A viagem de volta



O Expresso de Hogwarts cortava o vale graciosamente, contornando as colinas de densa vegetação e deslizando com elegância pela depressão sinuosa, enquanto demarcava sua trajetória com espessas nuvens de vapor e fuligem expelida por sua chaminé.

A viagem de retorno a King's Cross começara pela manhã, no dia seguinte ao funeral do diretor da escola, e a tarde já havia transcorrido quase na sua totalidade quando os monitores-chefe retornaram aos seus vagões, a fim de preparar-se para o desembarque logo mais à noite.

Hermione deixou-se cair sobre o banco, ao lado da janela, encostou o rosto na vidraça e passou a contemplar o Sol avermelhado começando a ser engolido pelo horizonte, no banco, à sua frente, Harry mantinha-se em posição idêntica à garota, ambos com o olhar perdido no poente.

O crepúsculo era um grato espetáculo, que fazia esquecer tanto o cansaço da bruxinha quanto o tédio do rapaz, a copa das árvores começavam a ser tingidas pelo vermelho alaranjado do ocaso, e se confundia com as nuvens cor de sangue que enfeitavam a abóbada celeste.

O pensamento de ambos ia longe, mas com certeza viajavam em uma direção comum, aqueles momentos de tranqüilidade e letargia os fazia divagar sobre os acontecimentos que antecederam o final prematuro das aulas e os levava a imaginar os fatos que estavam por vir. Não se olhavam, os olhos dos dois estavam fixos no horizonte, admirando o tom dégradé do céu despedindo-se do astro rei.

Na verdade, eles não precisavam se olhar, bastava um saber que o outro estava ali próximo, pronto a atendê-lo e ampará-lo quando preciso fosse. Não precisavam trocar uma palavra sequer, pois ambos sabiam por onde o pensamento do outro vagava e, quando chegasse a hora, colocariam a própria vida na ponta de sua varinha para socorrerem o seu afeto.

O pôr-do-sol agonizava e os últimos raios daquela fonte de luz e calor atingiam seus estertores, banhando com sofreguidão o vagão em que os dois contemplavam sua extinção, como se tivesse pressa em ainda presentear alguém com sua dádiva, a última oferecida entre o azul do dia e o escuro da noite.

Os cabelos castanhos, encaracolados e rebeldes da menina tingiram-se de rubro e o tom de sua pele ressaltou o seu bronzeado natural, seus olhos semicerrados lutavam bravamente para assistir, até o último momento, a retirada triunfal da grandiosa estrela.

Seu parceiro percebeu a dança de cores brincando sobre o rosto feminino ao lusco fusco e desviou seu olhar para contemplá-la: entre o reflexo momentâneo do Sol na fronte da colega de Grifinória e o espetáculo diário da retirada do outrora conhecido como o centro do universo, ele preferia o primeiro.

Ela percebeu que os cabelos negros, desgrenhados e selvagens do jovem bruxo também serviam de palco para a despedida dos insípidos raios de sol, que também bailavam insossos pelo rosto alvo e juvenil marcado pela cicatriz. Preferiu, também, aquele espetáculo, ao que se exibia no horizonte.

Seus olhos se encontraram, o verde da esperança e o castanho da emoção, e uma fração de segundo foi o suficiente para compreenderem o que o outro sentia, o que o outro pensava, o que o outro dizia - sem palavras.

Um sorriso maroto brotou dos lábios do menino, que foi prontamente retribuído, e com graça, pela garota. Ela esticou graciosamente a perna e tocou a ponta do pé do outro com a biqueira de sua bota: palavras não eram necessárias, mas como o silêncio sempre dá espaço para interpretações dúbias, ele foi quebrado.

— Cansada? - perguntou ele.

— Exausta! - ela respondeu com um trejeito tímido - E você? Entediado?

— Esta viagem parece cada vez mais longa! - disse, concordando com a cabeça.

— Estava pensando no que aconteceu, não estava? - o tom dela não era de pergunta, e sim de constatação.

— E você pensava numa forma de resolver o que virá, não é? - ele retribuiu no mesmo tom, mas soando divertido.

Ela sorriu novamente e balançou a cabeça, em concordância. Ficaram, ainda, por um instante a se fitar, durante aquele período mágico em que que o Sol já se pôs mas não é noite ainda. Finalmente, os dois voltaram a olhar novamente para o infinito, mas o Sol não estava mais lá: só existia a escuridão.

Às vezes, palavras são desnecessárias para se transmitir aquilo que sentimos, mas sempre é bom pronunciá-las, pois pode ser que alguém, em algum lugar, queira ouvi-las.

Fim


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