Debaixo do visco

Debaixo do visco



BZZISS. BZZISS.

- Desliga essa porcaria, Rony!

BZZISS. BZZISS. BZZISS. BZZISS.

Ouvi o som de Harry se arrastando. Uma batida. Percebi que ele mesmo tinha se encarregado de dar um jeito no despertador.

- O que há com você, hein?

Não respondi. O primeiro pensamento que tive quando acordei não foi que, pela quarta vez, o dia estava se repetindo. Eu estava muito mais angustiado com o que tinha que fazer.

"Você tem que resolver seu assunto mais importante. É isso que está lhe prendendo no tempo. A coisa mais importante..."

As palavras de Harry não saíam da minha cabeça. Eu tinha que fazer aquilo... tinha que falar com Hermione. Não havia mais nenhum assunto pendente, nada mais importante do que aquilo. Eu tinha certeza que, se não abrisse meu coração com Hermione, nunca mais sairia daquele dia.

"Você tem que ter coragem. Tem que dizer aquilo."

Coragem... eu era um covarde. Não era um verdadeiro grifinório. Coragem era o que mais me faltava quando estava perto de Hermione. Ela me desarmava, deixava-me completamente sem defesas. Eu não sabia o que fazer.

- Ei... - Harry balançou uma mão sobre meu rosto. - Tá dormindo de olho aberto, é?

Encarei-o profundamente.

- Lembra do que a gente conversou ontem?

Não importava que eu já tivesse conversado isso com ele uma vez. Eu precisava de um conselho, precisava de palavras que me encorajassem. Precisava ouvir novamente que as coisas dariam certo se eu contasse tudo para Hermione... ou não.



*******



Tudo foi exatamente igual naquele dia. Não me dei ao trabalho de mudar as coisas como tinha feito das outras vezes. Eu estava entorpecido demais para fazer isso. Estava preso dentro do meu próprio dilema para pensar em mudar o rumo dos acontecimentos.

Eu tinha uma escolha a fazer. Tinha que escolher entre ficar preso no tempo ou contar tudo à Hermione. E eu não sabia qual das duas opções me assustava mais. Se eu contasse tudo para Hermione, tinha medo de ela brigar comigo... da nossa amizade nunca mais ser a mesma. Eu não queria perder uma amiga. Ainda mais uma amiga como ela.

- E você? Vai dar um presente para a Mione?

Olhei para Harry. Mais uma vez, estávamos os dois, tentando nos esconder para que ninguém soubesse que estávamos na seção feminina daquela loja de departamentos. Ele tinha derrubado as bolsas depois de ver Cho Chang entrar na loja. E eu olhava toda hora de esguelha para Hermione, enquanto ela escolhia um perfume... e ninguém tirava da minha cabeça que aquele perfume era para o "Vitinho".

- Um presente? - perguntei. - Um presente especial?

- É... Alguma coisa que não sejam livros.

Olhei novamente para Hermione e voltei a encarar Harry.

- Você acha que adianta?

- Claro que sim!

- E se ela gostar de outro, Harry? E se não gostar de mim?

Harry sorriu. E havia algo escondido no brilho do olhar dele, algo que me deu a impressão de que ele sabia mais do que queria dizer.

- Você nunca vai descobrir se não falar com ela.

- Do quê vocês tão falando aí embaixo? - uma voz feminina perguntou sobre nossas cabeças. Tremi involuntariamente.

- Nada...

Era Hermione. Eu estava receoso de me levantar, mas Harry derrubou mais algumas bolsas para longe, deixando-me a sós com ela de qualquer maneira. Não me levantei, mas Hermione se abaixou. Ela alçou as sobrancelhas.

- Eu, hein? Vocês estão esquisitos...

Olhei-a bem dentro dos seus olhos castanhos. O frasco de perfume azul escuro estava seguro em suas mãos. Ela sorriu para mim quando notou que eu estava olhando para o frasco.

- O que você acha? - ela perguntou ansiosa, enfiando o perfume sob minhas narinas.

Senti a fragrância por segundos intermináveis. E também senti algo se revirar dentro de mim. Algo que me entristecia. Imaginei como seria bom se ela estivesse tendo todo aquele cuidado para escolher algo para mim. Mas a minha teimosia fez-me acreditar que eu estava enganado. Hermione nunca gostaria de alguém sem graça como eu. Ela era uma garota superior... inteligente, decidida. Eu era apenas um garoto comum, sem dotes especiais...

- Eu gostei... é masculino, não é?

- É sim. - ela sorriu novamente, fechando o frasco. - Então você gostou...

- Pra quem é?

Como eu queria que ela respondesse que era para mim...

- Isso não é da sua conta. - ela respondeu misteriosa.

Mordi os lábios com força, tentando não olhar para ela. Droga, por que as coisas tinham que ser assim? Por que eu tinha que gostar dela? Eu não era correspondido... Só uma garota muito burra se interessaria por mim, e certamente burra era a última coisa que Hermione era.

- É para o "Vitinho"?

Ela riu.

- E se for? O que você tem haver com isso?

Hermione levantou-se antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa. Continuei agachado, encarando o chão. Harry se aproximou.

- E aí?

- Não adianta, Harry. Ela não gosta de mim.

Harry tirou seus óculos e colocou-os no meu rosto. Meus olhos doeram. O grau das lentes era muito forte. Harry era quase cego!

- Você precisa mais deles do que eu.



*******



- Xeque-mate.

- Ah, não!

Já era a segunda vez que eu vencia Harry no xadrez aquela noite. Hermione ainda acompanhava-nos ligeiramente atenta, mas Gina, sentada ao lado dela, já mostrava os primeiros sinais de sono.

- Eu quero revanche! - Harry exclamou.

- Outra? - perguntei rindo. - Não está cansado de perder?

Ele fez um gesto negligente. Ri e já ia começar a arranjar novamente as peças, quando olhei para o relógio: quase onze e meia. Eu tinha pouco tempo para fazer o queria, isto é, se eu tivesse coragem. Mas pelo menos eu tinha que tentar, não é?

- E então? Vamos jogar mais uma vez?

- Não. - respondi lentamente.

- Como não?

- Ih, Rony, tá com medo de perder a invencibilidade, é? - Gina perguntou bocejando.

- Gina, vai dormir. - falei, olhando torto para minha irmã.

- Finalmente você teve uma boa idéia. - ela me provocou, ainda sonolenta. - Boa noite pra vocês.

Harry ficou olhando para Gina enquanto ela subia as escadas, pensativo. Depois ele olhou para Hermione, que tinha apoiado a cabeça sobre os joelhos, e para mim, que começava a arrumar as peças do tabuleiro.

- Erm... - ele pigarreou. - Acho que estou sobrando.

Olhei feio para ele. Onde já se viu dizer uma coisa daquelas? Felizmente, Hermione parecia tão absorta em seus próprios pensamentos, que nem notou a indireta (muito direta) de Harry. Ele se despediu com um "boa noite" e subiu as escadas. Eu e Hermione novamente ficamos a sós. Ela levantou os olhos, observando-me guardar as peças. Um silêncio constrangedor tinha se formado.

- Você não vai dormir também?

Perguntei por perguntar. Só para quebrar o silêncio. Eu não queria que ela fosse dormir, se bem que o medo começava a aflorar dentro de mim, e eu não sabia se seria melhor que ela me livrasse do que eu tinha que fazer, indo dormir. Era estranho, mas às vezes eu esquecia que certas coisas já tinha acontecido.

- Agora não tô mais com sono...

- Quer jogar?

Ela riu baixinho.

- Melhor não. Você ganharia de qualquer jeito mesmo. Você é muito bom em xadrez, Rony.

Isso eu tinha perguntado de propósito. Só para ouvir ela me elogiar. Fechei o tabuleiro. Aquela contração no topo do meu estômago tinha começado novamente. Eu suava. A essas alturas, eu já tinha esquecido que o dia estava repetindo... Naquele momento, eu comecei a pensar só no que eu tinha que fazer. E que não sabia se deveria fazer ou não.

Eu gosto tanto de você

Que até prefiro esconder

Levantei e coloquei o tabuleiro sobre uma das poltronas. Senti que minhas mãos tremiam. E se desse tudo errado? E se, afinal, eu estivesse certo, e Hermione realmente não gostasse de mim? E se ela brigasse comigo? E se eu perdesse a amizade dela? Era o que eu menos queria... Não seria melhor continuar escondendo? Deixar que as coisas seguissem por elas mesmas?

Deixo assim ficar subentendido

Virei-me e vi que Hermione me observava atentamente. Engoli em seco. Parecia que era difícil respirar. Minha boca estava terrivelmente seca. Desviei meu olhar do dela e vi, flutuando, um visco, bem sobre nós. Harry... É claro, ele sempre estava tentando me ajudar. Será que ele estava certo mesmo? Ou será que as palavras que ele me disse foram só para me confortar?

Como uma idéia que existe na cabeça

E não tem a menor obrigação de acontecer

Sentei-me ao lado dela. Notei que Hermione não tirava os olhos de mim, mesmo que não dissesse nada. O visco ainda pairava sobre nossas cabeças. Voltei a olhar para ela, sentindo que era a hora certa. Eu não podia mais esconder. Não podia mais fugir. Se ela não gostasse de mim, eu teria que aceitar. O que não podia era continuar nessa agonia. Não a besteira do dia estar se repetindo. Naquele momento eu não pensava mais nisso. Eu só pensava em Hermione, em quanto eu gostava dela, e que eu não podia mais guardar isso só para mim.

Pousei minha mão sobre a dela. Hermione baixou os olhos, mas não fez um único movimento para me impedir. Senti um calafrio quando ela, delicadamente, segurou entre seus dedos a minha mão.

- Eu preciso... te dizer... uma coisa...

Eu acho tão bonito isso de ser abstrato, baby

A beleza é mesmo tão fugaz

- Eu estou ouvindo, Rony.

Era difícil falar. Era difícil respirar. Era difícil olhar para ela, mas eu também não queria olhar para nenhum outro lugar. Eu só via Hermione na minha frente, e eu só queria vê-la. Só ela existia para mim naquele momento.

- Há algum tempo... eu me convenci disso... Mas se parar para pensar, acho que isso já existia dentro de mim antes mesmo que eu percebesse.

Ela me olhava como se entendesse. Ela me escutava como se fosse aquilo que queria ouvir.

É uma idéia que existe na cabeça

E não tem a menor pretensão de convencer

- Acho que eu queria mesmo me convencer de que não era verdade. Que eu... não estava sentindo. Porque eu tinha medo. Medo de parecer bobo... sem sentido. Medo de você me achar bobo.

Ela não se deu ao trabalho de me contradizer ou, o que eu temia, confirmar o que eu estava dizendo. Ela apenas continuou me encarando, seus olhos brilhando, e um sorriso encantador nos lábios. Ela estava fazendo tudo para me encorajar, eu sentia isso, e por isso conseguia prosseguir.

Pode até parecer fraqueza

Pois que seja fraqueza então

- Mas eu comecei a sentir também que não poderia ser algo ruim. Eu me sentia tão bem com isso, aliás, eu me sinto tão bem. Apesar de ter medo, isso me faz bem. Eu fico feliz em saber que posso sentir isso. É bom acordar e saber que logo eu vou me deparar... com... você, e que tudo isso vai aflorar novamente.

A alegria que me dá

Isso vai sem eu dizer

Eu ia falar mais, mas Hermione colocou um dedo sobre meus lábios. Era maravilhoso olhar para ela; seus olhos brilhavam tanto que pareciam me iluminar. Eu podia me ver refletido neles, e era muito bom acompanhar as linhas dos lábios formando um sorriso verdadeiro.

- Eu já entendi, Rony.

A voz dela era apenas um sussurro, mas para mim foi como se ela estivesse gritando aquilo para o mundo.

Segurei o rosto dela entre as minhas mãos. Sentia tanta coisa junta dentro de mim que seria impossível descrever. Meu coração batia rápido demais, meus ouvidos estavam surdos, e eu decididamente não estava respirando. Sentia euforia, alegria e felicidade. Queria gritar para todos que eu a amava, mas especialmente queria dizer isso a ela. Eu queria estar com ela para sempre e somente naquele momento. Queria me ver refletido nos olhos dela e admirar seu sorriso em todos os dias da minha vida.

Não era necessário que ela dissesse algo. Sua expressão dizia tudo. O toque de suas mãos macias nas minhas, que ainda seguravam seu rosto, era melhor do que qualquer outra coisa que eu já tivesse experimentado na vida. Tudo e qualquer coisa se tornava pequeno e insignificante comparado a isso.

- Mione... Eu preciso dizer... Eu não me importo de repetir isso quantas vezes forem necessárias. Se amanhã eu precisar olhar para você e dizer tudo de novo, eu direi. Mione, eu te amo... te amo mais do que a mim, mais do que a minha vida. Mais do que tudo.

Se amanhã não for nada disso

Caberá só a mim esquecer (eu digo vai doer)

Ela sorriu e apontou para cima. Assim que levantei os olhos, pude ver o visco que ainda flutuava sobre nós. Ouvi a risadinha dela, e pude ver que suas bochechas estavam ligeiramente avermelhadas. Eu ri também... foi aí que entendi tudo. Eu era mesmo um pateta... mas um pateta apaixonado. E Hermione sempre estava um passo na minha frente, mas o que isso importava? Se ela estivesse na minha frente, eu sempre poderia vê-la e admirá-la.

- Acho melhor cumprirmos a tradição.

A risadinha dela parou e foi substituída pelo sorriso mais belo... eu não poderia, nunca mais, achar algo mais bonito que aquilo. E pensar que um dia eu a tinha achado apenas uma menina sabe-tudo desengonçada. Hermione era a garota mais linda do mundo... para mim.

Eu me aproximei dela, sentindo um furacão de emoções dentro de mim. Aquilo era tudo que eu queria e tudo que eu mais esperava. Não havia a lua, nem as estrelas, mas isso não era importante, porque eu nunca olharia para nada disso podendo ver Hermione. Era simples e comum para quem visse, mas nenhum de nós interpretava dessa maneira. Pelo simples fato de sermos nós que sentíamos.

Era tão maravilhoso sentir a mão dela tocando minha nuca... Era tão bom tocar os cabelos dela, que por mais que fossem embaraçados para os outros, para mim eram magníficos. Como ela era macia... e quente. Era como se uma aura de calor, um calor reconfortante, emanasse dela e entrasse dentro de mim.

Os seus lábios se encaixavam nos meus como se tivessem sido feitos juntos e... somente agora... houvessem se reencontrado. Tudo nela era bom. Tudo nela tinha gosto de cereja. Esquisito, não é? Eu sempre sinto gosto de cereja quando a beijo, como naquele dia...

O que eu ganho o que eu perco

Ninguém precisa saber

Se eu tivesse que repetir aquilo, não importaria. Ouvi, como vindo de um lugar muito distante, as doze badaladas.

E o visco ainda flutuava sobre nós.



* Música tema do capítulo: "Apenas mais uma de amor", Lulu Santos.

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