenho muitos amigos - murmurou, a voz rouca quase não fazendo som no corredor.

O sorriso de Sirius se alargou. Ele deu um último passo para frente e seus braços envolveram os ombros de Remus. Proximidade e distância. Aqueles toques que para Remus pareciam leves demais, calmos demais. Tão terrivelmente lentos. Cada movimento parecendo durar uma eternidade. Então, num gesto brusco, puxou a cintura de Sirius para junto de si, afundando o rosto em seus cabelos.

Ouviu um suspiro junto ao seu ouvido, como se Sirius quisesse, numa única tragada, inspirar todo o ar em torno dele. Sentiu os lábios sobre sua pele, deslizando por seu pescoço, e aquela pressão firme de seu corpo contra a parede. Remus correu as mãos pelas costas de Sirius, sentindo o formato das omoplatas sob o tecido fino da camisa. Desceu as mãos até a cintura, procurando o início da camiseta. Enfiou os braços sob o tecido, sentindo a pele quente do outro.

Os lábios de Sirius tocaram os seus, primeiro de leve, então pressionando, sua língua empurrando para que os dentes se separassem. Remus arfou com aquele contato, as texturas, o tato, o calor tão forte que achava que ia se incendiar. Segurou a nuca de Sirius, os dedos envolvendo os cabelos negros e macios.

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Or maybe it's not that hard
(Ou talvez não seja tão difícil)

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Remus mirava o vaso de porcelana que fora colocado sobre a mesa da cozinha. Coisa de Nymphadora, provavelmente. As rosas vermelhas que emergiam do vaso já estavam murchas, as pétalas pendendo dos compridos cabos verdes. Pegou uma das pétalas que caíra na mesa, esmigalhando-a com uma lentidão calculada entre os dedos.

- Não faça isso - Sirius franziu a testa.

Remus abriu a mão, deixando cair os fragmentos vermelhos na superfície de madeira escovada da mesa. Sirius abriu uma gaveta. Depois outra. Remexia o conteúdo, procurando por algo entre as dezenas de talheres de diferentes conjuntos. Remus mirava o relógio sobre a pia. O lugar estava quente, as paredes de pedra retendo o calor produzindo pelo enorme forno a lenha. Sentiu falta de uma janela. Sabia que estava nevando e sentiu necessidade de saber se havia alguma estrela visível.

Sirius deixou a cozinha, bufando e resmungando, impaciente. Remus abaixou os olhos para as gavetas sob o balcão. Todas abertas. Uma forma com que Sirius manifestava seu mau humor era andar pela casa abrindo portas e gavetas de armários, numa busca indefinível por algo que ninguém sabia o que era. E Remus o seguia em silêncio, fechando tudo, recolocando os objetos em seus lugares, impedindo que a antiga casa dos Black virasse uma bagunça a cada crise de Sirius.

Seguiu os passos de Sirius para fora da cozinha, tentado adivinhar o caminho que ele tinha tomado. O corredor dos retratos de família. As prateleiras com as cabeças decapitadas dos elfos domésticos que serviram os Black nas décadas anteriores haviam sido retiradas durante a limpeza da casa no verão. Mas os quadros ainda estavam lá. Sirius desistira de se livrar deles quando ficou claro que não iam conseguir retirar o quadro que mais o incomodava - o de Walburga Black. Assim, gerações e gerações dos Black continuavam dormindo naquelas paredes, como se nada na casa tivesse mudado. O único quadro que lhes dava alguma atenção era aquele da mãe de Sirius, que agora vivia coberto por uma ampla cortina para que não praguejasse aos gritos contra os bruxos que freqüentavam a casa.

Encontrou Sirius enfurnado numa pequena sala, as cortinas cerradas. Estava inclinado sobre uma mesa, o rosto quase tocando as peças de um jogo xadrez. Remus andou em passos lentos pelo quarto, os olhos se acostumando à escuridão. As paredes daquele cômodo ainda conservavam quase que intacto o papel de parede lilás, salpicado de flores pálidas. Um velho dormia no quadro próximo à janela. Um armário de portas transparentes exibia retratos descoloridos de homens severos e mulheres altivas. Os objetos em seu interior tinham permanecidos ilesos aos efeitos do tempo e ninguém tinha descoberto um jeito de destrancá-lo. De trás do vidro, brilhava uma coleção de objetos de prata.

Aquela sala sobrevivera quase intacta à faxina, preservando a maioria de seus objetos na exata disposição em que estavam há dez anos. O passado confundido no presente sob a luz avermelhada da lareira. Sirius tinha apagado as velas. O lugar parecia oscilar sob a luz das chamas, as sombras se movendo sensivelmente e o vermelho cintilando nas superfícies espelhadas dos metais. Uma noite antiga. Remus quase tinha a impressão de observar uma cena que acontecera há muito tempo.

- O que foi? - perguntou Remus, sentando-se diante de Sirius. Pegou um dos peões do tabuleiro.

- Nada - resmungou o outro. Tomou o peão da mão de Remus e voltou a colocá-lo no lugar. Endireitou o corpo na cadeira e levantou a cabeça.

Remus tocou um peão branco e o moveu duas casas adiante. Sirius ergueu os olhos para ele. Estendeu a mão para um cavalo negro. O cavalo branco saltou a barreira de peões. Um peão negro avançou no tabuleiro. O jogo de Sirius era bastante silencioso, fazendo comentários só quando chamado a se manifestar. As peças eram antigas, relíquias dos tempos em que a mansão abrigava disputas entre bruxos influentes no mundo da magia.

- Está chateado porque Dumbledore não o deixou visitar Harry em Hogsmeade - sentenciou Remus, empurrando uma torre diagonalmente nas casas pretas e brancas.

Sirius fez um gesto vago e moveu a rainha para colocá-la diante do rei negro. Remus moveu a próxima peça. Queria saber o que estava errado. Além de Sirius estar trancafiado na casa que sempre odiara, revivendo cada momento terrível que tivera ali. Havia algum fato novo agora que sua compreensão ainda não havia alcançado.

A torre negra avançou três casas, encurralando o cavalo branco. Remus mordeu o lábio inferior. Nunca fora bom jogador de xadrez. Simplesmente não existia nele a essência do jogador que analisava os movimentos com várias jogadas de antecedência. Não era assim que as coisas funcionavam para Remus. Todas as coisas tinham que ser minuciosamente analisadas no tempo presente e então carregadas para o futuro, nunca o inverso. Ergueu os olhos para Sirius, que estava terrivelmente concentrado no tabuleiro, os lábios se mexendo levemente enquanto arquitetava a próxima jogada, tão concentrado, que nem percebeu que era observado.

Porque tinham que ser assim tão diferentes? Remus sempre acreditara que sua impulsividade tenderia a melhorar com a idade. Ainda que fosse adorável, a ação constante de Sirius era impossível de suportar. O tempo não tinha mudado nada. Sirius continuava tão elétrico como sempre fora, um pouco mais sóbrio e amargo, mas, ainda assim, relampejante na forma como sua mente trabalhava para tomar decisões. E Remus precisava de tanta reflexão, o tempo para ele era algo de valor inestimável. O mesmo tempo que Sirius esmigalhava entre os dedos quando queria alguma coisa.

- É a sua vez - murmurou Sirius, antes de umedecer os lábios que, então, faiscaram vermelhos na escuridão, refletindo a luz sangrenta da lareira. Remus piscou longamente. O sorriso de Sirius era tão confiante que achou injusto que o tempo continuasse a correr.

Moveu a torre três casas. Sirius sorriu triunfante. A torre branca se fora. O sorriso ainda estava ali, esperando pelo próximo movimento. Sempre estava. Uma das diversões preferidas de Sirius Black sempre fora testar seus limites de tolerância. Até onde agüentaria o paciente Remus? O monitor. O lobisomem que quase matara Severus Snape. O suposto traidor de quem fora escondida a verdade sobre o destino de Lily e James Potter. O bruxo que tentava esquadrinhar a alma de Sirius a procura do que pudesse haver de errado além das tantas coisas erradas que estavam acontecendo. O péssimo jogador de xadrez.

- É um xeque-mate - anunciou Sirius, incomodado com a falta de reação do outro.

Remus balançou a cabeça em concordância. Sim, era um xeque-mate. Sempre fora. Porque não importava o que acontecesse, nunca seria forte o bastante para manifestar sua intolerância. Não apenas no que dizia respeito à Sirius, mas em todo o resto. Levou a mão ao rosto. Ainda havia o cheiro de rosas.

Percebeu vagamente que Sirius estava de pé, dando a volta na mesa. Parou ao seu lado, o sorriso ainda dançando em seus lábios finos. Tinha voltado a usar barba, talvez para esconder um pouco as marcas que Azkaban deixara em sua expressão. Sempre vaidoso.

As mãos de Sirius envolveram suas mãos, os se fechando dedos vagarosamente. A lentidão que sempre irritara Remus. Talvez mais um teste. Os olhos cinzentos estavam escurecidos, quase negros, a luz imprimindo reflexos avermelhados em seus cabelos. Remus inclinou o corpo para frente. Seus lábios roçaram de leve. Os braços de Sirius já estavam a meio caminho de envolvê-lo quando o lugar foi invadido por uma viva luz verde.

O espectro verde-esmeralda de Kingsley Shacklebolt surgiu em meio às chamas. Estava olhando para um pergaminho e começou a falar, sem se dar conta do que acontecia na sala:

- Dumbledore acaba de acionar a Ordem, Arthur Weasley pode ter sido atacado enquanto montava guarda, prova... - as palavras morreram na boca do auror quando ergueu os olhos e se deparou com a cena. Remus tinha perdido o equilíbrio e escorregara da cadeira, carregando Sirius consigo.

Os dois tentavam se desfazer do emaranhado de pernas e braços e se erguer do tapete puído, sem muito sucesso. Kingsley voltou a olhar para o pergaminho, limpou a garganta e, parecendo terminantemente decidido a ignorar a cena, continuou a reportar a mensagem:

- Provavelmente, os Weasley vão ser levados para a sede - falou, sua voz grave soando excessivamente formal.

Remus conseguiu se erguer sobre os joelhos e, tentando ignorar a falta de dignidade da situação, perguntou:

- O que aconteceu com Arthur?

- Não sabemos ainda se algo realmente aconteceu - Kingsley enrolou o pergaminho num cilindro e o transformou em cinzas entre suas mãos. - Estamos tentado descobrir.

Sirius ficou de pé e se adiantou em direção à lareira.

- Eu posso fazer alguma coisa? - perguntou o bruxo.

- Prepare-se para receber os garotos - respondeu o auror. - E Lupin - continuou, voltando-se para Remus -, Dumbledore quer lhe ver imediatamente.

Remus acenou com a cabeça e, no instante seguinte, as chamas tinham voltado ao brilho avermelhado natural e não havia resquício da imagem de Kingsley. Lançando um último olhar consternado a Sirius, Remus andou em direção à porta, seus passos ecoando na casa deserta.

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Maybe they could release me
(Talvez possam me libertar)

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- Almofadinhas, há quanto tempo você não pega sua correspondência? - perguntou Remus, acenando da entrada do apartamento com uma pilha de cartas na mão.

Sirius estava esparramado sobre o sofá, a cabeça acomodada nas mãos e os pés apoiados no encosto para braços. A sala apresentava um discreto caos, como que a caminho de se transformar numa verdadeira bagunça. As botas de Sirius jaziam no meio do cômodo, as meias um pouco adiante e um chapéu pontudo próximo ao pé de uma mesa. Sobre o aparador havia uma lata de cerveja amanteigada. A poltrona tinha sido coberta pela capa de viagem. O tapete estava salpicado de cinzas da lareira, agora apagada.

Sirius abriu levemente os olhos, confuso. Então esfregou o rosto e sacudiu os ombros, antes de se espreguiçar largamente, os pés se esticando no caminho de Remus. Sentou-se, os olhos ainda desfocados de sono. Cobriu um bocejo com a mão.

- Correspondência? - indagou, assim que conseguiu falar. Remus mostrou as cartas, mas tudo que Sirius fez foi erguer as sobrancelhas.

- São cartas trouxas, veja - indicou, mostrando os envelopes e apontando os selos coloridos. - Sua caixa de correio estava tão cheia que o porteiro perguntou se o apartamento costumava ficar vazio. Acorde, Almofadinhas! - reclamou, quando Sirius voltou a se acomodar nas almofadas, os olhos semicerrados.

- Estou com sono - murmurou, a voz pastosa de sono. - Por que veio tão cedo?

Remus balançou a cabeça. Eram dez horas da manhã. Mas isso não parecia ter qualquer importância para Sirius, que já tinha pegado no sono novamente. Não conseguiu deixar de sorrir. Raramente já tivera a chance de ver uma expressão tão tranqüila em seu rosto. Nada de sorrisos provocativos, olhares intimistas. Os cabelos negros formavam ondulações sobre o tecido claro do sofá.

Remus jogou a capa numa poltrona, sobre a capa de Sirius. Deixou a correspondência em cima do aparador. De todo modo, não tinha grande importância. Quase todas eram propagandas. Foi quando ele viu. Andrômeda Tonks. Pegou o envelope. Definitivamente trouxa. O endereço do remetente indicava algum lugar no país de Gales.

- Sirius - chamou. A resposta veio na forma de um murmúrio desconexo. - Sirius, o nome da sua prima não é Andrômeda? – insistiu. Outro resmungo em resposta.

Remus tinha certeza de ter ouvido Sirius dizer que sua prima tinha se formado em Hogwarts. Por que uma bruxa formada mandaria cartas pelo correio?

- Sirius, acorde! - exclamou Remus, ao que o outro se sentou automaticamente no sofá, os olhos arregalados, completamente desperto.

- O que foi? - perguntou, assustado.

- Uma carta da sua prima - Remus sacudiu o envelope diante de seus olhos. Irritado, Sirius o arrancou de suas mãos.

Sirius rasgou o envelope e puxou de dentro uma folha de papel dobrada em quatro. Desdobrou-a. Seus olhos correram pelas linhas bem escritas em tinta azul, a letra muito fina e inclinada. Um sorriso iluminou seu rosto.

- Ela está com problema em enviar corujas, acha que estão sendo interceptadas - anunciou. - E também... - Sirius voltou a pegar o envelope e tirou de dentro uma fotografia. - Mas está com defeito!

Remus se inclinou sobre o ombro de Sirius para ver a fotografia. Uma bruxa com fartos cabelos castanhos, o nariz afilado e os lábios cheios, segurava nos braços uma menina com cabelo vermelho-berrante. As duas permaneciam estáticas, sorrindo da superfície brilhante da fotografia colorida.

- Não está com defeito - contestou. - É uma fotografia trouxa.

- Fotografia trouxa? - indagou Sirius, cutucado a foto com o indicador, na tentativa de fazê-la se mexer. - O que tem isso?

- Fotos trouxas não se mexem, Almofadinhas - Remus sorriu amarelo. - O que você fazia nas aulas de Estudo de Trouxas?

- Acho que faltei a todas elas - Sirius deu de ombros. - Era mais divertido te encurralar em corredores que ficar aprendendo como os trouxas cozinham.

Um leve tom róseo surgiu nas bochechas de Remus.

- Essa mulher é sua prima Andrômeda? - perguntou, desviando estrategicamente de assunto. Sirius acenou positivamente. - E a menina?

- Filha dela - Sirius sorriu. - Nymphadora. Andrômeda diz que tem um temperamento parecido com o meu.

- Tenho pena da sua prima então - considerou Remus. Antes que Sirius tivesse a chance de contestar, indagou: - E o cabelo vermelho?

- Nymphadora tem alguns dons especiais para magia. Imagino o que minha mãe diria se soubesse - Sirius se ergueu do sofá, esticando os braços. Deixou a foto cair sobre a mesa. Pegou a lata de cerveja amanteigada e a balançou. Vazia. - Uma criança nascida de uma bruxa renegada pela família e um trouxa tem habilidades mágicas que nunca nenhum Black sangue-puro jamais teve.

Foi andando em direção à cozinha. Remus o seguiu, para protestar quando Sirius abrisse um armário e estendesse a mão para pegar outra cerveja amanteigada.

- Isso não é café da manhã - sentenciou, empurrando Sirius para uma cadeira e colocou uma frigideira sobre o fogão.

Sirius apoiou o queixo nas mãos e ficou observando as ações de Remus, acendendo fogos, fervendo água e fritando ovos. Puxou uma carteira de cigarros do bolso da calça e começou a apalpar os bolsos do casaco, procurando o isqueiro.

- Não fume quando eu estiver aqui - ordenou Remus, do fogão. Sirius riu e voltou a guardar os cigarros. Era como se Remus tivesse olhos nas costas, adivinhando seus hábitos, suas manias. Era quase como se pudesse ler pensamentos.

- Aluado - chamou. Remus fez um barulho para que ele prosseguisse. - Onde esteve?

Remus parou de mexer os ovos com a espátula. Suspirou.

- Me escondendo em casa - apontou um dos armários com a varinha. As portas se abriram e dois pratos saíram flutuando em direção à mesa. - Era lua cheia.

Sirius afastou os cotovelos para que os pratos se posicionassem, sendo seguidos de xícaras, pires, talheres e a garrafa de café. A cesta de pão veio em seguida e Remus se aproximou da mesa com a frigideira.

- Antes disso - insistiu Sirius. - Você já estava sumido antes disso.

- Estava em uma missão. Ovos? - Sirius acenou com a cabeça e Remus serviu seu prato. Então se sentou e encheu a xícara de café.

Sirius também encheu a própria xícara e atacou os ovos com apetite.

- Que tipo de missão? – perguntou após alguns minutos, a boca cheia de pão.

- Do tipo secreto - encerrou Remus.

Sirius engoliu. Rugas se formaram em sua testa. Tinha perdido o ar levemente curioso e agora parecia intensamente desconfiado.

- Existe alguma coisa secreta entre nós? - voltou os olhos para Remus, que imediatamente desviou o olhar. Se existiam coisas secretas entre eles? Claro que existiam. Muitas. Sirius deveria saber que não era exatamente fã da sinceridade. Principalmente naquele assunto.

- Algumas coisas - corrigiu. - Nada muito importante.

- Se não é importante, não tem problema se você me contar - os olhos cinzentos se estreitaram, inquisidores.

- Tem problema sim - Remus empurrou o prato. Levantou-se. Fugir de novo? Sim. Caminhou de volta para a sala, tentando não pensar que Sirius o seguia. - Não posso ficar, só vim ver se estava tudo bem - falou, agarrando a capa de viagem e a jogando sobre os ombros.

- O que você está escondendo agora, Aluado?

Remus suspirou. Não podia dizer. Não era hora para querer esclarecimentos. Sirius exigia, era sempre muito claro em expressar as coisas que queria. Nada de formalidades, volteios, hesitações. Remus cerrou os punhos. Não gostava de ser pressionado. E os olhos de Sirius cheios de exigências. Talvez já tivessem decidido. Sirius tinha se escolhido a desconfiança.

- Decida você, Sirius - falou, amargo, antes de bater a porta atrás de si. Permaneceu parado no corredor, as costas apoiadas na porta, sentindo-se terrivelmente vazio, a expressão surpresa de Sirius ainda gravada em sua mente, tão clara que quase ainda podia vê-la nas sombras do corredor. Novamente sozinho. Quando tinha se deixado levar pela ilusão de que um dia deixaria de estar sozinho? Quando tinha se permitido ser contagiado pela esperança?

Escondeu as mãos dentro da capa e seguiu pelo corredor escuro. Sentiu algo gelado tocando seus dedos. Trouxe para fora. O isqueiro prateado de Sirius. Tinha pegado a capa errada.

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Let the people decide
I've got nothing to hide
(Deixe que as pessoas decidam
Não tenho nada a esconder)

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O vulto passou rapidamente pela abertura na parede do prédio em ruínas. As janelas sem vidros haviam sido seladas com tábuas, uma precaução de pouca importância em virtude das aberturas nas paredes que pareciam resultado de uma guerra. Por esses buracos os vândalos haviam entrado e levado tudo que era possível, desde partes da fiação elétrica até as portas de madeira. Desenhos disformes adornavam as paredes descascadas.

Remus empurrou um pouco para trás o capuz da capa a fim de examinar melhor o ambiente. O lugar dava arrepios. O vento passava pelas frestas das tábuas das janelas, espalhando por todo lugar um som sinistro. Algumas partes das paredes haviam sido erodidas por infiltrações, revelando um emaranhado de canos enferrujados. Teias de aranha formavam verdadeiras coberturas nos cantos das paredes.

Os olhos castanhos do bruxo perscrutavam os corredores à medida que avançava, interessado em cada detalhe. Voltou a cobrir o rosto e caminhou em direção a uma escada. Grandes trechos do corrimão eram representados apenas por tocos de madeira, enquanto o restante era perigosamente instável. Remus apertou a varinha entre os dedos, a mão escondida nas dobras da capa de viagem. Subiu as escadas com cautela, sempre mais perto da parede. Avançava devagar, testando os degraus antes de apoiar o peso. A madeira estalava perigosamente em alguns deles.

Chegou ao último andar. Não tinha paredes divisórias, era apenas um amplo salão com colunas para sustentar o telhado. Em alguns lugares, o forro de gesso havia cedido e era possível ver as telhas avermelhadas e, eventualmente, o céu noturno. Lá estavam as estrelas, os pontos prateados perfurando a escuridão. E também a lua, seu círculo de luz quase completo. Era véspera de lua cheia. Dia de reunião na Sociedade.

Mais e mais bruxos se juntaram a ele, subindo pelas escadas ou adentrando pelos buracos do teto montados em vassouras, todos usando capas negras, com capuzes que lhes escondiam as feições. Uma circunferência foi sendo composta. Não havia qualquer som, exceto o do vento e o do movimento do trânsito alguns andares abaixo. Ninguém falava.

Quando o último espaço vago foi preenchido pelo último bruxo a chegar, um deles caminhou até o centro iluminado. Era o único que não ocultava o rosto. Era um homem corpulento, alto, o cabelo desbotado se erguendo de maneira selvagem em torno do rosto grosseiro, com olhos saltados e maxilar proeminente. Os bigodes acinzentados tocavam o lábio superior. Fenrir Lobo Greyback.

Remus suspirou. Tentava prestar atenção no que Greyback dizia, sua voz ecoando como um latido selvagem. Eram uma sociedade em crescimento, ele dizia. E quanto mais jovens convocassem para o lado deles, mais cresceriam. Convocar, pensou Remus, era um eufemismo bem grosseiro para contaminar alguém com uma maldição daquelas.

Era um dos poucos adultos ali. A grande maioria era formada por adolescentes e adultos muito jovens, "recrutados" por Greyback. Era quase um clã de lobisomens. Exceto pelo fato de que um clã pressupõe algum tipo de apoio. A Sociedade, como Greyback os chamava, era um agrupamento de suas vítimas, que ele catequizava de acordo com suas doutrinas, para que espalhassem a maldição, sobretudo entre crianças.

Eram bruxos amargurados com a condição degradante reservada aos lobisomens dentro da sociedade bruxa, sedentos de alguma forma de vingança, algum meio de castigar a todos pelo próprio sofrimento a cada nova lua cheia. Muitos deles tinham sido abandonados por suas famílias, afastados do convívio social do mundo bruxo. Viviam isolados ou em pequenos grupos, irmandades fechadas. E a Sociedade de Greyback, acenava-lhes com a perspectiva de sair das sombras e caminhar entre os bruxos como seus superiores. Uma proposta era boa demais para não ser aceita.

- Somos criaturas superiores! - bradava Greyback. - Nossa constituição é mais forte, nossos poderes mais intensos, nosso instinto mais preciso.

Impossível condená-los, avaliou Remus. Ainda que ele tivesse tido a sorte de ser apoiado por pessoas fantásticas em sua jornada de lobisomem, tinha consciência de que a maioria dos lobisomens não tinha a mesma sorte.

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I've done nothing wrong
So why have I been here so long?
(Não fiz nada de errado
Então por que estou aqui há tanto tempo?)

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- Senhor Remus Lupin – Remus ergueu os olhos para o bruxo que entrou carregando uma pasta marrom. Fechou e porta e sentou-se do outro lado da mesa. Abriu a pasta sobre os braços e abaixou os olhos para a pilha de pergaminhos. - Seu nome consta no Registro de Lobisomens do Ministério da Magia.

Remus tinha as mãos pousadas sobre a mesa branca. Raspava com a ponta da unha uma mancha de tinta. Observou vagamente quando o bruxo esticou um pergaminho sobre a mesa. Pousou sobre ele uma pena verde-ácido, que continuou de pé, sem apoio.

- O senhor fez diversas visitar a Sirius Black nos últimos meses - o homem pousou a pasta na mesa, exibindo um novo pergaminho. Remus leu de cabeça para baixo uma lista de datas e horários. Cerrou os dentes. Desde quando tinha espiões do Ministério monitorando seus passos?

- Ele é meu amigo - falou, num tom muito formal. Ouviu o som da pena verde arranhando rapidamente o pergaminho. - Desde que éramos crianças - novamente o som da pena.

O bruxo voltou a remexer os papéis.

- Então é verdade que o senhor manteve comunicação com Sirius Black desde...

- Desde sempre - interrompeu. - Quem é o senhor? Por que está me interrogando?

O homem esboçou um sorriso, então voltou a revirar os pergaminhos da pasta. Remus fechou os olhos, as mãos agarrando a borda da mesa. Apertava os dedos com força em torno da madeira, sentido a palma da mão doer com a pressão. Por que de repente sentia-se novamente como o menino que observava através das barras do corrimão da escada? "Um monstro!"

Abriu os olhos. De volta à sala de interrogatórios. O homem ainda remexia os papéis da pasta. Que estaria procurando? Remus não sabia o que aquele homem estava achando que ele fizera, mas sabia que já estava condenado. Lobisomem. Um lobisomem inocente? Um lobisomem bonzinho?

Certa vez, James dissera que era um lobisomem quase humano, antes de rir do próprio comentário. Bem, naquele instante, Remus não se sentia humano. Sentia-se como uma coisa qualquer, rotulada, destinada a ser para sempre forçada para dentro de uma fôrma. Remus escondeu as mãos dentro da capa de viagem. Seus dedos se fecharam ao redor de um objeto metálico. O isqueiro de Sirius. Aquele único objeto para lembrá-lo de que não estava completamente sozinho.

Você conhecia Lily e James Potter?, "Você acha que Black e Potter se davam bem?", "Qual era a ligação de Black com a família?", "Black alguma vez citou o irmão, Regulus Black? E Bellatrix Lestrange?". Remus apenas maneava com a cabeça e, semiconsciente, respondia com monossílabos. Não, não vira Sirius Black naquele dia. Nem no dia anterior. Nem nos últimos três dias. O que Peter tinha a ver com isso? A pena verde corria com velocidade pelo pergaminho, uma linha após a outra, registrando as perguntas e respostas com agilidade.

O mundo inteiro parecia girar a cada pergunta e Remus se esforçava para se manter seguro junto à mesa, os pés firmes no chão. Ele queria saber logo o que tinha acontecido. Mesmo que não tivesse acontecido nada e ele estivesse sendo interrogado simplesmente por seu nome constar no Registro de Lobisomens. Com Bartô Crouch conduzindo uma caça irracional a qualquer um que tivesse a menor chance de ser um Comensal da Morte, Remus não poderia descartar essa possibilidade.

- Por quê? - indagou, tentando não parecer grosseiro quando recomeçaram as perguntas a respeito de Sirius. - Eu vou responder todas as perguntas que precisar, mas preciso saber se alguma coisa aconteceu...

O bruxo desviou os olhos da pasta, sua boca levemente aberta com a intromissão. Voltou a selecionar documentos antes de responder:

- Só precisamos acumular evidências contra Sirius Black - limpou a garganta antes de continuar - e seus possíveis cúmplices.

Remus se inclinou para trás na cadeira. "Evidências contra Sirius Black"? Encolheu os ombros, milhares de pensamentos atravessando sua mente ao mesmo tempo. As perguntas excessivas de Sirius. Suas insistências em receber respostas. Sua determinação em ser Fiel do Segredo de Lily e James. Ao que o bruxo finalmente acabou sua lista de perguntas, estendeu o comprido pergaminho do depoimento para que Remus assinasse.

Deixou o prédio do Ministério em meio a uma tempestade. Londres estava cinzenta sob a chuva e a água se acumulava nas ruas, cobrindo as calçadas. Os carros passavam levantando cortinas de água. A cidade se transformara num mar de guarda-chuvas coloridos.

Vale a pena morrer pelas coisas sem as quais não vale a pena viver. Lily tinha dito isso certa vez. Ela e James tinham morrido para salvar o filho. Remus parou de andar, a água barrenta chegando ao seu tornozelo. Raios enfurecidos rasgavam o céu. Deixou a água fria lhe encharcar suas vestes, seus cabelos, fundindo-se com o traçado das lágrimas. Escondeu o rosto nas mãos, mas mesmo assim ainda podia deixar vê-lo diante de si, com seus jeans puídos, o ar indolente, os olhos cinzentos brilhando.

Uma noite sem estrelas. Não se pode ver o céu quando chove. Remus continuou andando. Andou, sem saber para onde ia, porque queria pensar mais devagar, porque queria ficar tão exausto que caísse imediatamente no sono quando chegasse em casa. Andou porque era a única coisa que podia fazer.

O dia seguinte amanheceu claro, o mundo inteiro lavado pela tempestade. Remus voltou ao Ministério. E voltaria outras tantas vezes antes de finalmente convencê-los de que não tivera nada a ver com a traição de Sirius Black. Trancafiado em Azkaban. Não era isso que Snape tinha dito depois da brincadeira que quase o fizera ser morto por um lobisomem? Que um dia Sirius ia ser trancafiado em Azkaban? Era uma ironia que aquela previsão tivesse se concretizado.

Ou talvez Remus nunca tivesse examinado com cuidado as atitudes de Sirius. Afinal, ele era um Black. E seu irmão tinha sido um Comensal da Morte. E sua prima. E, depois de tudo, ainda era o culpado por Remus ter de comparecer dezenas de vezes diante de aurores e repetir as mesmas histórias. "Você e Black eram bons amigos?" Quando ouviu essa pergunta, Remus teve vontade de negar, ele e Sirius nunca tinham sido realmente amigos. Eram bem mais que isso, e era essa dimensão da traição que ele não aceitava. Não podia aceitar. Porque aceitar isso significaria que nem amar ele sabia.

Mas não adiantava tentar voltar atrás. Porque, mesmo depois de tudo, Sirius ainda estava presente - em todos os lugares para onde olhasse, era Sirius que estava lá. Chegava mesmo a sentir a sua respiração. Insuportável. Inaceitável. Então Remus resolveu fechar os olhos. Não queria mais ver. Talvez, se ficasse enfurnado dentro de si mesmo, se nunca mais se desse a chance de ver a claridade do mundo, então não teria mais que temer encontrar Sirius.

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Unplayed pianos
Are often by a window
(Pianos intocados
Estão freqüentemente perto de uma janela)

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Remus desviou os olhos para a janela. O frio da noite, as estrelas tão próximas que pareciam querer tocar a casa. E o vento sacudindo as cortinas o fez se sentir verdadeiro. E aquelas palavras, ainda flutuando entre ele e Sirius. “Não precisa ficar aqui me fazendo companhia”.

Uma frase simples. Não precisava de companhia. Mas Remus conhecia os sentidos ocultos por trás daquelas palavras. Sirius Black não tinha medo de pedir o que precisava. E ele precisava de companhia. Mas não queria mais a companhia de Remus. Estava autorizando Remus a sair. Mais que isso, Sirius estava intimando. Estava sendo expurgado de sua vida, exatamente como acontecera com quase toda a velharia retirada da mansão durante a faxina.

Sirius estava sentado diante do piano velho. Nenhuma só tecla resistira ao tempo. Grande parte delas estava afundada e outras tinham caído, restando apenas espaços vazios a intervalos irregulares. Um piano silencioso, mudo.

- Por que está dizendo isso? - perguntou Remus. Estava de pé diante da janela, o corpo banhado pela claridade prateada da noite.

Os dedos de Sirius deslizaram nas teclas. Não houve nenhum som. Sob a luz tênue das brasas que ainda resistiam acesas, seus olhos pareciam estranhamente transparentes, como profundos fossos onde a água ondulava com uma luminosidade sobrenatural. E a resposta? Era o que Remus perguntava com os olhos.

- Você deveria consertar esse piano - Remus apoiou os cotovelos sobre a cauda do móvel. A madeira estava gasta, o brilho do verniz completamente desaparecido, profundos arranhões formavam um relevo irregular. - Assim poderia se distrair tocando.

Sirius levantou o rosto, o olhar transparente se fechando em Remus. Não desviou os olhos dessa vez. Remus o encarou. Pela primeira vez em muito tempo o encarava realmente.

- Não quero tocar – respondeu Sirius. Um sorriso de escárnio surgiu em seu rosto. - Quero que esse piano seja tão inútil quanto eu. Um piano que não se pode tocar.

Remus suspirou. De novo aquela conversa. Ele acreditara que era o único que poderia manter Sirius lúcido dentro daquela casa. Mas ultimamente não estava sendo suficiente. Observou os vergões na superfície do piano. Não podia consertar Sirius, podia? O piano poderia ser reformado. Sirius... eles não tinham como voltar ao passado.

- Por que quer que eu vá embora, nós..

- Remus - Sirius o interrompeu. Estava muito sério. Estendeu a mão sobre o apoio da partitura para que o outro a segurasse. Remus obedeceu a ordem silenciosa. - Estou preso de novo. E você fica aqui, tentando me fazer ficar satisfeito com isso. É impossível, não vai acontecer. E isso está nos matando.

Remus desviou os olhos. Incomodava-lhe que de repente fosse Sirius a fazer as reflexões lógicas. Ele estava muito satisfeito em lutar, sabendo que Sirius estava seguro em algum lugar, xingando Mostro, fazendo comentários sarcásticos sobre sua condição, cantando para Bicuço. Um egoísmo? Talvez fosse. E agora Sirius anunciava que não queria mais. Remus deveria saber. A passividade nunca fizera parte da personalidade de Sirius. Ele não sabia ficar parado, não sabia ouvir, não queria ser acalmado. Não ia mais ficar parado para que todos soubessem que estava a salvo.

- Agora quero que vá embora - falou Sirius, com firmeza.

Remus vagou os olhos pela sala. As cortinas se mexendo como fiapos de fumaça. O fogo da lareira se refletia na face de Sirius, e na vidraça do armário. A poeira sobre os móveis, no chão, se erguendo na luz da noite como pequenos grãos de prata. Olhou para o piso de madeira. Contou o número de divisões que havia entre o piano e a lareira. Seus olhos recaíram sobre um quadro posicionado numa prateleira atrás dos vidros do armário. Sobre um fundo de veludo vermelho, dezenas de olhos coloridos presenciavam aquele momento. Borboletas. Uma farta coleção de brilhantes borboletas empaladas em alfinetes.

Olhou para Sirius. Era preciso falar? Mesmo que as palavras parecessem intrusas naquele momento? Ficaram se olhando, suas mãos comprimindo uma a outra num laço pálido. Agora está tudo bem. Estamos juntos, apesar de tudo - parecia a coisa certa a dizer. Estariam juntos sempre. Mas essas palavras não seriam ditas. Sirius apertou com força sua mão. Não deixou que Remus se demorasse mais. Era o fim. E, como uma das borboletas imóveis, Remus sentiu-se um pouco mais morto naquele dia. Um morto que ainda continuaria vivendo, andando e falando, mas efetivamente um cadáver, vivo apenas aos olhos daqueles que o observavam através do vidro.

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In a room where nobody loved goes
(Em uma sala onde ninguém amado entra)

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Remus Lupin era um bom professor. Essa opinião era compartilhada por todos os pais dos alunos que ensinava. Durante as várias semanas que o Ministério tinha levado para preparar o inquérito contra Sirius Black, Remus fora chamado a depor tantas e tantas vezes que sua condição de lobisomem não passou ilesa às manchetes de jornal. E que escola contrataria um lobisomem para seu quadro de professores?

As boas relações de Remus com antigos colegas de escola e, principalmente, o apoio de Dumbledore tinham lhe ajudado a se estabelecer como professor particular. Dava aulas de reforços e fazia revisões para alunos que iam prestar N.O.M.s e N.I.E.M.s. Não era a vida que ele tinha desejado quando decidira ensinar, mas não era de tudo ruim. O bom era que sempre trabalhava muito, todo o tempo que pudesse. E isso de algum modo ajudava a esmorecer a tempestade que vivera após o dia das bruxas do ano de 1981.

Em poucos meses, tinha mudado radicalmente. Escrevera para dois primos pedindo que viessem buscar algumas coisas de família que ele achava que poderiam ter algum valor sentimental. Fez com que eles levassem até mesmo as travessas de prata que seus pais haviam ganhado de presente de casamento. O restante das coisas foi embora mais devagar. Algumas foram vendidas. Outras dadas de presente. Na altura do início de 1982 já não se sentia na mesma casa.

Tinha mudado também de vida e, principalmente, de reclamações. Porém, apesar de poder enumerar uma série de mudanças, Remus sentia-se exatamente o mesmo. Igual, ao menos na essência. O que realmente tinha mudado era o material que usava para construir os muros ao redor de si. Remus tinha acreditado firmemente que em pouco tempo teria superado. Não a dor da perda de Lily e James, isso ele sabia que nunca ia superar, mas aquela terrível sensação de que nunca mais encontraria todos os pedaços em que se partira. Naquele tempo, Remus ainda subestimava a profundidade com que Sirius Black tinha se entranhado nele. Mas já não havia nada que pudesse fazer, a não ser seguir em frente e agradecer ao apoio que recebera para sobreviver. Ainda que não estivesse bem certo de que queria sobreviver.

- Você poderia tentar a França - lhe foi sugerido. - Lá não haveria todo esse alarde e você poderia ser aceito numa escola.

Mas Remus não queria mais mudar. Não queria porque isso significaria que tinha perdido para Sirius. O traidor o teria expulsado de sua casa. Não, melhor insistir naquela vida pequena. Pequenas realizações, pequenas alegrias, pequenas dores. E continuava sozinho. Estava sempre acompanhado na verdade, mas sua verdadeira e constante companheira era a solidão. Ele evitava pensar nisso, exceto quando atravessava o cemitério ao lado da propriedade dos Lupin para se trancar na cripta a cada lua cheia.

Às vezes tinha a necessidade de procurar o lugar onde sua maldição começara. O bosque além da cerca viva do quintal da casa. Andava pelas trilhas, tentando adivinhar o exato local onde acontecera. Mas não se lembrava. A única imagem daquela noite que permanecia em sua mente era a de ver os olhos avermelhados do lobo nas sombras. No instante seguinte, despertara em sua cama, o braço enfaixado doendo tanto que mal conseguia falar. Seus olhos imediatamente focalizaram o rosto preocupado de sua mãe. Reconheceu o teto de seu quarto. Reconheceu seus lençóis. Os sons próprios de sua casa. O perfume das flores que cresciam sob a janela. A voz serena dizendo que ele não se preocupasse com mais nada.

Mas, embora tudo estivesse claro e reconhecível, ele já naqueles primeiros instantes percebera sensíveis diferenças. Era como se vislumbrasse seu mundo antigo através de um véu transparente, que modificava cada um de seus elementos de modo quase imperceptível. Quase. Porque a soma de tantas diferenças resultava, para ele, em uma mudança gritante. Mas só ele parecia perceber. Aquela sensação o chocara num primeiro momento, mas agora lhe parecia natural. Não se lembrava de já ter visto o mundo de outra forma. Mas naquele primeiro dia ficara impressionado. Observava as sombras que a luz do sol fazia nas dobras do lençol, sentindo que o tecido estava de algum modo diferente ao toque. Os odores pareciam ter sempre algo de amargo e a comida que lhe traziam nunca estava boa como costumava ser. Ficava incomodado com o excesso de luz que entrava pela janela. Subitamente ela se tornara clara demais, quente demais. Ou talvez fosse simplesmente o fato de que ele agora se sentia inexplicavelmente atraído pela escuridão. Levantava-se no meio da noite, sentindo-se eufórico demais para dormir, e se debruçava na janela para mirar, fascinado, a face encurvada da lua minguante. E durante o dia só queria dormir, dormir e esquecer que sentia dor – ela sempre piorava durante o dia –, dormir e esquecer a face preocupada de sua mãe quando fazia observações sobre seu novo comportamento, esquecer os olhos úmidos dela quando entrava no quarto após discutir com seu pai, esquecer a forma como tocava seus cabelos levemente e dizia que tudo ia ficar bem.

Remus tinha oito anos quando fora amaldiçoado. Mas já sabia que nada ia ficar bem. Não quando um medibruxo vinha vê-lo todos os dias e quando funcionários do Ministério invadiam a casa e passavam várias horas fazendo perguntas sobre como Remus se machucara naquela tarde na floresta. No início, tinha ficado inibido em dizer a verdade. Diriam que estava inventando. Um lobo enorme, que andava como um homem encurvado? Não, era provável que tivesse imaginado... Mas depois, com a insistência das perguntas e a repetição das visitas, acabou contando o que se lembrava. E arregalou os olhos de surpresa ao perceber que ninguém achava que fosse uma invenção. Ao contrário, eles se comportavam como se já esperassem por aquilo.

Na metade de 1982, Remus se cansou do bosque e resolveu que não queria mais as fotografias de família. Conhecia todas. E aqueles tantos sorrisos felizes lhe pareciam falsos. Porque a felicidade deles era uma falsidade. Foi nessa época que Remus se deu conta disso. Esquecer podia ter parecido uma boa idéia, mas não fora justo para ninguém. Sua mãe deveria ter tido a chance de rejeitá-lo se era isso que ela queria. E deveria também ter tido a chance de aceitar a situação, ainda que tivesse levado anos.

Em dia pegou todos os porta-retratos e os levou a um antiquário. O dono do estabelecimento ficou maravilhado e pagou um bom preço até pelas fotografias. Colecionava fotos antigas, explicou. Remus não queria realmente saber, só queria parar de ouvir os gritos histéricos de sua mãe ecoando na casa quando se lembrava da noite em que fora informada que seu filho estava amaldiçoado para o resto da vida. O som de coisas caindo, vidros se quebrando.

Quando a crise nervosa da senhora Black finalmente tinha acabado e restava apenas o silêncio na casa, seu pai veio vê-lo. "Sua mãe não tem como entender algumas coisas", dissera, pesaroso, segurando as pequenas mãos do filho entre as suas. "Você sabe, as coisas dos bruxos". O pequeno Remus sacudira a cabeça em concordância. Ele sabia que a mãe não entendia a magia. Era trouxa. Mas não entendeu imediatamente por que isso tinha alguma relação com o que acontecera com ele. Pensava que isso só tinha a ver com o fato de sua mãe cozinhar de maneira tão diferente das irmãs de seu pai e de se assustar sempre que usava o aparelho de chá com xícaras auto-mexíveis.

Agora escute, dissera John Lupin, muito sério. Havia algo de dolorido atrás das lentes de seus óculos. "Você está doente. Aquele animal que te mordeu te fez ficar doente. E é por isso que sua mãe está tão chateada". Mas naquela época não se sentia doente. Achava, na verdade, que estava melhorando. Já haviam se passado duas semanas do ataque na floresta e não se sentia de modo algum doente. Tinha se recuperado bem, assim como os hábitos estranhos foram desaparecendo. Mas nada lhe tirava a impressão de que o mundo não era – e não seria nunca mais – o mesmo. Deveria ser um engano. Disse isso ao pai. Mas John apenas sacudiu a cabeça e afagou os cabelos do filho. Não era assim tão simples, disse. E Remus logo descobriria que nada seria de modo algum simples dali em diante.

Coisas que Remus não queria mais lembrar. Em poucos meses, tudo que havia restado da decoração original da casa era o velho piano de causa junto à janela. Remus até pensou em chamar o dono do antiquário para vê-lo. Mas desistiu. Não conseguiria andar pela sala sem se sentir mal em não ver o piano. Era uma boa lembrança, afinal. Pura. Desprovida de vinculações com memórias ruins.

Exceto por Sirius Black. E ele de novo, determinando sua vida. Ainda guardava o isqueiro prateado. E ia ficar com o piano. Gostava de tocar até. Mas nunca tocou. Nos doze anos em que Remus permaneceu sozinho naquela casa, nunca ergueu a tampa do teclado. Nem uma única vez.

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She sits alone with her silent song
Somebody bring her home
(Ela se senta sozinha com sua canção
Alguém a traga de volta para casa)

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Estavam reunidos em torno da mesa da cozinha. O fogão estava apagado e a luz provinha de tocos de velas colocados sobre a mesa. Remus ficou observando o percurso de um fio de cera em direção à madeira. As chamas dançavam a cada vez que alguém abria a porta da cozinha. Muito movimento. Sentia-se afogado em toda aquela movimentação. E, mesmo sabendo que a Ordem da Fênix era prioridade para todos eles, lhe parecia injusto simplesmente abandonar o lugar.

Mirou o rosto abatido de Nymphadora Tonks. Ela tinha os braços cruzados e mordia o lábio inferior, os olhos verdes cintilando às luzes oscilantes das velas. Olhava para o vaso de flores sobre a mesa, as pétalas negras das rosas se soltando uma a uma da corola para formar um círculo negro em torno da porcelana clara.

Era estranho que houvesse um luto sem ter havido um enterro. Talvez por isso as pessoas não se sentissem muito a vontade para falar. Remus agora se sentia fraco, comprimido contra as próprias muralhas, outra vez perdido de si mesmo. Mais uma vez, tinha permanecido. Como uma pedra fustigada por ondas de uma furiosa tempestade. Remus Lupin resistira. Fora deixado para trás novamente. E, estranhamente, não sentia um peso de morte no peito. Talvez porque, no fundo, não estivesse mais vivo. E nem sabia desde quando.

- Acho que ele deveria ter um túmulo - ouviu a voz vibrante de Kingsley Shacklebolt. Desviou os olhos da vela. Um grupo de integrantes da ordem discutia num dos cantos da mesa.

- Um túmulo simbólico - concordou uma voz asmática. Elifas Doge se encolhia dentro das vestes azuis.

- Não - Remus falou alto, chamando a atenção dos bruxos. - Duvido que Sirius fosse querer um túmulo apenas para cumprir uma formalidade.

Os bruxos se entreolharam. Kingsley balançou a cabeça, como se dissesse que a decisão era de Remus. O bruxo voltou os olhos para a mesa, quando sentiu um peso sobre os ombros e olhou para o outro lado. Os olhos verdes de Nymphadora Tonks o examinavam de perto.

- Vou sentir falta dele - murmurou ela. - Não o conheci como queria, mas foi bom ter um tio... por um tempo.

Remus acenou com a cabeça. Era uma pedra, ela não sabia? Já tinha perdido a capacidade de sentir. Ou queria acreditar nisso. O fim. A mentira. Estendeu a mão para as flores negras e comprimiu-as entres os dedos, as pétalas de despedaçando rapidamente até só restarem os compridos ramos verdes. Olhou para a palma da mão. Fora arranhada pelos espinhos, os traços vermelhos cortando a pele rósea. A dor era tão ínfima se comparada ao que ele estava sentindo.

Remus compreendia muito bem agora. Percebeu isso naquele momento. Nada fora incompreensível para ele, em nenhum momento. Tinha se apaixonado por aquilo que poderia acontecer somente nos seus delírios mais ilusórios, fruto de uma vontade sem tamanho de transgredir minhas próprias regras.

Vagou o olhar aflito pela mesa, como se nela buscasse as palavras. Nada de sorrisos falsos. Nada de palavras falsas. Será que ainda sabia ser verdadeiro? Talvez tivesse se escondido sob tantas máscaras ao longo do tempo que nem houvesse mais um rosto seu para revelar. E ele achava que era Sirius quem sentia medo de ficar sozinho. A verdade é que ninguém havia temido mais a solidão que o próprio Remus Lupin. O que pode ser construído no deserto? O que fazer com o tempo agora, que estavam perdidos um do outro? Como, depois de tudo, simplesmente continuar?

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Unplayed pianos
Are often by a window
(Pianos intocados
Estão freqüentemente perto de uma janela)

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Remus despertou com o sol lhe batendo nos olhos. Estava deixado numa posição desconfortável, sobre algo duro que não poderia ser sua cama. Sentia dor, muita dor, sua pele inteira ardia, a simples luz do sol o ofuscava e havia aquele imenso frio. Demorou algum tempo até que percebesse que estava no chão, seu pijama esfarrapado expunha sua pele ao frio intenso dos primeiros instantes após o nascer do sol. Seu corpo inteiro parecia ter sido esticado em várias direções, as articulações doíam a cada movimento. Havia arranhões e cortes profundos em seus braços e pernas, como se tivesse sido atacado por cães. Ao redor, o chão estava coberto de pedaços de madeira, estilhaços de vidro e pedaços de tecidos. Várias regiões do papel de parede apresentavam sulcos, como se tivessem sido retalhadas por garras imensas. O colchão fora rasgado em dezenas de pedaços.

Suspirou. Deveria ter ido para a cripta. A imagem do quarto destruído lhe era profundamente incômoda. Não por causa da destruição em si, mas da lembrança da primeira vez que aquilo acontecera. Despertara da mesma forma e, mesmo que fosse apenas uma criança na época, nem por um momento acreditara que outra pessoa tivesse destruído seu quarto. Ele sabia. Ele de algum modo sabia que uma parte monstruosa que habitava dentro dele havia sido a responsável por tudo aquilo. Era assim que tinha descoberto qual era a sua doença. Era por isso que fora encarcerado como uma besta no quarto antes do pôr do sol no dia anterior, a despeito dos protestos de sua mãe. Era isso que ele tinha se tornado. Lembrava-se da voz esganiçada de sua mãe. "Não vou deixar que seu pai te tranque lá de novo". Tinha os olhos voltados para baixo e parecia fraca, o rosto meio amarelado e os lábios muito pálidos. "Não o meu menino...". Ele não queria ser trancado também. Mas... "Eu não ligo, mãe", respondera, tentando soar confiante. "Eu vou ficar bem".

Remus nunca ficou bem. Não realmente. A cada nova lua cheia a dor era mais forte, a destruição era mais intensa, a vontade de jamais voltar a acordar era maior. E ele sempre repetindo para a mãe que ficaria bem, mais por querer acreditar que isso fosse possível que por realmente achar que agüentaria aquilo pelo resto da vida. Os feitiços de proteção do quarto eram sempre revisados, mas o lobisomem se tornava cada vez mais forte e violento. E Remus tinha medo de algum dia conseguir quebrar os feitiços e sair pela casa. A simples idéia lhe era apavorante. Foi quando surgiu a idéia da cripta. Ele mesmo fizera a sugestão ao pai. Fizeram tudo sem que a senhora Lupin soubessem. Limparam a velha cripta onde há muito tempo seus antepassados haviam sido sepultados. E o lugar foi preparado para resistir à força do lobisomem. E aquele tinha se tornado o túmulo do Remus humano, onde morria a cada nova lua cheia.

Remus fechou os olhos. Aqueles pensamentos consumindo suas poucas energias, fazendo com que permanecesse imóvel no chão, sentindo apenas o frio e a dor, torcendo para que isso afastasse os flashes de lembranças do enorme lobo revirando o quarto, uma fera faminta, ele mesmo preso dentro dela, vendo o que ela via, sentindo o que ela sentia, mas incapaz de dominar suas ações. Remus não soube quanto tempo permaneceu ali.

Ergueu a cabeça, o mundo girando com velocidade, uma dor aguda na nuca. Obrigou-se a se levantar. Tinha que "ficar bem" para ir a Hogwarts. Vestiu-se automaticamente e deixou desceu as escadas apressado, os olhos semicerrados mal suportando a luz do dia. Ficou alguns instantes parado junto à porta, despedindo-se da casa que por doze anos fora seu refúgio. Trancou a casa. Deu alguns passos pelo jardim e, com um leve movimento da capa de viagem, tinha desaparecido.

Em pouco tempo, Remus estava caminhando ao longo de um vagão de trem, desviando das crianças que passavam correndo. Carregava uma maleta de couro gasto. Suas vestes eram desbotadas, com remendos nos cotovelos. Estava muito abatido, pálido, os olhos fundos em seu rosto cansado. Escolheu uma cabine vazia e caiu pesadamente no banco.

Deveria ter esperado um pouco mais, pelo menos tempo suficiente para se recuperar da última lua cheia. Mas a verdade é que Remus Lupin queria estar naquele trem no dia primeiro de setembro. Desde que tinha aberto o jornal há algumas semanas e se deparara com o cartaz de procurado de Sirius Black.

Remus recostou o corpo no banco, seu rosto comprimido contra o vidro gelado da janela. Lá fora havia uma verdadeira multidão de adultos, crianças, malas e bichos de estimação. Não sabia que sentia falta daquilo. Andar pelo trem tinha sido como percorrer um sonho. E, agora, a visão da janela o deixava nostálgico.

Hogwarts precisa de um bom professor de Defesa Contra as Artes das Trevas, agora mais do que nunca. Fora isso que Dumbledore tinha dito ao contratá-lo. A situação não deixava de ser irônica. Desde a queda de Voldemort estudar artes das trevas tinha se tornado algo impensável, mesmo que fosse para defesa. Com exceção dos aurores, que recebiam treinamento especial, poucos bruxos adultos se atreviam sequer a tratar do assunto seriamente, com a importância que ele merecia. A situação provavelmente era séria, imaginou, já que haviam chegado ao ponto de ter que contratar um lobisomem para ensinar a matéria. Remus sorriu tristemente.

Dumbledore tinha dito que seria mais fácil dessa vez. Severus Snape prepararia poções para ele, e o lobo ficaria inteiramente sob controle, nenhum perigo para as crianças. Remus nem mesmo teria que voltar à Casa dos Gritos. Perguntava-se se o salgueiro lutador ainda estaria no mesmo lugar. Tinha adquirido uma certa afeição pela árvore depois de alguns anos. Era a sentinela de seu segredo. Uma sentinela não tão boa assim, claro, porque não tinha impedido Sirius e James de rastreá-lo até a casa em ruínas em Hogsmeade.

E o castelo, como estaria? Remus se mexeu desconfortável no bando. Não poderia esperar muita coisa, um castelo milenar não mudava tanto assim em menos de vinte anos. Mas agora estaria sob severa vigilância de dementadores, lembrou-se vagamente, os olhos se fechando vagarosamente. Não ouvia o barulho vibrante das vozes do corredor. E nem percebeu quando um grupo de estudantes de juntou a ele na cabine.

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In a room where nobody loved goes
She sits alone with her silent song
(Em uma sala onde ninguém amado entra
Ela se senta sozinha com sua canção)

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Pressionou os dedos contra a superfície de madeira até que suas unhas ficassem esbranquiçadas. Como as de um cadáver. Relaxou os dedos. Sentiu a superfície áspera de arranhões e desgastes. O teclado inutilizado. Provavelmente eram teclas de marfim, pensou. Provavelmente. Experimentou uma das poucas que ainda estava no lugar. Nenhum som. Sirius tinha razão, era um piano que não poderia ser tocado.

Um piano que não tocava era um objeto sem objetivo, morto. Porque era assim que os objetos adquiriam sentido - era preciso interagir com eles, manuseá-los, humanizá-los. Então, eles adquiriam vida aos olhos das pessoas e passavam a ocupar um lugar em suas vidas. Era exatamente como se sentia naquele momento. Um objeto desprovido da ação humana, sem sentido, escuro, vazio, uma mera sombra caminhando, falando, fingindo que vivia à medida que os anos passavam.

Naquela manhã, Remus tinha aberto os olhos devagar. Não reconheceu imediatamente o teto. Virou-se na cama e, no instante seguinte, já sabia. Uma luz azulada entrava através da vidraça empoeirada da janela. E chovia. O forte som ecoando nos corredores vazios da mansão. O bruxo ergueu o corpo do colchão. Ainda usava as vestes do dia anterior. Deslizou a mão pelos cabelos. Jogou as cobertas para longe. Estava sufocado. Andou pelo quarto escuro, abriu a porta devagar. O corredor estava vazio. Já era tarde, e Remus era o único que tinha permanecido na casa após ter sido esvaziada e abandonada pela Ordem da Fênix. Sozinho na casa dos Black. O ar quente, os pingos de chuva percutindo o telhado, a poeira sufocante da velha mansão. Andou pelos corredores descalço, seus pés fazendo pegadas na espessa camada de poeira que cobria o chão. E seus passos o haviam conduzido à sala com o piano.

Não era impossível fazer escolhas. Ao menos isso tinha aprendido. Porque as escolhas realmente não existiam. O mundo os fizera e os moldara, mexera seus membros como marionetes de cordas, forçara seus sorrisos, arrancara suas lágrimas, despedaçara seus sonhos, como se todos os gestos fossem igualmente banais. Não existiam escolhas. Não havia opção. Por isso não existiu erro algum. Impossível errar quando não se pode decidir.

Será que pareceria amargo pensando assim? Remus se sentia amargo. A verdade é que, quando se abre o coração para o impossível, é necessário estar pronto para cair. Ele deveria estar. Ele deveria ter aprendido também.

Ou, quem sabe, não era o tipo de coisa que se podia aprender. Soubera desde o início que estava errando, conhecia cada passo do caminho que trilhava, sabia exatamente para onde ia a estrada. Mas não havia escolha. Não importava que não pudesse haver pessoa mais errada para se amar que Sirius Black.

Sirius Black fora seu céu, seu azul inalcançável, tão distante, e ele tão temeroso de deixar seu abrigo para tentar tocá-lo. Remus se escondia. Uma vez você Sirius lhe dissera isso. Continuava se escondendo então. Porque ele sempre soubera que estava se apaixonando pela pessoa errada. A mais errada possível.

Afastou-se do piano. Quanto tempo mais aquela casa ficaria abandonada? Remus esticou os braços para fechar a janela. As chamas da lareira já estavam completamente extintas. Procurou as borboletas no armário de vidro. Lá estavam elas, os padrões de cores das asas formando círculos, como orbes a observá-lo de algum mundo paralelo. Quanto tempo seria dessa vez? Quanto tempo de calmaria até a próxima tempestade?

Saiu da sala. Nunca tinha lhe agradado andar por aquele labirinto de corredores. Mas agora não se importava realmente com o caminho que tomava, principalmente porque não tinha idéia de onde queria chegar. Olhou para as cortinas pesadas. Olhou para a cristaleira, que lhe pareceu menos brilhante sob a leve camada de pó. Parou diante de um longo corredor conhecido. Os quadros tortos nas paredes ressonando. A cortina sobre o quadro de Walburga Black. O velho porta-guarda-chuvas no formato de uma enorme perna de trasgo.

Não havia outro som exceto o dos pingos de chuva, a água descendo pela calha, o vento entrando pelas festas nas janelas. E Remus estava parado num corredor sem saída, tentando enxergar qualquer coisa além da barreira de escuridão que cobria as feições dos quadros.

Remus afastou a cortina com cautela. O rosto enrugado de Walburga estava sereno, quase relaxado demais para ser reconhecível. Talvez ela nem soubesse o que tinha acontecido. Tocou o quadro, sentindo a temperatura do vidro sob os dedos.

- Senhora Black - murmurou. - Sirius se foi. Sei que a senhora sempre disse que comemoraria o dia em que isso acontecesse. Achei que ia querer saber.

Afastou-se. Nenhuma mudança. Ela apenas respirava devagar, o broxe de prata subindo e descendo no peito. Não estava preocupado com a reação dela, queria apenas que tivesse a chance de saber.

Arrastou as cortinas para cobrirem novamente o quadro. Era hora de voltar para casa. Porém, no minúsculo instante entre o momento que entrou nas chamas esverdeadas da lareira e o momento em que reaparecera na lareira de sua própria casa, Remus pensou ter entreouvido uma melodia.

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Somebody bring her home
(Alguém a traga de volta para casa)

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O lugar tinha o cheiro desagradável de vinagre e poeira. Lembrava um pouco o odor de um armário velho, cheio de tecidos embolorados e livros comidos por traças. Com a ponta dos dedos, Remus tocou a lateral da taça vazia, deslizando os dedos ao longo do arco translúcido. A luz entrava, esparsa, através da vidraça encardida da janela.

- Não vai beber nada? – indagou mulher a sua frente. Nymphadora inclinou a cabeça e seu rosto foi iluminado, os olhos violetas parecendo concentrar a luz.

Remus Lupin apenas mordeu o lábio inferior. Não, não ia. Não gostava de beber quando não havia um bom motivo. Estar num bar escuro, no meio da madrugada, após a estafante missão de transferência da sede da Ordem da Fênix, não era um bom motivo. Tentou ver o céu através das manchas amareladas da janela. E, de repente, ele mesmo se sentia velho e empoeirado.

- Beba se quiser – respondeu, deslizando a mão aberta pelo vidraça, tentando clarear sua visão do exterior. Uma Londres tênue lhe surgiu, ainda borrada, as ruas desertas, como se tivessem sido pintadas há tanto tempo que o quadro estivesse prestes a se desfazer.

A mesa onde estavam ficava no canto menos favorecido pela iluminação. Pequenas lanternas de papel cintilavam como vaga-lumes vermelhos sobre as incontáveis mesas. Na penumbra, Remus tentou imaginar qual seria a cor da toalha. Esticou a mão por sobre a mesa, alcançando a lanterna. A luz lhe aqueceu os dedos, pouco antes de girar o botão. A luz instantaneamente sumiu.

O par de olhos violetas se ergueu para ele. E a sensação daqueles olhos sobre si foi suficiente para que Remus voltasse a examinar a mesa. Como explicar uma coisa assim? Como ser odioso sem se sentir odioso? Como atender àquele pedido mudo de uma explicação? Quando não existia nenhuma.

- Prefiro ficar no escuro. As estrelas ficam mais brilhantes assim - justificou.

Nymphadora ergueu o rosto em direção ao teto sobre suas cabeças, com manchas de mofo e teias de aranha.

- Não podemos ver estrelas daqui - murmurou, num tom desconsertado.

- Não importa.

Remus abriu o cardápio, pura necessidade de fazer algo com as mãos. Olhou para os lados. As mesas ao redor eram ocupadas por casais. No outro canto do bar, havia um grupo de quatro amigos, supostamente comemorando o casamento de um deles. Fechou o cardápio.

- Não estou com fome. Peça o que quiser, eu te acompanho - apoiou os cotovelos na mesa e ficou olhando para o nada, para o escuro que ele mesmo provocara. Seus olhos deslizaram mais uma vez para os pontos brilhantes, aqueles grandes orbes coloridos que o encaravam do outro lado da mesa.

- Eu precisava te ver - Remus escutou sua voz, mas não conseguia distinguir a expressão naquele rosto. - Ultimamente tem sido tão horrível, quase me arrependo das coisas que disse. Queria ter uma conversa mais calma...

- Não pense mais nisso - ele interrompeu. Então avistou um garçom, e se apressou em fazer um gesto para que ele viesse atendê-los. - Acho que ele não nos viu.

- Você está com pressa.

- Não.

- Eu precisava te ver - ela justificou. - Você não?

Remus abriu a boca, mas nenhum som saiu dela. Tinha pensado em algo para dizer, mas as palavras, a simples organização das sílabas, isso tinha sumido de sua mente, restando apenas aquela incontrolável vontade de fugir, desaparecer.

“Você se esqueceu de mim?”

Não. Ainda hoje, mais do que qualquer outra coisa, o que mais preocupava Remus era o esquecimento. No fim, não havia esquecido de nada.

- Sim, eu também precisava te ver. Conversar - respondeu o bruxo.

- Tem certeza de que não está com pressa? - ela insistiu, os olhos violetas desaparecendo por um curto momento antes de voltarem a brilhar.

Remus demorou para responder. Fez um movimento para juntar as mãos espalmadas, como se fechasse um livro.

- Nenhuma pressa - respondeu, os olhos novamente perdidos nas manchas escuras da toalha de mesa.

Como conversar sobre uma coisa dessas? Era como desnudar a própria alma, quando nem ele sabia o que poderia encontrar. Talvez por isso tivesse preferido ficar no escuro. Não, ele não estava pronto para falar. E duvidava que um dia estivesse. Principalmente quando era verão e ele sabia que o céu se mostrava tão claro, um gigantesco manto negro cintilante de pontos prateados. Deslizou a mão para dentro da capa.

- Eu... - Remus voltou a olhar para o outro lado da mesa, atraído pela voz. - Eu me pergunto por que você está aqui.

Remus tentou sorrir. Mas não tinha vontade e não sabia sorrir falsamente. Tirou a mão do interior da capa, revelando um brilho metálico, a superfície espelhada refletindo difusamente as lanternas vermelhas.

- Você fuma?

- Não - Remus girou o isqueiro prateado entre os dedos. - Não.

- Eu não sei se você entende a importância disso - e novamente a insistência. Remus depositou o isqueiro sobre a mesa. - Não podemos deixar as coisas como estão.

- Não, não podemos - concordou ele.

Como queria poder ver as estrelas. Esfregou mais uma vez a palma da mão na janela. Nenhuma estrela na superfície borrada. O garçom. Ergueu a mão mais uma vez, fazendo gestos muito enfáticos. Agora queria beber. Agora tinha um motivo.

- Querem jantar? - o garçom posicionou a caneta sobre o bloco de papel, esperando pela resposta.

- Vinho - fez Remus, simplesmente. - Um bom vinho.

O garçom voltou-se, confuso, para Nymphadora. Estava estranhando suas vestes de bruxos. E, no momento seguinte, eles tinham as taças cheias de vinho barato, o melhor que se poderia esperar naquele lugar. Remus levou a taça aos lábios, o líquido descendo doce pela sua garganta. Tão doce que chegava a enjoar.

Parou de beber para observar o grupo de jovens que conversava alto num dos cantos do bar. Riam alto e sonoramente, o som se sobrepondo ao ruído das conversas. Nymphadora se inclinou sobre a mesa.

- Eu gostaria de poder pedir uma explicação. Mas sei que não tenho esse direito. Então peço apenas que você diga alguma coisa, qualquer coisa.

Remus voltou a pousar as mãos na mesa, segurando o isqueiro.

- Então?

- Vou explicar - falou Remus, tentando soar tão decidido quanto gostaria de estar.

Não ia esquecer daquilo. No primeiro momento em que tinha pisado naquele bar, começara a viajar.

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Unplayed piano
Still holds a tune
(Um piano intocado
Ainda mantém uma melodia)

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A mão de Nymphadora cobria a sua, que descansava sobre a toalha manchada. Remus tirou a mão e levou-a aos cabelos, como que tentando justificar o objetivo do gesto. Depois enfiou a mão no bolso. Tomou o restante do vinho da taça. E voltou a enchê-la. A incapacidade do passado de permanecer passado, a sua contínua re-emergência no presente, o tornava terrivelmente variável, mudando um pouco a cada vez que era recontado.

Fez girar o isqueiro entre os dedos. A noite agora estava quieta. Sem luzes. Sem vozes. Noite de verão, o ar se enchendo do perfume fresco dos jardins. E havia aquela canção distante. Procurou um aparelho de som. Não havia nenhum. Talvez fosse de alguma casa na vizinhança. Os sons inconfundíveis das notas de um piano entre os demais instrumentos. Remus ergueu o isqueiro até a altura dos olhos. A chama rompeu alaranjada, iluminando seus olhos castanhos com um brilho febril.

- Apague isso, por favor - os olhos da bruxa se apertaram e ela se afastou do globo iluminado pela luz. Remus aproximou a chama dos lábios. Soprou-a. - Vá embora.

Remus olhos para ela. Era impressão sua ou não via mais o brilho violeta de seus olhos? Nymphadora estava determinada a se esconder nas sombras.

- Vamos juntos. Te acompanho até em casa, não devemos ficar andando sozinhos...

- Você não entendeu - interrompeu ela. - Eu quero ficar sozinha. Vou embora daqui a pouco, só preciso ficar sozinha um pouco antes de ir.

- Mas não é seguro - justificou ele.

- Remus - ela chamou. E o bruxo teve a impressão de ver um brilho cinzento, um azul morto substituindo o violeta vibrante. - Por favor.

Remus ficou alguns instantes parado, olhando para os orbes cinzentos. A única coisa que podia ver do rosto da jovem. Levantou-se e jogou a capa sobre os ombros.

- Tem certeza? - perguntou.

- Sim. Eu vou ficar bem.

Remus se afastou a passos largos. Antes de passar pela porta envidraçada, parou e remexeu os bolsos da capa. Lançou um último olhar à mesa onde estava, o brilho prateado do isqueiro cintilando sobre a toalha branca. Decidiu não voltar. Abriu a porta e encontrou o ar fresco da noite. No alto, as estrelas que ele tanto queria ver. Talvez tudo não tivesse acabado afinal.

As luzes dos postes incidiam sobre os galhos das árvores nuas, projetando sombras disformes na rua, e o barulho do vento parecia de algum modo melancólico, como uma música fúnebre a segui-lo em seu caminho, enquanto avançava pela calçada.

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Years pass by
(Os anos passam)

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Remus estava de novo em casa. Era noite, e o calor do verão o sufocava. Abriu a janela. As cortinas se agitaram com o vento. A neblina sufocante tomara conta do quintal, a mesma que cobria toda a Inglaterra há semanas. Não havia luz. Apenas as sombras dos móveis. Aquela sala era para ele um lugar terrivelmente povoado de lembranças. Não importava que não houvesse mais fotografias, ou os enfeites de sua mãe, os tapetes com traços delicados. Por que acreditara que os objetos poderiam ser mais vivos que as pessoas? Eram as pessoas que vibravam naquelas lembranças, não os objetos.

Por quê? Por que não esquecer? Que diferença ia fazer?

Caminhou até o piano. Devagar, seus dedos puxaram o lençol branco, revelando a madeira polida, as teclas pretas e brancas. Não sabia se ainda se lembrava. Sirius tinha dito que era uma coisa impossível de se esquecer. Mas ele não era Sirius. Que diferença ia fazer se tivesse se esquecido?

Mas fazia. Ele sabia que fazia. Fazia uma grande diferença. Toda a diferença do mundo. Era a diferença entre fechar os olhos para tudo e mantê-los sempre abertos, para as cores e para as trevas. Era a diferença entre andar a vida inteira no escuro e já ter, pelo menos por alguns instantes, andado na luz.

Remus sentou-se diante do piano, os dedos tocando de leve as teclas pretas proeminentes. Pressionou os dedos. As notas soaram num uníssono sem sentido. E novamente. E então estava tocando, as mãos vagando a esmo no teclado, a melodia se formando, erguendo-se no ar como a neblina que encobria a visão do quintal, fragmentos de lembranças.

Às vezes, até para ele, mentir era impossível. No fim, não importava o que os outros pensassem, nunca seria capaz de esquecer de algo assim. Porque agora sabia. Enquanto tocava, sentindo a música fluir de dentro de si, sabia que tinha amado, tanto quanto era possível amar alguém. Mesmo que seu jeito de fazer isso não tivesse sido o jeito como Sirius Black queria ser amado. E também soube que Sirius o amara, à sua maneira tumultuada, imprevisível, louca até. Mas era amor. Arrebatador e verdadeiro. Excessivamente verdadeiro, uma presença constante e irritante em sua vida, sempre impondo sua companhia, seu apoio, sua sinceridade. Não existia omissão aceitável para Sirius.

A música cessou. Remus ainda tinha os dedos pousados sobre as teclas. Havia aquela idéia tentadora de que nada tinha acontecido por acaso. Tamanho espetáculo não teria consumido tanta energia sem um propósito, um objetivo que era responsável pela atuação de forças ocultas. Mesmo que naquela época Remus não soubesse que amar poderia ser incrivelmente mágico e igualmente destrutivo.

Sua história não era um poema, nem um conto de mistério, ou uma aventura. Não comprovava nenhum discurso filosófico, nem defendia nenhum ponto de vista político. Fora um idiota ignorando seu destino. Mas mesmo os idiotas podem pensar lucidamente às vezes. Remus já chegara a imaginar que fosse uma de suas excentricidades, mas, no fim, chegara à conclusão de que o que todos temiam era exatamente isso: felicidade. A felicidade era muito instável, perene como uma escultura de água, mantida em pé por simples condescendência na natureza, mas condenada a se desfazer e escorrer sobre o tampo de uma mesa de vidro. Quando esse momento chegava, tudo que restava era olhar através do vidro e da água esparramada e vislumbrar a silhueta tremulante de uma vida perdida. Era isso chamavam de saudade. E, no fim, saudade era pouco mais que uma mágoa reprimida.

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In the changing of the moon
(Com as fases da lua)

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N.A.: Eu achava que não ia suportar de maneira nenhuma escrever com o Remus. E, qual não foi a minha surpresa, quando essa que deveria ser uma fic curta adquiriu esse tamanho mostruoso. E mesmo assim eu ainda me acho incapaz de entender o que se passa na cabeça do Remus.

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