Capítulo 1



O Mostrador do relógio digital dizia serem 9 horas e 17 minutos quando ela abriu os olhos.
Ficou ali, deitada em sua cama, olhando para o teto do seu quarto. O Silêncio podia quase ser tocado, de tão denso, e isso a fez se sentir bem. “Um momento calmo”, pensou, olhando para o teto, apreciando o silêncio, até este ser quebrado por algo que parecia ser um liquidificador. Fechou os olhos, virou-se de bruços e pôs o travesseiro na cabeça para abafar o som, mas não conseguiu obter muito sucesso. Ouviu então alguém gritando:
- Kellyn, já acordou?
Ia fingir que não tinha acordado. A manhã era boa de mais para ser desperdiçada fazendo brigadeiros. Por que o silêncio não podia continuar?
- Kellyn, você me ouviu? – Gritou mais uma vez a voz.
Desanimada, ela se levantou bem devagar da cama, foi até a porta e, abrindo-a, gritou para o corredor e para a escada um sonoro “Já vou!”, batendo a porta com estrondo em seguida. A contragosto vestiu uma camiseta folgada qualquer e uma calça jeans nem um pouco apertada, pegando então, de cima da televisão de 14 polegadas, o seu boné azul e saiu do quarto, ao mesmo tempo em que o colocava.
Desceu a escada rapidamente e, no andar de baixo, chegou até a cozinha, onde sua mãe, alta mas um pouco gorda, estava usando um avental e aparentemente fazendo a massa de bolo, com seus cabelos pretos presos num coque meio caído, como se tivesse sido feito às pressas.
- Kellyn, preciso que você vá até o shopping comprar o jogo que o seu irmão tanto quer.
Já esperava por isso. O jogo absurdamente caro, que com certeza seria jogado apenas uma vez e logo depois esquecido num canto do armário, como todos os outros.
- Tome, vá logo comprar, antes que ele chegue da escola. – Disse a mãe, sorridente, entregando uma única nota de cem para Kellyn.
- Tomara que não tenha o maldito jogo. Gastar 80 mangos nessa droga é desperdício. – Disse, pegando a nota.
Virou-se, sem ouvir os comentários da mãe, e colocou o tênis que estava jogado pelo corredor, dirigindo-se então, com uma má vontade absoluta, até a porta de entrada da casa, e saiu, fechando-a com força.
- E aonde o moleque vai?
No jardim, ela parou e respirou fundo, virou-se para o lado do muro vizinho, e lá estava ele, sentado no muro e sorridente, com o cabelo raspado, uma camiseta regata branca e uma calça jeans, segurava um violão.
- Não acho que você precisa saber. – Disse ela, num tom amargo. – Cuida da sua vida, Takeso.
- Moleque, você está cada vez mais mal educada. – Disse, com um sorriso desdenhoso. - Às vezes penso que o seu irmãozinho é menos pivete que você.
- Eu achava que você fosse irracional. E eu não tenho tempo pra perder com você. – Disse ela, desviando o olhar e começando a andar em direção ao portão.
- Ainda não comprei meu presente. – Disse takeso, bem alto, para Kellyn ouvir.
Ela parou de chofre.
- Você foi convidado?! – Perguntou, virando-se para olhar Takeso, que, sorrindo, tinha os olhos mais fechados que nunca.
- Claro que sim, Somos vizinhos, apesar de tudo, Moleque. – O sorriso de Takeso ia de orelha a orelha.
- Certo, então espero que seja feliz na festa de pivetes ranhentos como o meu irmão. – E saiu decidida para a rua.
Kellyn caminhou até a esquina, o dia ensolarado pedindo para ser utilizado. Então ela ouviu uma musiquinha constrangedora que saía do bolso esquerdo da sua calça jeans. Atendeu rapidamente o celular, antes que mais alguém ouvisse o toque.
- Alô. – Disse, no tom menos simpático possível para alguém que estava tendo um dia ruim. – Ah, é você. – Continuou andando, pela calçada, seus pés guiando-a. - Não, você não vai. É perda de tempo. Ainda mais numa sexta-feira à noite. – Suspirou. – Queria me divertir pelo menos um pouco hoje. – Ela então parou na calçada, com uma expressão de travessura. – Eu vou me divertir. Dá pra você estar no Zê daqui à 20 minutos? Ótimo. Te vejo lá.
Não precisava gastar mais que 20 pratas para ficar bastante tempo lá no shopping e ainda comprar o maldito jogo.
Kellyn, com seus cabelos negros, olhos castanhos e rosto livre de espinhas, seria uma garota de 17 anos maravilhosa e cobiçada se não usasse roupas largas, boné e andasse de um jeito descolado. Seu estilo “Masculino” desgostava a mãe, que dizia que ela nunca arrumaria um namorado. Segundo Kellyn, “o conforto vem em primeiro lugar”, mas a verdade era que ela odiava seguir ordens. Se sua mãe um dia lhe dissesse “filha, vista este blusão e esta bermuda folgada” Kelly imediatamente se tornaria uma patricinha feminista. Queria ter controle, ao menos, sobre o que vestia.
Quando entrou no Shopping Zê, com seu jeito folgado, avistou um rapaz de uns 17 anos, com olhos azuis, usando uma calça jeans e uma camiseta preta com manchas de tinta. Os cabelos castanho-escuros espetando para todos os lados se uniam à uma barba meio rala, como que por fazer, mas ele não usava bigode.
- Ah, você chegou com quinze minutos. – Disse kellyn, abraçando Erick.
- Dez. Eu já estava vindo pra cá, comprar o presente do seu irmão. – Indicou com a cabeça uma sacola na mão esquerda.
- Um livro? – Perguntou Kellyn, examinando o presente ainda sem embrulho na sacola transparente. – Ele não vai gostar.
- Tenho certeza que vai. – Afirmou Erick – Um livro é um ótimo companheiro quando se está sozinho.
- Bom, que seja. – Disse Kellyn, desviando o olhar da sacola. – Vamos jogar boliche?
- Só se você pagar a metade. – Disse Erick, sorrindo, e virou-se em direção às escadas rolantes.
É impressionante como uma partida de boliche pode ser divertida. As pessoas não vêem a hora passar, enquanto bolas de cores e pesos variados acertam os pinos. Uma vez que a disputa está acirrada, passam-se muitos strikes até os jogadores perceberem que vão pagar o dobro do que deviam. Neste caso, o triplo.
- 120 pilas?! – Exclamou Kellyn, estupefata, para o atendente do boliche.
- Sim, senhora. Foram três horas de jogo. – Disse o atendente, sem paciência.
- Está tudo bem, tenho 80 aqui. – disse Erick à Kellyn, tentando acalmá-la.
- Não, não está tudo bem! O jogo que o meu irmão quer custa 80 pratas! Não vai dar pra comprar! – Disse ela, desesperada.
- Escute – disse Erick, mas Kellyn bufou e cruzou os braços. – Não, escute. Tem uma loja de usados perto da minha casa...
- Ele vai perceber que é usado! – Disse Kellyn, desolada.
- Temos outra opção? – Perguntou Erick.

A loja Velhas Velharias tinha uma fachada que exalava um ar de sujeita. A vitrine, localizada do lado esquerdo da loja, exibia televisores de muitas décadas atrás, bonecas de porcelana com vestidos de renda e alguns livros, tudo muito empoeirado.
Kellyn abriu a porta e sentiu que entrava no vácuo. Saía da movimentada e barulhenta rua para entrar no silêncio sepulcral da loja, seguida por Erick. O Interior da loja tinha um número absurdo de quinquilharias, dispostas sobre prateleiras de madeira, sobre caixotes no chão, dentro de caixas de papelão ou sobre o carpete vermelho com detalhes dourados, tudo coberto pela mais absoluta poeira. O Balcão se encontrava quase de frente para a porta e continha mais velharias. Camuflada no meio das empoeiradas tranqueiras, se encontrava uma senhora de uns 50 anos. Não tinha muitas rugas, os cabelos eram uma mescla de grisalho e preto, e parecia organizar alguns bichos de pelúcia por ordem de tamanho.
- Olá. – Disse Kellyn e a senhora se virou para olhá-los.
- Ora, pois não. Em que posso ajudá-los? – Perguntou a velha, segurando um urso de pelúcia e parecendo tão empoeirada e cheia de teias de aranha quanto a própria loja.
- A senhora... uh... teria o jogo “Batalhão”, de tabuleiro? – perguntou Erick.
- Ah, me desculpem, não temos. Vocês deram azar, acabou de sair um, mas há outros jogos de tabuleiro. – Disse a senhora, indicando algumas caixas empilhadas num canto próximo. – Por que não dão uma olhada?
Kellyn e Erick se aproximaram da pilha, onde haviam jogos dos anos 50, Bancos imobiliários com caixas rasgadas, caixas tão leves que parecia não haver peças dentro. Próximo à metade da pilha, Kellyn puxou uma caixa que estava em bom estado, apesar de tão cheia de poeira quanto as outras.
- Off? – Perguntou Erick à Kellyn, olhando o título do jogo. – Nunca ouvi falar desse.
- O que importa é que está apresentável. – Disse ela. – Se a gente tirar o pó e embrulhar minha mãe nem vai saber.

Kellyn entrou em casa com o embrulho sob o braço e se dirigiu até a cozinha, de onde vinha o barulho de colher batendo em prato. Não ia nem deixar a sua mãe falar algo, já pensara numa desculpa, mesmo esta sendo muito ruim e clichê.
- Não tinha o maldito jogo em lugar nenhum, mãe. – Disse, adentrando a cozinha. – Fui em cada um dos shoppings, cada uma das lojas, e nada. Daí comprei esse, que parece ser legal também. – E colocou o embrulho sobre a mesa.
- Bom, o que podemos fazer? Ele vai ter que se contentar com esse. – Disse a mãe de Kellyn, sem nem ao menos parar de mexer a massa dos doces. – Venha, me ajude com os beijinhos.
A tarde passou lenta e entediante. Um pouco depois de Kellyn chegar, seu irmão entrou na cozinha, carregando a mochila da escola. Usava o uniforme verde-abacate e tinha cabelos castanhos espetados, que permaneciam dessa forma mesmo sem que ele quisesse. Depois de ver o jogo, disse que jogariam ele, Kellyn, Erick e Takeso, logo depois de a festa acabar. Ele comia quase a metade dos doces que Kellyn fazia, e assim ela logo percebeu que estava perdendo tempo.

Os convidados começaram a aparecer às 7 horas; Crianças de todos os tipos e tamanhos, trazendo presentes e seguidas pelos pais. Erick chegou às sete horas e quinze minutos, usando uma camiseta azul e por cima uma jaqueta branca, uma calça jeans com muitos bolsos e zíperes, além do seu velho tênis cinzento. Trazia consigo uma bolsa transversal, e entregou o livro ao irmão de Kellyn dizendo:
- Alec, quando você se sentir sozinho, não tiver com quem conversar, leia um livro. Comece por esse se preferir.
Alec pegou o livro com cara de quem não gostou, disse um “obrigado” e levou o presente até o quarto. Passaram-se mais quinze minutos e chegou Takeso, usando uma jaqueta de moletom sem mangas, uma calça jeans preta e um tênis sujo. Além de luvas pretas que tinham uma caveira impressa sobre as costas das mesmas, mas não protegiam os dedos. Entregou à Alec uma caixa dizendo para ele só abrir no dia seguinte. Alec, mais agitado, levou a caixa até o quarto. O resto do aniversário passou de maneira monótona, e os convidados conversavam educadamente, sempre sorrindo, enquanto a mãe de Kellyn corria de um lado para o outro servindo salgadinhos de festa. Alec, vestindo um moletom roxo com dentes e olhos estampados, uma calça também de moletom azul e um tênis prateado, passeava conversando e rindo em alto e bom som com seus coleguinhas. Quando finalmente cantou-se o parabéns, as pessoas foram embora, e Kellyn, que achou que finalmente estaria livre do seu irmãozinho, foi arrastada, junto com Erick e Takeso, com o objetivo de jogar o tal “Off”.
- Muito bem. – Disse Erick, pegando o manual e lendo-o – As regras dizem que cada um deve pegar um pino...
- Eu sou o amarelo! – Exclamou Alec, pegando o pino da caixa.
- Então eu sou o preto. – Disse Takeso, pegando o pino de cor preta.
- Ok, e eu sou o Azul. – Disse Erick, sem tirar os olhos do manual, pegando o pino escolhido.
- E eu sobro com o rosa né? – disse Kellyn, de cara feia. Odiava a cor rosa.
- Certo. Depois cada um pega um dado. – disse Erick, entregando um dado de seis lados para cada um dos participantes – O Objetivo do Jogo é chegar à saída do tabuleiro. Simples. – E olhou para o tabuleiro.
Mas na verdade, não era tão simples assim. Além de múltiplos caminhos a se seguir, as rotas mudavam conforme diversos fatores, com o número de dados que a pessoa tirasse, o local onde o jogador mais próximo estivesse, as duas últimas jogadas entre outras centenas de coisas.
- Diz aqui que todos devem jogar seus dados ao mesmo tempo, dentro da caixa. – Disse Erick, mais uma vez observando o manual.
- Então acho que vamos ter de quebrar esta regra. – Disse Takeso, sorrindo. – Vou ao banheiro. – E saiu do quarto.
- Não vamos esperá-lo. – Disse Alec, olhando para Erick e Kelly.
- É, não vamos. – Disse Kelly, já começando a chacoalhar a mão sobre a tampa da caixa. – Quando eu disser três. Um... Dois... Três!
E os três jogaram os dados.

Uma mão enluvada segurava alguns alfinetes enumerados, e estava posicionada sobre uma folha de papel que parecia um mapa colocada sobre uma placa de isopor.
- Muito bem. – Disse ele, olhando atentamente o mapa. – Seis locais aleatórios, correto? – Tapou os olhos com a mão enluvada que não segurava os alfinetes. – Sorte... – Disse, sorrindo, e passou a espetar os alfinetes em qualquer lugar do mapa.

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