OneShout



Seu olhar atravessou a janela. Naquele momento o Outono trazia calor, mas o inferno dentro de seu peito dava-lhe uma sensação gélida como se nevasse. Talvez aquilo fosse o desespero. A noite já havia chegado, e as pessoas no bar Cabeça de Javali festejavam alegremente. De certa forma, era como um universo paralelo. Não, ele não estava lá... Estava assistindo a cena, sem captar o que via. Não sabia onde estava ao certo. Inspirou pela boca com certa dificuldade, e então olhou em volta meio zonzo. A informação havia chegado-lhe há horas, mas ainda não havia processado. Como as coisas podiam ser tão rápidas assim? Um feixe de luz, e tudo acaba. Não, não podia ser assim. Não podia ser verdade... Mas sabia que era, em seu íntimo, embora não quisesse aceitar. Já sabia há semanas, na verdade, mas alimentou esperanças de que estivesse errado, ou que algo pudesse impedir. Bem, não pôde. Se ao menos o tivessem ouvido, se a mensagem tivesse chegado mais cedo... Mas não chegou. Na realidade, até havia chegado. Porém, a arrogância havia contornado sua ajuda. Que culpa tinha de não saber quem, a informação crucial? Pensava que após o que fizera, teria credibilidade o bastante para obter a informação completa. Mas aparentemente não... E mesmo se soubesse, talvez não lhe dessem credibilidade. Sentia-se imprestável.

Seus olhos captaram, meio confusos, o dono do bar. Já não lembrava o nome dele, e nem fazia questão. Ora, que coisa inútil, lembrar o nome de alguém tão pouco importante para sua vida... Sabia o nome de Rosmerta, é claro, mas era diferente. Passou a juventude freqüentando seu bar, na última mesa. Fugindo. Agora que percebia, parecia ter passado toda a sua vida fugindo. Disfarce, agente duplo? Conversa. Não tinha era coragem de assumir algo por completo. “Não é bem assim...” reclamou uma voz em sua mente. Mas ele não se importou. Na realidade, qualquer coisa dita em seu favor lhe traria ódio naquele momento. Este foi um dos motivos pelos quais não se dirigiu ao Três Vassouras. Pobre Rosmerta, faria de tudo para ajudar. Não que ela fosse de fato uma alma caridosa, mas conhecia Snape o bastante para saber que ele também fora afetado com a notícia. Dava-lhe um certo medo ter alguém que lhe conhecesse assim, mas era inevitável. Com os anos, Severo tinha se aprimorado em Oclumência. Não queria ser desvendado. Mas que culpa tinha o pobre garoto de dezesseis anos, frustrado da vida? Felizmente, ou não, não era mais aquele garoto. Seus pesares eram maiores, seus crimes também. E esta era outra razão para não ir ao Três Vassouras. Era um ambiente puro demais, e ele estava sujo. Como nunca estivera.

Enfim ele levantou a mão meio trêmula. Abriu a boca, mas esqueceu-se o que ia falar. O homem entendeu, e trouxe-lhe mais uma dose de Vinho do Porto. Snape fez um gesto com a cabeça em agradecimento, e tomou um gole tímido. Do álcool já começava a surtir efeito.

Deu um suspiro, seguido de súbito ataque de tosse. Deu alguns socos na mesa para o ataque passar. Ficou ligeiramente mais acordado, como se saísse do transe. E que susto não levou ao ver um homem velho, de nariz torto e óculos meia-lua ao seu lado; girando os polegares para cima distraidamente. Obviamente foi reconhecido de imediato. A tosse prorrogou-se um pouco. Não queria encará-lo.

Severo desistiu de forçar a tosse e tornou-se para sua bebida e sua janela, decidido a ignorá-lo.

-- Você não pode guardar isso para sempre, Severo... – disse o bruxo brandamente ao seu lado. Snape engoliu seco e dirigiu-lhe um olhar de canto de olho. Não respondeu. Sentia uma sensação ruim, uma vontade de explodir, mas não tinha coragem de falar-lhe. Bem, ele podia guardar sim. Dumbledore baixou os olhos, e parou de brincar com os polegares. – Vamos, vamos para a minha sala. Merecemos um ambiente melhor que este para esta conversa. – Chamou ele, pousando a mão delicadamente no ombro do outro. Este reagiu, puxando o ombro para si bruscamente e falando numa voz embriagada:

-- Não, Dumbledore! Eu... – suspirou, percebendo o quanto infantil sua voz embriargada soara – Não precisamos de ambiente se não haverá conversa.

Fez-se o silêncio. A mão de Dumbledore, que estava no ar, voltou-se vagarosamente para seu posto original. Ele não insistiu.

-- Eu percebia, sabe... Foi um espanto para mim quando ouvi dizer que você a destratou. Quer dizer, – deu uma leve e nostálgica risada – Vocês nunca foram íntimos nem nada ao que me parece, mas pareciam se dar bem. Acho que nunca saberei realmente se houve algo, não é? Digo... Ela sabia, Severo?

Snape limitou-se a beber outro gole da garrafa. Sem obter resposta, o velho continuou. Falava de um modo estranho, como se fosse mais para si próprio do que para o outro, mas este podia sentir seu olhar em alguns pontos da conversa. Dumbledore não desistia. Oras, alguma hora ele teria de falar algo.

-- Tinha uma festa marcada para as nove horas. Sabe como é, estão todos comemorando, mas já passei o dia inteiro nelas... Resolvi dar uma olhada em você. E vejam só, você é um pouco mais previsível do que aparenta, Severo... – ele deu um sorriso calmo. Não, aquilo era demais. Snape virou-se para ele, o olhando incrédulo, as bochechas macilentas tremendo levemente.

-- É para isto que veio aqui? Para falar-me sobre... – deu uma risada descrente, e pôs todo o nojo que pôde reunir na última palavra – festas? Era de se esperar que alguém ficasse ressentido... Mas parece que não o bastante, não é? Poupe-me, Alvo. – ele terminou, fazendo com a mão um gesto de dispensa. Nos olhos de Dumbledore apareceram repentinas chamas, indicando que fora longe demais; mas Snape não chegou a notá-las, pois virara a cabeça para o lado oposto. As palavras do velho bruxo seguiram-se na cordialidade de sempre, mas em um tom cortante.

-- Não pense que é o único que sofre, Snape. Estamos todos fragilizados. Lílian e Thiago foram bruxos incríveis, e quase todos que os conheciam nutriam carinho por eles.

Snape sentiu o sangue ferver. Thiago Potter... Aquele que transformara sua vida de estudante em um inferno. Ele não havia facilitado, é claro. Sua personalidade um tanto quanto obscura não se encaixava no ambiente geral, e ele também tinha implicância com o rapaz. Mas não podia perdoá-lo, não, não... Afinal, se não fosse ele, ele podia muito bem ter tido uma juventude comum, ainda que sempre em certo anonimato. E se não fosse ele, ela... Bem... Teria sido tudo diferente.

-- Agora, espero que veja que não é tudo tragédia. Voldemort sumiu, o pequeno Potter sobreviveu e foi deixado com os tios esta noite. Quer dizer, embora você tenha... – Severo tornou a olhá-lo. De fato, remexeu-se ligeiramente na cadeira ao ouvir o nome de Voldemort, mas achava certa graça no poderoso bruxo ao seu lado evitar falar sobre o ocorrido. Principalmente porque não evitava falar sobre o bruxo, como a maioria... E sim sobre o erro de Severo. Era um comensal em ascensão, e depois do que fizera por ele, teria regalias enormes. Se ele aparecesse, é claro. Mas sentia uma certa náusea ao pensar no assunto. Só o que queria um pouco de reconhecimento... Nunca quis matar ninguém. E, de fato, não se importaria muito se fosse responsável por um garoto qualquer sem condições de vida. Não se sentiria bem, mas não seria igual àquilo. Não... Não a morte de Evans. Ou dos “Potter”... Odiava a maneira como a generalizavam, chamando-a pelo sobrenome do marido. Igualá-la. Colocá-la em patamar semelhando ao do outro, sendo ela muito superior. E o pior: ela parecia se orgulhar. Mas agora não havia mais problema. Ninguém mais iria chamá-la...

Dumbledore tomou o resto da frase por subentendido.

-- Bem. A sociedade bruxa não pode lamentar a perda, e tampouco eu.

Snape não lhe deu ouvidos outra vez. Pois eis que, de repente, sentiu um aperto no estômago. Um pensamento surgiu-lhe, um surto de lógico irrompeu de sua lástima. Olhou para Dumbledore, um pouco assustado. Não havia se dado conta daquilo.

-- Você diz... O filho deles sobreviveu? O que se fez dele?

Dumbledore repetiu a informação. Estava com os tios trouxas, seguro. Snape sentiu-se alarmado.

-- Eu... Bem... – olhou nos olhos de Alvo. Ele tinha conhecimento do acontecido, mas não tinha certeza se ele partilhava de sua opinião – Agora é que me dei conta. Quer dizer, eu... Eu tenho esta certa... Dívida com o Potter, não? O incidente com o lobisomem.

Dumbledore pareceu entender onde ele queria chegar. Anos atrás, nos tempos de Hogwarts, Thiago e seus amigos – os chamados “Marotos” – resolveram fazer uma brincadeirinha com Severo. Um deles era lobisomem, e a brincadeira resumia-se a Severo ir até uma árvore literalmente agressiva e, se conseguisse passar por ela, ir de encontro ao lobisomem transformado. Severo teria morrido, se não fosse Thiago a puxar-lhe no último instante. Snape concluiu que além de estúpido ele não era corajoso; mas não podia negar a dívida. E dívidas bruxas eram assim: mais cedo ou mais tarde precisavam ser saldadas.

-- Bem... Creio que seu pequeno débito passou para as mãos de Harry, então. – Dumbledore concluiu. Harry era o filho dos dois. Snape passou a mão pelo rosto. Estava definitivamente acordado, agora. O bruxo percebeu seu conflito, e aproximou-se um pouco dele – Bem... Então creio que tenho uma proposta que poderá ajudá-lo. Se quiser ir aos meus aposentos... Creio que este bar não é dos mais seguros, como pôde me provar há alguns dias. – ele sugeriu, com uma piscadela rápida.

Snape cedeu. Após poucos minutos se encontrava sentado em frente a Dumbledore, com uma mesa os separando. Devia admitir que nunca havia entrado naquela zona; nunca havia sido importante a tal ponto. Mas não se incomodou, era um local interessante. O quão interessante, porém, ele só pôde descobrir depois, já que seus nervos e a quantidade de bebida tomada o negavam tal concepção.

“Pois bem... Fico feliz que entendeu o que eu conversei com você meses atrás, Snape. E sim, eu sei que cumpriu o que pedi”, complementou Alvo, em vista à surpresa do rapaz. Ou homem. Bem, não era mais tão novo assim.

“Quero que saiba que fez uma escolha sábia. Ora, se Voldemort tivesse conhecimento absoluto da profecia – conhecimento este que você possui –, não tardaria a se tornar indestrutível. Apesar dos pesares... Devemos seguir em frente, Severo, a vida não pára. E este é o assunto magistral, que o trouxe aqui.” Ele falava andando pelo aposento, mas ao dizer a última frase parou, sentando-se à mesa. Lançou-lhe um olhar penetrante, que foi correspondido. “Muito bem. Se minhas teorias estiverem certas, e não tenho muitas dúvidas de que estão, esta queda não é eterna. Você e eu sabemos que Voldemort é muito poderoso, tem muitos truques e que não irá desistir. Irá voltar, assim que puder”. Tomou ar. E continuou. “Mas até lá você tem de viver, Severo. Devo dizer que tenho fé em você, mas do que em qualquer outro comensal: você sempre foi muito inteligente. E creio que sua crença nele está meio abalada, após... Acontecimentos. Por isto te faço uma oferta, Snape.”

Seu olhar era mais penetrante que nunca.

“Você tem um currículo invejável... E meu corpo docente está bastante desmembrado devido à guerra. Creio que já saiba onde quero chegar. Mas peço que pense com carinho, Snape... Afinal, além de tudo, você pode até cumprir sua dívida daqui a uns anos, hã?” Ele sorriu.

Snape o olhava, sem muita reação. Ele estava o fazendo uma proposta de emprego? Depois de tudo o que fizera? Não era possível... Devia estar biruta, mesmo. Ele não sabia o que dizer, ao olhar para o diretor. Bem, não era uma má opção para ele. Além de conseguir cobertura, arranjava um emprego – ninguém mais iria aceitar de bom grado um ex-comensal. E quando Voldemort voltasse – se voltasse – seria mais fácil arranjar uma desculpa. Não, Snape não dispensava a possibilidade. Aprendera a ser calculista para viver. Ao menos por um tempo...

Mas devia estar fora de si quando apertou a mão do diretor de Hogwarts.
“Não irá se arrepender, Professor Snape”. Ele não tinha muita certeza. Não tinha, de fato, muita certeza sobre coisa alguma.



Passados dois dias desde aquela noite confusa, houve um grande funeral aos Potter, num cemitério perto dos destroços de sua casa em Godrick’s Hollow. Snape não foi. Não tinha coragem de ir e encarar todos aqueles rostos culposos. Não houve muita publicidade em cima dele; não haviam provas do que fez. Mas ainda assim, os conhecidos sabiam. E não perdoavam.

Àquela altura, ele analisava melhor os fatos. Talvez tivesse feito a coisa certa. “Há males que vem para o bem. Tudo tem dois lados: um bom e um ruim; mas são se deve menosprezar nenhum deles”, foi o que Dumbledore mencionou. Ele concordou; em parte e em silêncio.

Aquela tarde ele ia sair. Passara seus dias no anonimato, e queria continuar assim. Mas tinha um compromisso a cumprir – consigo mesmo. Vestiu-se com as habituais vestes negras, e seguiu até o fim das propriedades de Hogwarts, onde estava residindo até a poeira baixar. De lá, desaparatou.

Longe dali, ele se materializava. Fazia um forte sol sobre o céu extremamente azul. Ele amaldiçoou as cores tão vivas. Não podiam respeitar aquele momento? Por outro lado, ficou aliviado ao não encontrar nenhum conhecido. Com um gesto de varinha, materializou em sua mão um belo buquê de flores, com lírios brancos. Ele andou lentamente pelo local. Era um local aberto, e não haviam prédios. O horizonte era limpo. Tudo o que se via eram lápides ordenadas no chão, com arranjos de flores, e pessoas ocupadas demais com seus pesares para repararem no bruxo que andava por ali. É claro, não era o único bruxo lá. O cemitério era todo direcionado a estes, e era pela magia que se arranjava espaço o suficiente para os milhares de túmulos recentes juntarem-se aos antigos. Ele demorou um pouco, mas enfim encontrou. Duas lápides coladas, lado a lado. Lílian e Thiago. Os Potter. Ele inclinou-se um pouco, e pousou as flores serenamente entre os dois. É claro que as flores não eram para ele, mas achou que ficaria melhor assim. Não chorava. Não demonstrava emoção. Já tinha sofrido o que tinha de sofrer, ninguém mais precisava saber daquilo. Enterraria seu amor platônico de tantos anos junto com ela. Deu alguns passos para trás, admirando a cena. Quem o visse assim pensaria que era um velho amigo do casal. Doce engano...

Já ia se virando para ir embora, quando algo chamou sua atenção. Uma mulher andava em direção à lápide. Mas não estava sozinha. Ela andava ladeada por um homem grande e de bigode espesso, que aquietava uma criança inconformada de ciúmes. Sim, ciúmes. Pois havia outra criança em seus braços. Seria aquela? Ele avaliou as feições da mulher. Não se pareciam com as de Lílian. Os cabelos não tinham o mesmo brilho, o olhar não tinha o mesmo fogo. Esta possuía traços duros, enquanto a outra tinha aparência leve. Mas era definitivamente trouxa, com seu vestido negro até o joelho e cabelos mal amarrados. Parecia, aliás, um tanto deslocada no ambiente, fazia comentários desrespeitosos em voz baixa ao marido de quando em quando. Ela e o homem lançavam um olhar reprovador a todos à sua volta. O garoto em seus braços tinha aproximadamente um ano. Snape hesitou um pouco, mas ao ver que eles definitivamente se encaminhavam à lapide que acabara de deixar, se convenceu.

Eles pararam meio sem jeito junto a ela. Murmurraram algumas palavras baixinho, e de longe não podia se distinguir se reclamavam ou agradeciam. A única coisa de que se podia ter certeza é de que estavam sem saber o que fazer. Se os boatos eram verdadeiros, a mulher fingia que a irmã não existia. Severo não pôde deixar de achar graça na situação, deixando um sorriso frustrado aflorar-lhe os lábios. O homem já a convidava a partir, alegando que as pessoas à volta eram “estranhas demais”, quanto Severo decidiu se aproximar.

-- Com licença. Você é a sra Evans, não?

Eles o olharam, quase indignados com a interrupção. Ela ia abrindo a boca para falar, quando o marido se adiantou:

-- Sra Dursley. Petúnia Dursley, mas já foi Evans sim. Por que o interesse? – ele perguntou, aos maus modos. Seu bigode era espesso a ponto de assemelhá-lo a uma morsa.

-- Acontece que eu queria confirmar algo. Este seria... Harry Potter? – ele indagou, fazendo sinal com a cabeça para o garoto em seus braços, deixando os próprios braços cruzados às costas. Agora que estavam próximos, não era difícil penetrar a mente dela. Estava desgostosa, não gostava de fato da irmã. Severo sentiu um pouco de repulsa, e crispou ligeiramente os lábios.

Ela confirmou suas expectativas. Harry Potter. Ele perguntou se podia vê-lo melhor, e ela afirmou que podia até levá-lo embora se quisesse. A repulsa cresceu, e ela percebeu isso no olhar dele, pois se calou. Ele afastou o manto que o embrulhava de seu rosto. Era pequeno, mas já dava pra se ter uma idéia de como seria no futuro. Devia afirmar que não gostou do que viu, pois o garoto era exatamente como ele esperava – desejava – que não fosse. Uma cópia idêntica de Thiago Potter. A única diferença era uma pequena cicatriz em forma de raio que ele presumiu ser resultado do ataque e os olhos, que eram verdes e vivos como os de Lílian. Severo engoliu seco. Então aquele era o garoto que devia proteger? Alguém que o lembraria da pessoa que mais odiou a cada instante que o visse? Era bem feito para ele, mesmo. “Bem, melhor que o dito-cujo em pessoa, ao menos...”. De repente uma onda de pensamentos começou a bombardeá-lo. Teve vontade jogá-lo no chão, de batê-lo, qualquer coisa que aliviasse o ódio que sentia. Afinal, se pensasse bem, ele era o culpado. Se não fosse a criança, o Lorde nunca se interessaria no casal, e Lílian e Thiago ainda estariam vivos, e...

Snape puxou a própria mão bruscamente, como se tivesse se queimado. Não, a culpa não era do garoto. A culpa era de Voldemort, aquele a quem ele havia servido. Sentiu nojo de si mesmo, o olhar direcionado para o sapato barato da mulher. Os Dursley o olhavam atentamente, num misto de impaciência e receio. Ele dirigiu-lhes o olhar, ligeiramente desconcertado, mas logo recuperou a pose, e limpou a garganta.

-- Ok então. Eu... Lhes desejo sorte. – ele falou, em tom formal. Eles falaram qualquer coisa, mas não mudaram o olhar. Já em seu estado inexpressivo de costume, Severo mudou o tom de voz para um mais baixo e ameaçador – Afinal... Não vão querer que nada de mal aconteça ao garoto, não é? Seria toda a sociedade bruxa contra vocês... – ele disse, os olhando nos olhos. Eles compreenderam o recado.

-- Muito bem então. Tenham um bom dia. – ele terminou, com um meio sorriso, e dando um giro desaparatou.



Severo já podia se controlar melhor. A dor de perder alguém com quem se importava – eram poucas as pessoas de que se podia afirmar isso – era latente. Mais ainda do que a dor de vê-la ao lado de outro – sendo este outro alguém que tem tudo o que ele não pôde ter, e não hesita em demonstrar isto -, pois nesta situação ao menos pode-se ter notícias, saber como se está passando. Mesmo não tendo mantido contato com Lílian desde o quinto ano, ele cuidava dela... À distância. Ela nunca soubera do seu carinho, e ele nunca soubera como agir para demonstrar aquilo. Sempre soube que era pedir demais tê-la ao lado, então se conformava em tê-la à distância. Agora ele sabia que nunca mais poderia ter notícias dela, e que a culpa por aquilo era em parte sua.

Mas estava de bem com sua consciência. Afinal, não tinha muitas escolhas. Ou aquilo acontecia, ou passaria o resto de sua vida se culpando. Pois de uma maneira ou de outra, sabia que ele perceberia, mais cedo ou mais tarde, que aquilo não era para ele. Apesar das aparências. Era tudo uma questão de tempo. Tempo para descobrir o que era certo, tempo para sua vida entrar nos eixos. Tempo para superar aquilo, tempo para lutar. Tempo para planejar. E um dia, quem sabe... Tempo para viver.

Ele não perdia por esperar.



*



É noite. Quinze anos se passaram desde o incidente, e muito havia acontecido. Novos erros, novas conquistas, novas provações. A cada ano que se passara, a sina de Severo aumentara. Mas ele não se queixou. Carregou todos os fardos que lhe foram entregados sem hesitar; cumpriu seus deveres sem pronunciar palavra. Se aprofundou em sua escuridão. Pouco se sabe sobre ele. Acabou por virar uma sombra de sua marca, uma sombra de seu destino. Ele já não escrevia seu destino... O aceitava. E seu destino não era feliz.

Quinze anos, e como ele amadurecera. Não restavam dúvidas de que era um homem, e extremamente seguro de si e se seus objetivos. Esta noite ele alcançará mais um deles. Encerrar outra tarefa. Zerar seu débito. Muitos o consideram demônio, mas ele conta os dias de sua canonização. Não quer fazer isso, não quer cumprir. Porém, já não lhe restam alternativas. Se não o fizesse, tudo estaria perdido. Já não há para onde correr. Tudo o que existe para ele é seu destino, seu script. Ele deverá seguir o que lhe fora estipulado. E então... O sonho da liberdade estará mais perto de ser realizado, ainda que ele não tenha certeza se viverá para vê-la.

Ele anda pelos corredores a passos largos e decididos, com a capa negra anuviando atrás, costumeiramente. Não pode perder tempo. Já não se questiona sobre o que é certo. Já não leva em conta a própria opinião. Ele sobe as escadas de Hogwarts, e elas parecem saber o que lhe aguarda, pois o guiam rapidamente. Fala algumas palavras, desvia algumas pessoas. Raciocina rápido. Não pode dar-se o luxo de hesitar, se desviar de seu caminho, ter medo. Já não é coisa para ele. Talvez ele nem seja mais humano.

Finalmente chega a seu destino. A cena é a esperada. Não sabe o que diabos pretendiam fazer sem o seu conhecimento, mas já não importa. O que importa é cumprir sua missão. Salvar uma vida. Muitas vidas. E aniquilar outra...

Ele empurra para o lado o garoto Malfoy, seu ingrato protegido, que como o planejado seria fraco demais. Todos o olham pasmos. Ele não se importa. Olha para os olhos do bruxo. Fraco, indefeso. Tem ódio de si mesmo. Aquele que sempre o ajudou, que sempre confiou nele. Levanta a varinha. Olha profundamente. Por uma última vez. Seus olhos suplicam-lhe. Ele tem certeza do que está pedindo. Sabe quais serão as conseqüências. Severo sente um arrepio. Um feixe de luz verde sai de sua varinha, e em questão de segundos vai crescendo até cegar-lhe os olhos. Ele toma ar. Um feixe de luz, e tudo acaba. Mais uma vez. Sua missão está cumprida.

- Vamos, Draco...


Quando está enfim saindo de onde nunca mais poderá entrar, é interrompido pelo jovem Potter. Crescera, e de fato não é inocente mais. Bem como Severo imaginara. Não são grandes amigos. Ele não sabe do que ele fizera. Não sabe que o protegera. Não sabe que o ajudara. Está cego pelo ódio... Assim como toda a comunidade bruxa logo estaria. Não entende que algumas coisas são complexas demais para serem explicadas.

E aquele era o destino de Snape. Era fadado ao ódio, ao anonimato. Enquanto vivesse, nunca seria compreendido. Não o permitiria. Sua vida, seus pecados e sua absolvição estariam consigo, e só consigo. Eternamente. Fadado à solidão de uma marca... Em busca de sua liberdade.




[Não me chame de covarde].




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