Único



Um conto de duas irmãs



“São muito parecidas, essas duas” dizia Tia Walburga todas as vezes que nos encontrava. Todas. Era como uma espécie de ritual, ou cumprimento. E como não nos víamos com freqüência, imagino que ela esquecia que sempre dizia isso.

Nós não éramos muito parecidas, Bellatrix não achava, eu não achava.

Ela era mais velha. Um ano, cinco meses e quinze dias. Exatamente. Ela nasceu em uma chuvosa madrugada de outono, eu em um cálido crepúsculo primaveril.

“Mamãe deve ter sofrido um inferno pra ter você...” disse ela numa tarde especialmente quente em que molhávamos as pernas no lago.

“Se tem tanta curiosidade, pergunte a ela” respondi cerrando as pálpebras.

Por alguma razão guardei a lembrança aparentemente sem importância desse dia. Era de uma época em que nada nos afligia, dos tempos em que Bella e eu passávamos quase todas as horas do dia juntas.

Aquele verão castigou absurdamente tanto nós, quanto toda a vegetação. A madeira do pequeno cais em que nos encontrávamos parecia brasa recém-aquecida, nossas saias de tecido abafavam o calor até os joelhos, e a água refrescava nossos pés. A única parte do corpo submersa e que não sentia os horrores daquela tarde em que os raios do sol incineravam imperdoavelmente nossa pele.

Eu nunca me importei com as tardes quentes, eu gostava. Bella não, ela odiava ficar estirada na plataforma que avançava sobre o lago. Mas aquele dia o calor nos venceu sumariamente, ambas caímos com os braços sobre o rosto, moles e preguiçosas.

Era um dia claro, tão claro que o azul extremo contrastava com o branco puríssimo das nuvens muito esparsas, que quando aparecem são grandes e espessas. Elas que trazem a notícia de provavelmente chovera dali a dois dias.

O suor escorria pela nuca de Bellatrix e eu ri. Ela perguntou por que e respondi “Porque estatuas de mármore também transpiram...”, ela provavelmente entendeu perfeitamente, mas não sentia vontade de contestar.

“Você acha que somos tão parecidas assim?” perguntou ela ao que me pareceram horas depois, quando um vento vindo de algum lugar soprou uma daquelas nuvens que descansam nossa pele do sol, ela virou o braço para ao lado e abriu vagarosamente o olho direito deslocando o rosto na minha direção.

“Não, acho que não.”

Mas quase todos acreditavam o contrário, e de alguma bizarra forma até alguns conhecidos da família costumavam trocar nossos nomes. Tia Walburga era uma, principalmente ela. Bellatrix dizia que fazia de propósito, porque não éramos homens ela gostava de mostrar ao papai que já tinha desperdiçado duas chances de ter filhos. Homens. Machos para continuar o nome da família. Ela grávida do segundo.

Nunca me importei com o que Walburga Black pensava. Uma mulher rancorosa e visivelmente ofendida pela beleza da minha mãe não merecia sequer um minuto da minha atenção. Porque sim, eu acreditava piamente que ela nutria certa inveja, e até mesmo ciúmes da minha mãe. Tio Órion nunca seria como seu amado irmão Cygnus, cujo passatempo durante a juventude sempre foi observar apaixonadamente mamãe tocar piano.

Minha pele era bronzeada pelo sol e no verão os finos pêlos do braço desapareciam. A dela era branca, macilenta, tão pálida que as veias esverdeadas traçavam um mapa pelo seu corpo.

Nossos cabelos eram, originalmente, negros. Entretanto os meus haviam, há pouco tempo, adquirido um tom de castanho queimado nas pontas cacheadas e disformes. Resultado das minhas longas caminhadas nos dias em que o sol alegrava a paisagem verdejante da nossa casa.

Também era mais alta que ela, cerca de duas polegadas. Bellatrix costumava tirar sarro, dizia que minhas pernas pareciam dois palitos compridos e finos. Era inveja, e eu bem sabia. Inclusive, ambas sabíamos que Narcissa seria ainda mais alta que nós duas. Mais alta e mais bonita, mas nunca diriam que era parecida conosco.

“Acho que você deveria cortar o cabelo” disse ela com uma voz letárgica e malmente articulada tornando o rosto cansado para mim à sombra dos seus braços mais uma vez.

“Por quê?”

“Não nos achamos parecidas, mas os outros sim. Logo estarei em Hogwarts, e não quero ser confundida” respondeu com a voz mais firme voltando à posição inicial, entretanto visivelmente mais desperta.

Tirei minha mão esquerda que protegia os olhos, e eles sofreram uma leve distorção até se acostumarem com a claridade. Com os cotovelos ergui parte do meu tronco e lhe dirigi a palavra com uma espécie de desprezo:

“Por que eu? Se você não quer parecer comigo, corte então o seu cabelo”

Ela, ainda deitada, deu uma espécie de sorriso maldoso e tornou a responder:

“É, talvez eu faça mesmo isso...”

“É tão afrontoso assim parecer comigo?”

“Às vezes, como quando você começa a agir como uma criancinha de dois anos, toda injuriada, por causa de algum comentário. Agora, por exemplo. E é você que se parece comigo, a matriz desta filial sou eu, não você.”

E molhou os lábios distraidamente com a língua, era uma mania que ela tinha tendo em vista que sua boca era exageradamente pálida e ressecada.

“Pois bem, corte os cabelos se lhe convém...” falei fazendo um gesto leviano com os braços e voltando a deitar.

“Não estou pedindo por permissão, só acho que você é quem deveria cortar os cabelos. Não eu. Mas se faz um alvoroço tão grande a esse respeito...” e não terminou a frase. Deixou-a solta no ar com irônica deliberação, quase que esperando que o vento terminasse de falar por ela.

É incrível como o ar do verão age sobre diferentes formas sobre as pessoas. Enquanto eu respirava, sentia meu espírito se aquecer dentro do meu corpo, as costas lavadas de suor não me incomodavam como a muitas pessoas, decerto que não era uma coisa extremamente agradável, mas lembravam a condição humana sobre a qual fingíamos não viver. Toda a família habitou-se, já há muito, a existir como divindade, à sombra de seus nomes ricos de significado.

Bellatrix tinha uma respiração pesada e lenta no calor, causava fastio ter de escutá-la imergir no seu corpo e afogar-se com o ruído do próprio ato de inspirar. E quando outra nuvem em forma de algodão-doce lentamente cobria o sol e ela se empertigava ao meu lado, em uma espécie de impaciente irritação. Foi a primeira vez que escutei ela cantar aquela uma música daquela banda, que anos depois guiaram minha vida como uma trilha sonora.

“Listen
Do you want to know a secret?
Do you promise not to tell?”*


Falou baixinho, empregando uma melodia que eu nunca antes havia escutado. Ela batucava os dedos na madeira que levantava pequenas partículas de poeira dançantes.

“Que música é essa, Bella?”

Mesmo de olhos fechados, poderia predizer que ela sorria vitoriosa.

Escutei-a cantar mais uma ou duas estrofes antes de me responder com a voz mais fortemente impostada simulando displicência.

“Uma música que escutei esses dias”

“Onde?”

Porque as músicas que ela escutava, eu escutava, e todos escutavam. E não eram daquele tipo, eram melodias geralmente sem letra.

Um riso infantilmente agudo e ela desfez teatralmente.

“Em um rádio velho que encontrei encostado por aí.”

Estanquei minhas pernas que se mexiam na água, já morna àquela hora.

“Você sintonizou uma rádio trouxa!” e a nuvem descobriu o sol novamente ao que escutei sua respiração reclamar injuriada.

Certamente percebeu meu choque, mas Bella gostava de surpreender as pessoas. Sentia-se superior fazendo isso.

“Sim” disse simplesmente.

“Sabe que é...”

“... proibido? Só é se alguém descobrir. Você vai contar?” seu tom era despreocupado e precipitado. Ou talvez fosse a soma do calor que o havia deixado assim.

“Sabe que não.”

Ela riu novamente.

“É, eu sei que não.”

Esperei diligentemente alguns minutos para que seu ego se retraísse para a enorme casca da qual havia saído e voltei a falar-lhe:

“Você me mostra... a música?”

Ela suspirou, preocupação ou prepotência, e levou minutos deixando-me em estado de angustiante ansiedade.

“Ok.”

Então o Sol, astro resignado à sua eterna maldição, rendia-se lentamente para trás das montanhas à nossa frente e finalmente existia uma brisa suave e digna para que levantássemos nossos troncos a fitar mudamente a mágica hora dos deuses.

Vagarosamente, como que resistindo ao máximo, ele descia agarrando-se às, agora, bem maiores nuvens tingindo o céu em um arco-íris alastrado e multicolorido, apresentando-nos inúmeras tonalidades de qualquer cor que imaginássemos.

“Olhe, alaranjado!” apontei. Mirei suas pestanas delicadamente se abaixarem e depois acompanharem o meu dedo.

Ela mordeu os lábios, quase impaciente e respondeu:

“Isso acontece todos os dias.”

“Não dessa cor. Desafio você a encontrar esse alaranjado queimado qualquer outro dia. Dois sicles!” claro que sabia que ela iria concordar. Bella nunca negava um desafio.

“Três.”

“Dois sicles e três nuques, se quiser.”

Ela virou de completo seu rosto e abaixou o olhar analisando o meu, sabia que ela fazia isso para ver se conseguia extorquir-me mais dinheiro. Permaneci impassível olhando as nuvens mudarem a matiz.

“Feito” e estendeu-me a mão tão satisfeita que já parecia ter ganhado. Continuamos nos olhando firmemente e apertando ainda mais a mão, costumava fazer isso até que eu desistisse e pedisse “perdão” por qualquer coisa que eu não tivesse feito enquanto ela se dobrava de tanto rir.

Mas esse dia eu estava decidida a não deixá-la ganhar.

“Senhoritas! Senhoritas Black!” aquele grito gutural tirou toda a minha concentração, e a dela também. Fechou os olhos irritada com o elfo, e Bella sempre teve uma capacidade de se irritar muito fácil.

“Vamos...” disse amuada tirando os pés da água e estendo-me a mão esquerda quando já estava posta em pé.

“Você me fez perder!” reclamei indignada, apontado as estrelas que corriam a cobrir o espaço vago pelo sol.

“Não se preocupe, por três sicles vou eternizar uma imagem igualzinha para você.”

“Dois sicles e três nuques.” corrigi levantando-me sem pedir ajuda à sua mão estendida.

“Que seja...” replicou altiva, pegou seus mocassins pretos, um tanto gastos, e virando-me as costas pôs-se a balançá-los enquanto andava descalça pelo píer empoeirado e ainda morno.

“Não pense que vai me enganar, dona Bella. Dois sicles e três nuques, e nada mais!” disse enquanto em duas passadas largas alcancei-a.

Olhou-me e sorriu maliciosamente, mas nada respondeu.

Chegando ao final do cais senti falta de alguma coisa em minhas mãos. Tinha esquecido minhas sapatinhas vermelhas, que Narcissa costumava dizer que eram extravagantes demais para serem vistas. “Pobres coitados daqueles obrigados a vê-la calçada com elas...” e eu suspeitei imediatamente que Bellatrix havia sussurrado aquelas palavras à doce Cissy. De outro modo, como uma criança de pouco mais cinco anos poderia julgar o que era ou não extravagante para ser visto?

Abaixei-me e ao fazê-lo, inevitavelmente alonguei minhas vistas ao lago, que calmo refletia como um espelho a abóbada celeste delicadamente estendida sobre ele.

“Hey, Bella, hoje é dia da minha constelação!” gritei apontando o céu anil diretamente sobre minha cabeça, onde resplandecia a imperiosa ‘Constelação de Andrômeda’, por motivos óbvios a minha preferida.

Como se estivesse ao seu lado escutei-a bufar cansada, sua silhueta arqueou os ombros para frente em um gesto enfastiado e desagradável.

“Andrômeda Black, hoje você está mais chata do que nunca! Não vou perder o jantar pela sua bendita constelação...” e voltou a andar dignamente com os mocassins balançando distraídos em suas mãos.

Bellatrix andava a passinhos curtos e cuidadosos, calculando cada milímetro do que andaria, e por onde pisaria seus graciosos pés de princesa. Porque eles eram pequenos e macios como de uma princesa, contrapondo-se brutalmente aos meus. Grandes, desajeitados e ásperos, porque eu preferia andar sem sapatos.

A grama estava amarelada e quebradiça, escutavam-se pequenos ‘crecs’ e se partia ao passo que se olhasse à beira do lago, veria tílias e bétulas murchas e queimadas pelo calor imperdoável de 1963.

Uma pequena corrida e já estava ao seu lado balançando na mão direita os meus sapatos. Ao que a olhei de esguelha, notei um pequeno sorriso no canto dos lábios esperando por algo para se fazer completo.

“Minha constelação está brilhando hoje” repeti com um orgulho, que só depois que cresci, pude perceber ser desmedido. Crianças não costumam pesar suas palavras, tampouco eu, tampouco Bellatrix.

“Minha estrela está brilhando hoje. E sempre, aliás...” e pronto, era isso que seu sorrisinho de escárnio estava esperando para aparecer sem vergonha.

“Tenho dúzias de estrelas na minha constelação...”

“O brilho da minha estrela é mil vezes maior do que a sua constelação, que é dificílima de localizar, enquanto que a minha Bellatrix – e apontou diretamente para a constelação de Órion – esbanja vivacidade e brilho. A minha estrela guerreira contra a sua constelação de princesa amaldiçoada” e passou a fina língua vencedora entre os lábios pretensiosa.

Ela era esperta, e célere. Mais que eu, obviamente. Em resposta empurrei, com um misto de raiva indignada e zombeteira, no que ela desviou alguns passos da sua original linha reta traçada até as escadas. Quando voltou ao lugar, investiu contra mim com mais força me fazendo cair, percebendo meu equilíbrio faltoso agarrei a barra da sua blusa leve e ela voou ao chão comigo, caindo dolorosamente em cima das minhas costelas.

E aquela gargalhada triunfante da minha irmã mais velha, que já estava sentindo falta durante o dia, a invencível Bellatrix finalmente largou-se incomensurável e ecoou por toda a noite, marcante como todos os seus finos e aristocráticos traços.

Demorou para que eu finalmente pudesse escutar o segredo de Bellatrix. Ela não me levou ao sótão aquele dia, nem no próximo, nem na semana seguinte.

Mas cerca de um mês depois.

Estava deitada, mas não dormindo. Sempre tive certa dificuldade de pegar no sono, e tendo em vista que as luzes dos candelabros eram apagadas às nove horas em ponto, dormir era só quando ficava cansada de olhar para o escuro. Logo senti aquela mão fria tampar minha boca sem maior cortesia.

“Sou eu. Vamos, a música já vai começar.”

E com um castiçal adornado de prata ela me conduziu até o sótão.

Nunca andávamos pelos corredores depois das luzes apagadas, era proibido. Claro. Mas Bellatrix nunca deu muita importância ao que era ou não proibido.

Bella dizia o que era proibido. Torcia mentiras até que se tornassem verdades e, por vezes, nem mamãe conseguia discordar. Eu a admirava como qualquer irmão mais jovem admira o primogênito, ela tinha pelo seu raciocínio rápido e lógico, eloqüente e fugaz.

Ralhou comigo duas vezes por martelar o chão com as minhas passadas mais pesadas, e por qualquer outra coisa que não fizesse o menor sentido. Deixava claro que se fossemos pegas, seria unicamente por minha culpa porque ela sempre fora mais cuidadosa.

Irritava-me, mas ao lembrar que iríamos compartilhar algo novo e especialmente secreto esquecia de todos os pormenores.

“Pronto, vai começar daqui a pouco...” – disse colocando o castiçal no chão, a única fonte de iluminação no pequeno cômodo achatado cheirando a poeira.

Ela apagou duas velas deixando uma única acesa, a nesga luz iluminava um quase nada do seu rosto e seus olhos arregalaram quando a música começou. Atenção suprema dedicada ao aparelho, que cantava uma música quase ininteligível em virtude dos chiados.

Aproximei o ouvido mais perto.

“O que está fazendo?”

“Escutando. Está muito baixo...” respondi sem jeito.

Ela mordeu os lábios por dentro, considerando e logo depois voltou a olhar o aparelho.

“E então, que me diz?” perguntou ao momento em que o locutor anunciou outra banda e ela deslizou a mão esguia até o botão e girou-o desligando o rádio.

Sabia ser um truque.

“Interessante” e foi só o que disse. Nada sobre o ritmo dançante, agitado e contagiante ao qual não estava acostumada a escutar.

Seus ávidos olhos esquadrinharam meu rosto, demorando-se nos meus olhos ao que ela fez uma careta de concentração acirrada. Levianamente desviou a mão esquerda até um dos bolsos da camisola e tirou um papel colorido.

Multicolorido.

“Sua preciosa paisagem”

Peguei a foto nas mãos e vi as nuvens de um céu fruta-cor entardecendo, voltando minutos antes e o sol se pondo mais uma vez. E lá estavam elas, as minhas nuvens alaranjadas, e depois róseas, violáceas e azuladas.

“Não está igual”

“Está sim. Você me deve dois sicles e três nuques” respondeu imediatamente.

Suspirei inutilmente. Era o mesmo alaranjado que tinha trazido na memória.

“Ok. Mas não estou com o dinheiro aqui”

“Me paga depois” e tomou a foto da minha mão despreocupadamente.

“Hey! A foto é minha, você disse que eternizava por dois sicles e três nuques!” protestei indignada sentindo as faces coradas e as mãos formigantes de raiva.

“E foi o que eu fiz, mas se quiser a foto vai ter de comprá-la. São mais dois sicles.”

Bufei. Procurando nas minhas lembranças daquela tarde à beira do cais qualquer coisa que me desse razão. Entretanto as únicas palavras que a via falando era exatamente aquelas, que ‘eternizaria’ a paisagem para mim.

Ela, deliberadamente, balançava a foto perigosamente perto da vela esperando que eu me resolvesse com minhas memórias.

“Pago quando chegar no quarto” disse finalmente cerrando os dentes.

“Perfeito” respondeu satisfeita entregando-me o retrato.

Sutilmente levantou-se em um só impulso, e como de costume estirou o braço na minha direção. Era como se dissesse que não adiantava ficar brava simplesmente por ter sido descuidada e não ter resolvido direito a questão antes de fechar acordo. Bellatrix sempre fazia isso, e aos poucos fui vendo não como um todo de arrogância (embora fosse inegavelmente parte), mas um intuito de aconselhar-me a ser mais atenciosa.

Fite-a ressentida e ela arqueou a sobrancelhas, como se perguntasse mudamente se iria chorar por causa disso. Até mesmo abriu a boca para inquirir, mas o fiz antes.

“Quanto à música...”

“Segredo” decretou balançando os finos dedos ao qual juntei aos meus. Segredo nosso.

Segredo absoluto significava que nem Narcissa saberia.

Aquele foi o último verão antes de Hogwarts, e Bella resolveu andar comigo em uma espécie de despedida silenciosa dos cenários de nossas travessuras infantis.

Pelas trilhas sombrias cercadas de árvores centenárias que se entrelaçavam por cima das nossas cabeças, e por uma vegetação rasteira que serpenteava à nossa frente, coberta por folhas em plena decomposição e molhadas ainda do orvalho da manhã. Plantas rebeldes debruçavam sobre nossos pés, ao qual desviávamos quase sempre sem nenhum arranhão.

Compartilhando de todo o seu zombeteiro mal-humor percorremos os campos de plantação de morango, roubando os bem vermelhos das cestas em que o elfo encarregado colhia. Enchíamos os bolsos e corríamos até a plantação de trigo e nos jogávamos ao chão desleixadamente, sujando as saias, camisas e enfeitando nossos cabelos com o ouro seco.

“Olhe” apontei os inúmeros mosquitos acima dos secos ramos. Que permaneciam parados no mesmo lugar, em uma espécie de pequeno redemoinho de pontinhos cor-de-palha.

“Insetos...”

“Eu sei, mas olhe como parecem dançar”

Percebi ela remexer e dirigir-me um sorriso mordaz.

“Ora ora, quando foi que Andrômeda Black se tornou poetisa?”

Não a imaginava percorrendo o mesmo trecho sem mim, assim como sabia que Narcissa não faria nem em minha companhia, nem na de ninguém.

Vi-a vestirem para o dia que embarcaria no Expresso rumo ao Castelo de Hogwarts. Cissy e eu espiamos pela fresta da porta de seu quarto, três elfos voando de um lado para o outro, penteando-lhe os cabelos (dolorosamente brilhantes naquele dia), envernizando os sapatos novos, arrumando o vestido, costurando a barra desfiada da saia e por fim enlaçando sua cabeleira com uma fita carmesim que saltava aos olhos.

Fita essa, que ela fez questão de arrancar segundo depois que os elfos se saíram pela porta, fazendo minha irmã mais nova e eu presentes aos seus ágeis orbes negros.

“Sabia que estavam aqui, Andrômeda faz muito barulho quando anda...” disse finalmente encarando sua altiva figura no enorme espelho adornado de prata à sua frente.

A pequena e eu trocamos um olhar inseguro. Sentia a vibração angustiante de Cissy ao ver Bellatrix pronta para nos deixar, ela torceu aquelas mãos finas compulsivamente durante todo o dia.

Narcissa era, provavelmente, a criança mais bonita que pisou no solar dos Black durante gerações. Tinha a pele alva, mas não doentia como a de Bella, as bochechas rosadas e saudáveis, os lábios delineados em forma de coração e sempre vermelhinhos. Os olhos claros de orgulho de toda a família.

“Não vou morrer, se é isso que pensam. Estarei aqui antes que vocês se dêem conta...”

Cissy correu a abraçou seu quadril com força enquanto permaneci estática. Bellatrix, despindo-se de delicadezas, afastou os doces braços da pequena com força e olhando-a diretamente nos olhos imprimiu a voz mais dura que jamais escutara passar pelos seus pálidos lábios.

“Narcissa Black, pare já com essa choradeira! Não aja como os depreciáveis passionais do proletariado, ou vou contar para mamãe.”

E senti-a engolir o choro como se fosse eu mesma, enxugou os olhos com as costas das mãos e com eles ainda vermelhos e inchados relaxou a expressão, e com uma voz vazia como um papel em branco disse:

“Sentirei sua falta, Bella”

“Também sentirei a sua, Narcissa” e passou a mão pelo contorno do seu rosto, logo depois desviando a face para a manhã resplandecente que timidamente se erguia naquele primeiro de setembro, através das grossas vidraças que torciam a paisagem do vale abaixo em uma vista disforme e sem sentido.

A passos curtos e calculados ela andou até mim e sussurrou no ouvido esquerdo: “Não a deixe fazer isso novamente”

Senti minha voz calar-se antes mesmo de pensar em responder, fitei seus olhos e pela primeira vez em anos, eles não me disseram nada diferente. Não gostava de vê-la daquela maneira, atuando conforme o roteiro de Tia Walburga. Anos depois fui entender que se tivesse olhado suas mãos, teria visto que ela forçava a unha do indicador embaixo da unha do polegar. As mãos de Bella costumavam traí-la, até ela perceber que faziam isso.

E se afastou.

“Ainda me deve os quatro sicles e três nuques da foto”

“Vamos Bellatrix” disse mamãe parando à porta.

Ela assentiu com a cabeça e acompanhou mamãe até a escada no final do corredor, onde finalmente voltou-nos seu rosto, até aquele momento impassível, e sorriu àquela sua maneira única. Maliciosa e vulgarmente triunfante. Tomada à não perder o horário, voltou seu semblante para o fim da escada que deveria descer para só voltar a subir no Natal.

Naquele exato momento, parecendo ter sido cuidadosamente ensaiado, os raios do atingiram o vitral refletindo em seu rosto os reflexos azuis, vermelhos, verdes, amarelos. E então ela desceu. Talvez tudo se tornasse cinza desde então.

“Andrômeda, você vai contar para mamãe se eu chorar?”
“Não, Cissy.”


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N/a: ahn... essa acho q ficou mais flufy que as outras...
essa fic ficou martelando na minha cabeça por algum tempo, acho q uns dois meses mais ou menos depois de eu ver esse video abaixo.
é um filme de terror asiatico chamado 'a tale of two sisters'
ahn.. é, o mesmo nome da fic...
e a foto da capa [isso, aquela capa horrenda] tb é do filme.



* The Beatles - 'Do you want to know a secret'

PS:. só pra lembrar que reviews NÃO matam...

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